*por Luísa Giraldo
A impactante performance de Fernanda Marques no longa “Ninguém Sai Vivo Daqui” teve lançamento no Tallinn Black Nights Film Festival, na capital da Estônia, e tem conquistado reconhecimento mundial pela abordagem intensa e pertinente sobre os transtornos mentais. A produção retrata os horrores vividos pela jovem grávida Elisa, internada à força no Hospital Psiquiátrico Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, na década de 1970. A partir dos abusos sofridos pela personagem, a atriz reflete sobre os efeitos do próprio diagnóstico de depressão, o tema da saúde mental no audiovisual e a tentativa de apagamento de narrativas de dor no Brasil.
Tocada pela oportunidade de dar luz ao tema da saúde da mente, Fernanda detalha que Elisa desenvolveu transtornos relacionados à saúde mental após a internação “traumática em um ambiente horroroso”. A artista abre o coração ao revelar que se sentiu conectada com a personagem pelas condições mentais análogas. Com transparência, ela considera ter um “olhar generoso” sobre a discussão, já que lida há anos com os desafios que permeiam aqueles com crises depressivas e a doença.
Observar e dar coisas de mim para a Elisa foi um processo muito interessante. Os momentos de fragilidade dela eram os que eu mais conseguia nos assemelhar porque eu havia vivido algumas dores parecidas, mas em diferentes escaladas. Há quase dez anos, faço terapia, tomo uma medicação e tenho cuidados diários com a minha saúde mental. Participar de um projeto que aborde esse tema foi importante para mim por ter sido a chance de falar de algo que não é mencionado e é chamado de ‘preguiça’ e outras um milhão de coisas que não é — Fernanda Marques
Segundo a atriz, ao proporcionar uma falta de vitalidade, a depressão paralisa os indivíduos aos poucos e não dá a chance deles de superá-la facilmente. Ela ressalta que o olhar “triste e muito julgador” por parte da sociedade atrapalha o tratamento de forma a impedir que a pessoa depressiva confie no próprio potencial e força para se curar.
O preconceito faz com que o paciente passe a duvidar de si mesmo e se bote em cheque o tempo inteiro. Esse lugar e tabu é ainda mais prejudicial porque o não reconhecimento da doença nos coloca no lugar de uma culpa que paralisa, que não nos leva a lugar nenhum – a não ser a piora do diagnóstico. O primeiro passo é reconhecer que a gente precisa de ajuda e que está tudo bem e que é uma situação que acomete muitas pessoas — Fernanda Marques
Ao destacar a estimativa de pessoas depressivas no Brasil, o primeiro país no ranking da América Latina, Fernanda identifica o papel do audiovisual de dar luz a esse assunto. Com os filmes e séries no formato, a artista acredita ser possível abordar a questão de uma forma que ele deixe, aos poucos, o lugar de “tabu”. Em consonância, ela detalha que as histórias de entretenimento da indústria cultural tem o objetivo de proporcionar um sentimento de identificação de maneira a promover a mudança do olhar geracional sobre uma temática específica, além de aproximá-la.
Quando questionada sobre o machismo na sociedade contemporânea brasileira, Fernanda disse acreditar que “tudo está mais maquiado”. A atriz desabafa não saber ao certo o quanto a população evoluiu no sentido de mudar as reflexões e comportamentos geracionais voltados para uma ótica sexista.
“Atualmente, as coisas são bem mais claras e existem milhares de formas de enxergá-las. Antes, as mulheres viviam experiências sem saber dar nome a elas. Olhando para essa época [década de 70, ao fazer menção à personagem Elisa] com uma perspectiva de hoje, percebemos que a mulher realmente não podia fazer nada. A gente não podia transar antes do casamento, não podia usar certos tipos de roupas, não podia trabalhar e mais uma série de outras coisas. Hoje em dia, a gente trabalha, mas ganha menos e ninguém fala muito sobre isso. A gente pode transar, mas a família e a sociedade ainda julgam”, atesta.
Fernanda descreve que sua personagem vive uma moça do interior, que namora um rapaz sem o consentimento do pai, já que ele prometeu a mão dela em casamento para um homem mais velho em troca de terras. O conflito se agrava quando Cecília engravida do namoro, o que se torna um grande problema para o patriarca da família que a enxergava como “moeda de troca”.
“A minha personagem é baseada nas histórias reais da época, que aconteceram bastante. Ela vai para o manicômio grávida e vive atrocidades ali dentro por uma doença que ela não tinha, mas, desenvolve ao longo do filme”, pontua.
Sucesso internacional
Com um tema potente, “Ninguém Sai Vivo” foi inspirado na obra literária “Holocausto Brasileiro“, de Daniela Arbex. A direção do filme internacional ficou a cargo de André Ritsum, que buscou retratar o genocídio que aconteceu no maior hospício do país de 1903 até os anos de 1980.
Fernanda avalia a participação de “Ninguém Sai Vivo” em um dos principais festivais de cinema do mundo: Tallinn Black Nights Film Festival. “O filme acabou ganhando mais visibilidade quando saiu da nossa bolha e atingiu outros outros lugares. O Brasil não reconhece e não cuida da cultura como deveria, ainda mais e uma história tão cara para nós, que é real e de um período muito forte no país dos manicômios. Ver o filme ultrapassando as bolhas e sendo visto mundo afora me deixa muito orgulhosa porque o Brasil insiste em apagar as histórias de dor”, critica.
Ressentida com o “apagamento das histórias brasileiras”, a atriz de 29 anos pontua que outros países promovem feriados e ações para que a população não esqueça do mal feito para a humanidade. Em seguida, Fernanda ressalta que esse comportamento do Brasil é uma herança cultural da colonização portuguesa.
A intérprete aproveita a oportunidade para pontuar a importância dos papéis em sua vida: “Emprestar tanto de mim e receber tanto das minhas personagens tem muito a ver com quem eu sou na vida, com os meus interesses sociais e políticos como ser humano e em tudo que acredito. Estar sempre de encontro com essas ideias acaba me presenteando com personagens que falam de temas muito caros para a sociedade. Gosto de debater sobre eles, sou militante e adoro trazer esses tópicos para a superfície. Sou uma artista do meu tempo, um espelho da minha sociedade. Não abro mão de comparar papéis tão importantes e caros a mulheres com as minhas vida pessoal e social”.
Hospital Psiquiátrico Colônia de Barbacena
O filme retrata os horrores e abusos acontecidos no Hospital Psiquiátrico Colônia, em Barbacena, Minas Gerais. Grande parte dos internos colocados à força no local era alcoólatra, homossexual e mães solteiras, como a personagem de Fernanda. Ali, eles viviam nus, forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou nas próprias celas. Aproximadamente 60 mil pessoas morreram de fome, frio ou diarréia até o fechamento do manicômio, na década de 1990.
Como forma de preservar a memória dos horrores, a cidade transformou os pavilhões do hospital no Colônia no Museu da Loucura. O movimento de acolhimento de pessoas com transtornos mentais e de cuidado, abraçado a partir dos anos 2000 pelo museu, correu o mundo em direção a uma nova ótica da saúde mental.
Um Lugar Ao Sol
Outro trabalho desafiador para Fernanda foi encarnar a jovem Cecília na novela “Um Lugar Ao Sol”, em que teve que abordar o abuso sexual e a violência contra a mulher. Curiosamente, a atriz expõe a atração que tem por papéis de complexidade no audiovisual, sobretudo aqueles que tratam de abusos e traumas femininos.
“Me identifico com todas as personagens de alguma forma, mas não acredito ser uma exclusividade minha. É algo dado a todas as mulheres de certa forma por conta da nossa sociedade tão machista e patriarcal. Tive muito carinho pelas dores delas porque vivi situações similares, então lido e trato com essas personagens como se emprestasse um pouquinho de mim para elas: é orgânico, mas palpável. Conforme as vivências das personagens nas tramas se desenrolam, tenho reflexões filosóficas e pensamentos diferentes”, confessa com emoção.
Outros projetos
Fernanda Marques também participou do último filme da trilogia “A Menina que Matou os Pais”, “A Menina que Matou os Pais: A Confissão”, com o texto de Raphael Montes. O sucesso dos dois primeiros longas, lançados em 2021 e 2022 respectivamente, deixou o público na expectativa da continuação da narrativa do assassinato cometido por Suzane von Richthofen. Sobre a experiência, a atriz confessou não ser fã do gênero true crime, mas que trabalhar ao lado do autor e roteirista Raphael Montes a impactou bastante. Segundo a artista, os roteiristas se basearam inteiramente nos relatos recolhidos para a abordagem cinematográfica da trama. O filme está disponível no catálogo do Amazon Prime desde 27 de outubro.
Por outro lado, ela compartilha curiosidades do projeto “Beleza Fatal”, primeira novela da HBO Max. Com estreia marcada para o ano que vem, a novela apresenta um elenco de peso com as artistas Camila Queiroz, Camila Pitanga, Giovanna Antonelli e Caio Blat. Com experiências no audiovisual da série “Bom Dia, Verônica”, Raphael Montes também assina o roteiro deste trabalho.
A artista explica que a HBO está motivada a investir nas novelas por entender o impacto desses tipos de produção audiovisual no Brasil. “A novela tem tudo para dar certo. O escritor e roteirista Raphael Montes tem um dom muito grande com a escrita, mas está envolvido em algo completamente diferente do formato que está acostumado nos livros: a novela. O roteiro é genial. Parece que ele colocou dez novelas dentro de uma só. É uma novela que vai surpreender os espectadores brasileiros do início ao fim, com muitos plots twists. Acontece muita coisa que dá ganchos gigantescos para os próximos episódios”.
Ao captar a essência dramática e emocional das novelas brasileiras, “Beleza Fatal” se trata de um projeto marcado pelos sentimentos de raiva e vingança das protagonistas. Na trama, a jovem interpretada por Camila Queiroz vê a mãe ser presa injustamente por conta da tia Lola, Camila Pitanga. A partir de então, ela busca se vingar a todo custo da mulher.
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