O mês corrente é o que traz à tona o debate sobre a violência contra a mulher. O Agosto Lilás existe desde 2016, ano em que se celebrou o decênio da Lei Maria da Penha – promulgada a 07/08/2006. A lei 11.340/2006 considera o crime de violência doméstica e familiar contra a mulher como sendo “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Até o dia 31 e agosto, secretarias e órgãos públicos trarão à cena políticas para estimular a conscientização sobre a necessidade do fim da violência às mulheres. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de violências contra a mulher só faz aumentar. Apenas no último ano foram mais de 18 milhões de vítimas, e a maioria delas reside no Brasil profundo. Cada vez mais, a teledramaturgia tem levado ao ar temas como esses, seja para alertar e conscientizar a gravidade desta temática, seja para informar às mulheres que elas podem denunciar seus parceiros, caso sejam vítimas deste tipo de agressão, que de acordo com a Lei 13.104/45, de 2015, a Lei do Feminicídio, ao agressor, pode haver pena de doze a trinta anos de reclusão.
Como não está apartada da sociedade, a televisão reflete muito deste comportamento. A novela “Vai na Fé” traz um homem narcisista, Theo (Emílio Dantas), que violentou a protagonista Sol (Sheron Menezes), que dele ficou grávida. O vilão também estuprou outras mulheres e por isso foi julgado – e inocentado. Em novelas mais antigas, como “Pecado Capital” (1975), o protagonista Carlão (Francisco Cuoco) achou-se no direito de ameaçar agredir a namorada Lucinha (Betty Faria) por conta de ela haver feito um ensaio fotográfico de biquíni. Vinte anos após, em 1995, “História de Amor“, que está sendo reexibida, tem uma agressão e uma ameaça, todas vindas dos personagens principais: Caio (Ângelo Paes Leme) agride a namorada Joyce (Carla Marins), que está grávida, já no primeiro capítulo. E em “A Próxima Vítima”, a personagem de Cláudia Ohana foi agredida pelo noivo quando este toma conhecimento de uma traição. E depois a personagem é esfaqueada pelo amante, Marcelo (José Wilker) [1944-2014]. Em recente entrevista ao programa “Conversa com Bial“, a atriz comenta que “A personagem apanhava muito e as pessoas ficavam muito felizes em vê-la em sofrimento, diziam que ela merecia. Hoje em dia não se pode fazer uma cena dessa. Espancar uma mulher por que traiu? Imagina se todo homem traidor fosse espancado?”
Veja cinco casos de novelas no qual o feminicídio e/ou a violência contra a mulher teve importância fundamental na narrativa e como provocou – ou não – debate. Atualmente no ar, três novelas propõem uma discussão sobre o tema. Em “Terra e Paixão“, Lucinda (Débora Falabella) já passou por algumas agressões e foi aconselhada a procurar a delegacia. “Mulheres Apaixonadas“, em reprise, foi uma das primeiras a trazer e a problematizar o assunto de forma aprofundada. Naquela época não havia a Lei Maria da Penha e o agressor de mulheres, Marcos (Dan Stulbach) teria como pena, se não tivesse morrido, o pagamento de cestas básicas.
Vai na Fé (2023)
Na atual trama das sete, “Vai na Fé”, escrita por Rosane Svartman, Sol, a heroína defendida por Sheron Menezzes, foi vítima de estupro e como consequência deste abuso, acabou engravidando do seu agressor, o empresário Theo (Emílio Dantas). Uma reviravolta acontece quando Jenifer (Bella Campos) decide saber quem é o seu verdadeiro pai biológico, o que vai obrigar a cantora a relembrar todo o sofrimento que passou para criar a filha sozinha, sem o apoio do pai criminoso. Mesmo com os depoimentos de mulheres acusando-o pelas violências, Theo foi inocentado. O depoimento das mulheres, tal como ocorre nas delegacias reais, foram compreendidos como insuficientes para levar à prisão o violentador: “Considerando a ausência de provas materiais e acolhendo as provas testemunhais com seu devido peso, as dúvidas razoáveis levantadas pela defesa não foram sanadas. No mérito, a materialidade do crime de estupro de vulnerável não restou comprovada. In dubio pro reo. Absolvo Theo Camargo Bastos”, disse o juiz Fenerich (Paulo Reis).
Mesmo se tratando de um assunto espinhoso, a carismática novela constantemente aparece nos assuntos mais comentados das redes sociais como o X – antigo Twitter. E alcança cerca de 25 pontos, no IBOPE da Grande São Paulo.Um Lugar ao Sol (2021)
Outra novela que mostrou em detalhes as etapas da violência contra a mulher, culminando no feminicídio foi “Um Lugar ao Sol“, de Lícia Manzo. A manicure Stephany (Renata Gaspar) era casada com ciumento e agressivo Roney (Danilo Grangheia), que a proibia de trabalhar fora de casa. O drama da personagem se intensificou quando o taxista passou a acusar Érica (Fernanda de Freitas) de influenciar a irmã a deixar de ser uma mulher submissa e de aceitar as agressões que sofria. A partir de então, ela se sente fortalecida e passa a viver um relacionamento extraconjugal com Renato (Cauã Reymond), que através de uma chantagem, chega a pagar um flat para ela. Na reta final da história, Stephany é sequestrada por Roney, que tenta estupra-la. Quando se desvencilha do marido, ela foge em direção a um matagal e logo em seguida é alvejada com um tiro. O trágico fim de Stephany foi uma amostra do crescente aumento dos casos de feminicídio, levantados pelo portal G1 em parceria com Núcleo de Estudos da violência da USP e o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), com base de dados oficiais dos 26 estados, mais o Distrito Federal, que apontaram que em 2022, cerca de 1,4 mil mulheres foram assassinadas no Brasil.
Importante destacar que não apenas esta personagem passou pela violência do estupro. Cecília (Fernanda Marques), alcoolizada, foi estuprada na saída de uma festa e descobriu uma gravidez tubária – quando o óvulo fertilizado se desenvolve fora do útero. Perguntada sobre a gestação, a personagem disse ser devido a uma “situação bizarra“. Não são poucas as mulheres que não reconhecem que passaram por esta situação e outras que esquecem ou ão lembram de haver passado por isso. Na última semana de julho deste ano, uma mulher passou pela mesma violência que a personagem Cecília, enquanto saía de um show, em Minas Gerais.
A Próxima Vítima (1995)
Se atualmente a violência doméstica é combatida de maneira contundente em nossa teledramaturgia, antigamente as novelas mostravam esse tipo de crime, como uma espécie de “corretivo”. Nesses casos, a justificativa para esse tipo de ação se dava pelo fato de a personagem do sexo feminino não seguir com os padrões morais que a sociedade da época seguia. Em “A Próxima Vítima” , Isabella Ferreto (Cláudia Ohana) mantinha um romance secreto com o seu tio, Marcelo (José Wilker). Até que no dia do seu casamento, o então noivo Diego (Marcos Frota), flagrou-a em adultério e, numa sessão de humilhação, agrediu a noiva diante dos convidados e jogou-a escada abaixo. Já num relacionamento estável com Marcelo, ela envolve-se com Bruno (Alexandre Borges) e é flagrada em traição. O personagem de José Wilker não só a agride aos bofetões como esfaqueia a mulher, deixando marcado seu rosto. Em recente entrevista ao programa “Conversa com Bial“, Cláudia Ohana diz que este é o “retrato de uma época. As pessoas sentiam prazer e felicidade em ver a mulher ser espancada por haver traído”.
A Gata Comeu (1985)
Cultuada por toda uma geração, “A Gata Comeu” (1985), de Ivani Ribeiro (1922-1995) é talvez o folhetim mais significativo quando o assunto é violência contra a mulher. A novela que teve como título provisório “Pancada de Amor Não Dói”, se baseava na relação de gato e rato entre a mimada Jô Penteado (Christiane Torloni) e o professor Fábio (Nuno Leal Maia), cujo romance era sustentado à base dos tapas. Ficou famosa a fase que Fábio proferiu após revidar uma bofetada que levou de Jô: “Bateu, levou!”. Além disso, a história apresentou outros casais, como Paula (Fátima Freire) e Tony (Roberto Pirillo), que viviam um relacionamento misógino, com destaque para a romantização do machismo e da violência.
Em entrevista ao Site Heloisa Tolipan em setembro do ano passado, Christiane Torloni comenta que “Cabe à sociedade observar estas obras como um espelho daquele momento. Graças a Deus, agora nós temos leis que dizem que relações como aquela não podem ser. Acho que isso é antropologia dramatúrgica. A gente não pode cancelar o processo, já que nós somos fruto dele, então vamos fazer o nosso melhor. Mas nunca apagar o passado. A gente não pode esquecer dele. Tanto Manoel Carlos como Ivani Ribeiro são pessoas que lidavam na sua dramaturgia com situações absolutamente contemporâneas, daí a identificação com os personagens”.
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Vidas Opostas (2006)
Em “Vidas Opostas” (2006), de Marcílio Moraes na Record, a novela mostrou, sem nenhum pudor, o “romance” entre Nogueira (Marcelo Serrado) e Erínia (Lavínia Vlasak), repleto de ofensas, chantagens e violência sexual. Erínia foi violentada por Nogueira, seu amante. Lavínia Vlasak detalha a cena: “Nossos personagens tinham um relacionamento e ele era psicopata. (…) O noivo da personagem, Miguel (Leo Rosa [1983-2021]), liga para ela e Nogueira obriga-a a falar por telefone com seu parceiro enquanto a estupra”, contou a atriz ao podcast Papagaio Falante, dos comunicadores Sérgio Mallandro e Renato Rabello. Vlasak fala, inclusive, que tratou-se de uma relação anal, que, pelo teor do contexto, não foi consentida. Para a atriz, esta foi uma das cenas mais difíceis que fez. “O corpo da gente não sabe que é encenação. Uma parte de nós sabe que sim e outra não. Eu fiquei uns minutos sentada, chorando e pensando que houve gente que já passou por isso. Afinal, a violência sexual acontece”. A cena, muito agressiva, nem de longe parece com as que atualmente ocupam a teledramaturgia da Record, voltada aos produtos bíblico-religiosos.
Disque 180
A denúncia de violência contra a mulher pode ser feita em delegacias ou órgãos especializados. O “Ligue 180” funciona 24 horas por dia e é um serviço confidencial.
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