* Por Alexandre Schnabl
Depois de inventar o terror espacial, transformando uma astronave em ambiente tão assustador quanto uma casa mal assombrada (“Alien –o oitavo passageiro”, TwentiethCentury Fox, 1979), antecipar em mais de 20 anos a globalização (“Blade Runner”, Twentieth Century Fox, 1982), imprimir contornos ‘mulherzinha” no road movie (“Thelma & Louise”, Pathé Entertainment e MGM, 1991) e por o gênero épico de novo na berlinda (“Gladiador”, Dreamworks SKG e Universal Pictures, 2000), Ridley Scott prova porque é um dos maiores artesões da Hollywood atual introduzindo o filme bíblico dentro dos cânones do novo espetáculo com “Êxodo: deuses e reis” (Exodus: Gods and Kings, Chernin Entertainment e outros, 2014), produção que reconta a história de Moisés e sua luta para libertar os hebreus dos 400 anos de jugo no Antigo Egito. O longa-metragem estreia nesta quinta-feira (25/12) nos cinemas e, depois dele, nenhum filme religioso será igual.
Ao contrário da visão soturna e estilizada de Darren Aronofsky com seu “Noé” (Noah, Paramount, 2014), Scott opta por fazer cinemão da maior qualidade, seguindo os parâmetros do cinema-espetáculo definido por Cecil B. DeMille na Era de Ouro, mas obviamente atualizando a trama, dotando os personagens de profundidade emocional e se fartando do melhor que a pesquisa histórica, o cinema digital, a tecnologia 3D e a direção de arte conseguem oferecer atualmente às massas. Avassalador, o resultado se revela um acerto de cabo a rabo, sobretudo quando tira o príncipe do Egito de uma postura de complacente enviado de Deus para impregná-lo da audácia, arrogância e ímpeto que fazem dele um líder com uma missão hercúlea, quase um super herói. Ao invés de uma lição moral, a realização assume a função de filme de ação, indo de encontro ao gosto do público e fornecendo veracidade a uma passagem do Velho Testamento que tem sua dose de fábula.
Comprometida com o momento atual, em que as celebridades exercem na mídia contemporânea caráter tão divínico quanto o de um faraó – e quando a moderna vida além-túmulo se consolida através de nível de espetaculosidade que transcende meros 15 minutos de fama que nem o deus Anúbis poderia imaginar – o filme brinca com o mundo de hoje, transformando a antiga civilização egípcia em espelho do agora. Portanto, chega a doer no peito a rápida cena em que Seti senta com Ramsés e Moisés para definir o que deverá ser esculpido para a posteridade em um obelisco, após vitória esmagadora numa batalha. Prova de que a manipulação da mídia através do espetáculo é tão velha quando Matusalém.
Fotos (Divulgação)
No mais, o realizador encontra o ponto certo para despertar nos espectadores aquela catarse que toda produção bíblica deveria ter e que havia ficado estagnada com o avanço das décadas, as novas demandas pós-revolução sexual, a escalada da violência global e o imposição do ritmo frenético na edição cinematográfica. Em seu périplo para por a religião católica de novo nos trinques, o Papa Francisco I tem muito a aprender com o cineasta.
Nesse âmbito, fica clara a escolha de Christian Bale para o papel de Moisés. Em momento em que os blockbusters da Marvel Comics (leia-se Disney, entre outros) e DC Comics (chancela da Warner Bros) são o que há de mais rentável na indústria audiovisual, é um trunfo e tanto escalar quem já viveu Batman na tela para dar vida a um protagonista que é muito mais general do que guru espiritual, ainda mais considerando que o ator é um dos melhores de sua geração. Só mesmo alguém com poderes comparáveis aos do Superman para cumprir a inglória tarefa de abrir mão da boa vida palaciana, libertar 400 mil indivíduos da escravidão, lidar com o poderio bélico da maior potência na época e ainda conduzir seu povo pelo deserto a pé usando sandália rasteirinha. Haja calo.
Preciosista que cria universos à perfeição acompanhando cada produção nos mínimos detalhes, o diretor dá um passo além em sua filmografia, mostrando que também é bom de roteiro. E os dois trechos mais esperados do longa – as dez pragas do Egito e a travessia do Mar Vermelho – são resolvidos tanto tecnica quanto cenicamente de uma forma que nem Deus faria melhor. A maneira como se sucedem as maldições sobre a terra dos faraós é de plausibilidade absurda e seu encadeamento verossímil, acerto tão grande quando renovar os milagres através do the best da computação gráfica.
Para não sair do prumo e se manter no eixo, fica evidente que Ridley Scott abusa da fórmula que inventou em “Gladiador” e continuou usando nos épicos seguintes (“Cruzada” e “Robin Hood”). Está tudo lá e ele se repete sem medo de contar a história: a cena inicial de uma luta que revela o poderio militar de uma potência (em “Gladiador”, os romanos na campanha contra os germanos; agora, os egípcios dizimando uma ofensiva hitita); a apresentação do caráter dos personagens nesse prólogo; um triângulo formado logo de cara por um soberano sábio descontente com seu próprio sangue, mas que tem um preferido para sucedê-lo no trono (Marco Aurélio-Maximo-Cômodo no filme passado no Império Romano; em “Êxodo”, Seti-Moisés-Ramsés); e o heroi que perdeu tudo e, se não tem nada mais a arriscar, pode cair de cabeça numa missão impossível para, depois, resgatar a segurança do seio familiar.
Assim, é visível a preocupação da equipe de reciclar referências que já fizeram a delícia de plateias passadas e ainda hoje impressionam: a arquitetura colossal de Mênfis se equipara à magnitude cenográfica de “Cleópatra” (idem, de Joseph L. Mankiewicz, Twentieth Century Fox, 1963) , o rigor histórico é comparável à serie “Roma” (Rome, HBO, 2005-2007) e as cenas de multidão têm muito de “Os dez mandamentos” (The Ten Commandments, de Cecil B. DeMille, Paramount, 1956), mas também esbarram naqueles registros de formigueiros humanos, tipo Serra Pelada, que fotógrafos como Sebastião Salgado são mestres em retratar.
E, se a equipe de direção de arte manda bem para caramba, a figurinista Janty Yates – colaboradora contumaz de Scott – merece uma menção pelo esplêndido figurino, que além de homenagear “Cleópatra”, bebe de fontes seguríssimas: “Medéia, a feiticeira do amor” (Medea, de Pier Paolo Pasolini, San Marco e outros, 1969) e “Satyricon” (idem, de Federico Fellini, Produzioni Europee Associati, 1969), além da própria “Roma”.
Sigourney Weaver, atriz que já foi fetiche do diretor e agora comparece na pele da rainha-mãe, John Turturro (esplêndido!), Sir Ben Kingley (Nun) e Maria Valverde (Zipporah) sintetizam, cada qual em suas composições, a excelência do trabalho da costume designer.
Trailer oficial (Divulgação)
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