Exclusivo: Novelas censuradas na Ditadura Militar não estarão no ‘Projeto Fragmentos’, do Globoplay, apenas as exibidas


O Globoplay vai levar ao ar o Projeto Fragmentos, no qual novelas incompletas serão disponibilizadas na plataforma. A primeira leva, com quatro folhetins, será exibida na semana que vem, dia 22. Contudo, há novelas que a Globo produziu, no período da Ditadura Militar dos anos 70, e foram censuradas pelo então Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), às vésperas de serem levadas ao ar, como “Roque Santeiro” (1975) e “Despedida de Casado” (1977), que ficarão de fora. O Globoplay aponta que estas não estão previstas de entrar no Projeto Fragmentos, e lamentavelmente, ainda que tenham valor histórico, talvez nunca sejam vistas

*por Vítor Antunes

A partir do dia 22, o Globoplay estará disponibilizando as primeiras novelas do ‘Projeto Fragmentos’. Neste, as tramas incompletas e muito prejudicadas em sua narrativa serão disponibilizadas. As primeiras novelas a estarem na plataforma serão “Estúpido Cupido“(1976), “O Rebu” (1974), “Chega Mais” (1980) e “Coração Alado” (1980). Todas estas, com poucos episódios disponíveis. Outros títulos, como “Sol de Verão“, também serão vistos no “Fragmentos”, já que muito pouco há da trama de Manoel Carlos. Em julho do ano passado, Erick Brêtas, diretor do Globoplay, afirmou que “dos 137 capítulos originais de “Sol de Verão“, restaram apenas 8”. Ou seja, ela poderá ser vista apenas no “Fragmentos”. Agora, porém, mais uma tristeza para os noveleiros. Entre as novelas censuradas da Globo no período da ditadura militar no Brasil, há dois títulos que chegaram a ser gravados, foram censurados e não puderam ser levados ao ar: “Despedida de Casado” (1977) e “Roque Santeiro” (1975). Ainda que tenham alguns capítulos gravados, estas novelas dificilmente verão a luz do dia – ou o play da Globoplay: “Os projetos Fragmentos e Resgate preveem a publicação de novelas que foram exibidas pela Globo e que têm capítulos preservados no acervo. As duas novelas não estão previstas nos projetos”. Deste modo, segundo a emissora, apenas as obras que foram levadas ao ar, a despeito de seu valor histórico, serão hospedadas no Globoplay.

Regina Duarte e Antonio Fagundes eram o casal protagonista de “Despedida de Casado”. Novela não foi levada ao ar e não ganhará segunda chance no Globoplay (Foto: Reprodução)

HISTÓRICO

Quando “Despedida de Casado” foi preparada para ser levada ao ar ainda vigia a Ditadura Militar no Brasil. Mais que isso, ainda não existia o divórcio no Brasil. Para o governo em vigor, casamento era algo indissolúvel e ainda que a Lei do Divórcio já estivesse tramitamdo e em vias de ser aprovada, não servia para casamentos em crise, mas à “finalidade primeira de regularizar situações de casais impedidos de unirem-se pelo matrimônio”, é o que dizia Rogério Nunes, censor e diretor do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). Ele diz que “[A novela] explora de forma parcial, apenas os pontos negativos da união matrimonial, projetando para o espectador uma visão pessimista e uma série de mensagens nas quais aponta que o casamento, em geral, transformou-se numa instituirão falha, ultrapassada, só mantida nos dias atuais a custa de sacrifícios, e constituindo-se, assim, em insuportável fardo para os casais”. Diante das falas de Nunes, a proibição da novela “Despedida de Casado“, deveu-se, também por ela conter “amor livre, infidelidade conjugal, adultério, ódio no seio da família, desrespeito dos filhos pelos pais e por mostrar o casamento como uma instituição falida, ultrapassada e sem condições de se manter dentro da estrutura social de hoje”. Praticamente o mesmo conteúdo escrito por Rogério endereçado à Globo e citado anteriormente, foi encaminhado para outros três telespectadores, que também comunicaram-se ao SCDP, pedindo pelo veto à trama.

A novela estrearia no início de 1977, substituindo “Saramandaia”. Durante todo aquele ano a Globo tentou a liberação da novela – que havia sido aprovada anteriormente, tanto que as gravações haviam sido iniciadas. Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), chegou a endereçar uma carta ao SCDP, após a aprovação da Lei do Divórcio, em 1978, pedindo que a trama fosse levada ao ar: “Certos da sua compreensão, porque conhece a fundo as dificuldades que enfrentamos com a comprovada e lamentável carência de bons textos nacionais escritos especialmente para a televisão, vimos consultar V. Sa. sobre a possibilidade de um reexame da telenovela “Despedida de Casado“, de autoria do sr. Walter G. Durst, uma vez que varias das situações nela existentes praticamente se esvaziaram ou modificaram com a instituição do divórcio no Brasil, em 1978″, disse Boni. Porém Rogério Nunes foi tácito. “O divórcio, apresentado como argumento para o pedido, segundo entendemos, não veio para dar guarida à dissolução familiar. Não há possibilidade de reexame da novela”. Segundo Regina Duarte declarou a um jornal cubano, em 1983, cerca de 30 capítulos foram gravados. Sem a aprovação de “Despedida”, todo o elenco foi reaproveitado em “Nina” (1977).

Rosamaria Murtinho e Isabela Garcia estariam no elenco de “Despedida de Casado” (Foto: Reprodução/Globo)

Outra novela vetada foi “Roque Santeiro”. A trama de Dias Gomes seria levada ao ar em 1975, mas diferentemente de “Despedida”, teve melhor sorte e ganhou um remake dez anos depois, dando origem a uma das novelas de maior sucesso da História da teledramaturgia. A espinha dorsal da trama era a mesma – inclusive alguns atores foram mantidos. “Roque Santeiro” foi aprovada, porém com muitas ressalvas naquele meado dos Anos 1970. Também em documentos conseguidos junto ao Arquivo Nacional, o censor Rogério Nunes disse que “os textos dos capítulos de 01 a 20 da novela intitulada “A Fabulosa Estória de Roque Santeiro“,
de Dias Gomes, foram aprovados para apresentação após 20h, (…) nos textos estão assinaladas as passagens que devem ser suprimidas, levando em conta o horário das apresentações, como também é preciso situar a estória no ano de 1960. (…) Merecem especial cuidado da direção as cenas em que Tito e Linda se encontram deitados (cap. 4 – pag. 07 e 03), bem como as dos beijos entre Roberto e Linda, assistidas pelo marido (cap. 07 –
pag. 06-07 e 08)”. Há de se levar em conta que Tito (Luiz Armando Queiroz) era o marido de Linda (Sandra Barsotti) e ela, na novela, interpretava uma atriz. A cena a qual o censor se refere, a de Linda com Roberto (Dennis Carvalho), é uma na qual a personagem de Linda beija seu par romântico no filme que havia dentro da novela.

Betty Faria e Lima Duarte eram Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, em 1975 (Foto: Divulgação)

Depois de receber uma nova leva de capítulos, Rogério Nunes considerou “Roque” inadequada para a faixa das 20h, redirecionando-a para maiores de 16 anos, e com exibição às 22h “sujeita, ainda, a vários cortes, com o fim de suprimir cenas e situações inconvenientes
para apresentações pela televisão”. Além dele, o Diretor-Geral do SCDP, Moacyr Coelho apontou que a trama não poderia ser exibida às 20h por “ser inadequada para o telelespectador juvenil , quer pelo impacto de cenas e diálogos, quer pela mensagem, quer pelo grau de influência dos personagens, que são revoltados, prostitutas, adúlteros, levianos, aproveitadores, fanáticos, etc. (…) A Divisão de Censura e Diversões Públicas tem instruções no sentido de não mais tolerar cenas que agridam os padrões normais da vida no lar e na sociedade, ou que possam ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacional”.

Ainda que tivesse sua aprovação questionada, cria-se que “Roque” seria levada ao ar. Estava com mais de 50 capítulos escritos e mais de 30 gravados. Porém, Dias Gomes, que era monitorado pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), confidenciou a um amigo que a novela era a adaptação de “O Berço do Herói“, peça de teatro que, efetivamente estava proibida. Daí, não teve conversa. A novela acabou vetada em caráter irrevogável. Atualmente, pouco de “Roque Santeiro” (1975) pode ser acessado além de algumas cenas e de sua abertura original. O elenco que faria a novela proibida acabou remanejado para “Pecado Capital” (1975).