* Por Carlos Lima Costa
Sura Berditchevsky foi uma das estrelas jovens mais incensadas na televisão, no final dos anos de 1970 e início da década de 1980, desde sua estreia em Dancin’Days e passando pelos sucessos de Marron Glacê e Plumas e Paetês. A partir de Barriga de Aluguel, exibida até junho de 1991, virou presença bissexta na televisão. Mas nunca abandonou a profissão. Abriu novas frentes de trabalho sendo atuante como professora de teatro, autora de livro infantil, diretora, produtora, preparadora de elenco ou atuando como atriz no palco. Sura, que completou 69 anos nesta sexta-feira, dia 1º, vive novamente um momento fértil na televisão. Depois de integrar o elenco da novela Gênesis, na Record TV, ano passado, ela está com duas séries inéditas no streaming: Em A Maga de Aruna, seu primeiro trabalho para a Disney+, ela interpreta uma das bruxas, ao lado de nomes como Ernani Moraes. E em Fim, do Globoplay, baseada em livro homônimo de Fernanda Torres, ela vai surgir no papel da mãe do personagem central. “Eu tenho um carinho absurdo pela Fernandinha, porque ela foi minha aluna quando tinha 13 anos de idade”, diz a veterana que deu aulas também para nomes como Tatá Werneck, Patricia Pillar e Lúcia Veríssimo, entre outros.
Essa nova etapa é um reflexo de uma necessidade que tomou conta dela, em 2018, quando começou a sentir uma urgência de voltar a atuar com mais frequência e não de forma espaçada como vinha acontecendo. “Eu não sabia ainda, mas estava muito insatisfeita. Eu vinha dirigindo, lecionando, produzindo. Então, interrompi a minha atividade como professora, tirei um tempo para me reciclar, fui pra CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) concluir uma faculdade. Humildemente fui ali estudar e foi a melhor coisa que eu fiz, me dar esse tempo para entender, inclusive, com mais profundidade, tudo que eu tinha feito”, lembra. Naquele ano, fez uma participação na trama de Apocalipse, na Record TV. Em seguida, teria gravado a série Fim, mas veio a pandemia e ela foi retomada esse ano.
Do início da carreira na TV, ela guarda muitas lembranças boas de novelas como Dancin’ Days e Marron Glacé (1979/1980), um dos maiores sucessos dela, ao lado de Louise Cardoso. “Foi maravilhoso, porque nós éramos muito transgressoras. Vínhamos do teatro e não tínhamos uma preocupação de fama, celebridade, como é hoje, sucesso rápido. Aprendi muito com os atores mais velhos, imagina ficar um ano trabalhando com Mário Lago (1911-2002), Yara Amaral (1936-1988). Aprendi muito com pessoas maravilhosas. E, principalmente, eu queria aprender. Essa é a diferença da minha geração. Hoje em dia, não vemos muito isso nos jovens com os atores mais velhos. Tem uma pegada diferente. Tinha a direção do Daniel Filho e dos que estavam começando a dirigir, Dennis Carvalho, Marcos Paulo (1951-2012). Depois, a época do Paulo Ubiratan (1947-1998) e do (Roberto) Talma (1949-2015) foi o momento que eu não era chamada para trabalhar. Não sei se foi coincidência ou não. Eu também estava completamente envolvida com as minhas coisas, então, praticamente não os conheci”, frisa Sura, que é neta de imigrantes judeus da Rússia e da Romênia.
“Meus quatro avós vieram dessa região toda que está tendo a guerra agora. Eles fugiram e vieram para o Brasil depois da Primeira Guerra Mundial, no início dos anos de 1920, quando o antissemitismo era um absurdo. Meus pais já nasceram aqui. Eu sou cria do entreguerras”, relembra ela, que nunca conheceu as terras dos avós, e, no momento, está horrorizada com o embate entre Rússia e Ucrânia. “Em pleno 2022, é uma loucura ainda ter uma guerra acontecendo no planeta. Ao mesmo tempo é muito doido porque a dramaturgia e a literatura russa são absurdamente humanistas. Então, é um disparate ver o autoritarismo, a perseguição com as minorias, essa matança sem dó”, reflete a atriz.
Judia, ela se choca com os neonazistas e a onda da extrema direita conservadora no mundo. “É apavorante. E um horror também ver como muita gente não conhece a História nem do Brasil ou do mundo. Falo de jovens e de pessoas mais velhas, que não sabem o que foi o Holocausto, o que aconteceu no Ocidente ou no Oriente, não sabem das guerras… Junto com isso, vivemos nesse governo com todas as fake news, que são uma lavagem cerebral. Na pandemia, fiquei um ano e dois meses dentro do meu apartamento sem sair para ir no corredor. O que mais me deixou e me deixa ainda fora do eixo e angustiada é o que nós estamos passando no Brasil, especialmente com esse governo. A cada dia é um sobressalto, somos presenteados no mau sentido, surpreendidos com notícias horríveis, atitudes horrorosas, vendo mais gente nas calçadas, pessoas com nível de miserabilidade”, lamenta ela, que, em abril, gravou a narração do livro Os Outros Schindlers, disponível na plataforma da Ubook, que conta a história de anônimos que arriscaram as vidas para salvar judeus do Holocausto.
Atenta a tudo que acontece na sociedade, mostra sua atitude de cidadã, contando uma situação corriqueira, que ilustra muito como ela se sente. “Estava em um supermercado onde estão diminuindo o número de caixas registradoras e colocando aquele terminal de auto atendimento. Fiquei tão indignada, me recusei ir para uma dessas caixas e fiquei em uma fila com uma mulher com um milhão de pacotes. Falei que não ia sair dali, porque estava defendendo o emprego das caixas. Tinham pessoas rindo de mim, a própria empacotadora, como se eu fosse maluca, surtada, estressada. Chamei o gerente, falei sobre como um supermercado caríssimo desemprega as pessoas. Não pode fazer isso nesse país que estamos vivendo. Todo mundo que pode manter o emprego de alguém, tem obrigação moral e ética. Isso é uma questão de humanidade. Fiz um discurso, estava quase subindo em um banquinho. Falei que sou cliente deles há 30 anos, que se continuarem com essa política, vou parar de consumir ali”, conta e relembra sua trajetória.
Formada no Tablado com Maria Clara Machado (1921-2001), na década de 1970, logo foi escolhida para integrar o corpo de professores docentes. “Eu era novinha quando comecei a lecionar teatro”, lembra. Ela fazia todas as peças do repertório adulto e infantil do espaço. “Para a minha entrada na televisão, eu achava que precisava estudar, não tinha a pressa que se tem hoje. Não queria ficar famosa rapidinho”, lembra ela, que chegou a cursar Comunicação, interrompendo no terceiro ano para se dedicar ao Tablado. Em 1976, começou a ser convidada para atuar no cinema e logo estreou na TV com o especial, Marcha Fúnebre, ao lado de Diogo Vilela e Tereza Rachel (1934-2016).
“Logo depois, Daniel Filho me convidou para fazer Dancin’ Days, que foi uma maravilha, sucesso absoluto, 90 e tantos de ibope. Então, foi uma transformação incrível na minha vida. Emendei com várias novelas, fazia cinema, mas não saí do Tablado. Aconteceram momentos em que eu gravava novela e no final de semana encenava duas peças, uma infantil da Clara, e, à noite, um espetáculo adulto, enfim, foi uma época efervescente. No início dos anos 80, atuei em A Serpente, última peça do Nelson Rodrigues (1912-1980). Foi sensacional, porque ele ainda estava vivo. Fiz cinco peças dele. Então, foi uma bênção dos deuses eu ter a Maria Clara, nossa dramaturga maravilhosa para criança, e o Nelson, um dramaturgo excepcional, nosso (William) Shakespeare (1564-1616)”, recorda.
Sura sempre gostou também de escrever e começou a se dedicar a literatura infantil. “Foi um processo difícil e conflitante no início, porque ao meu lado eu tinha a Maria Clara, esse exemplo maior. Mas, enfim, lancei uns livros para crianças que fizeram muito sucesso, tiveram uma aceitação incrível e foram adotados nas escolas, como Amor de Cão e Um Peixe Fora D’água, pela Nova Fronteira, e Os Olhos da Cara, da Record. Eu grávida, depois com Natasha pequena, comecei a viajar o Brasil inteiro autografando, dando palestras em escolas. Essas portas se abriram de um jeito incrível e aí realmente os trabalhos foram ficando mais espaçados na televisão”, conta.
Ela explica que esse lado do ator ser múltiplo, não era bem absorvido pelo público na época. Falavam ‘ah, agora ela só escreve para criança, agora só dirige’ e aí ela não era chamada para atuar na TV. Nesse meio tempo, atuou na peça A Sauna, um grande sucesso. Em seguida, começou a adaptar Peter Pan, do original, uma versão com a cara do Brasil, com músicas de Edu Lobo e Paulo César Pinheiro, outro mega sucesso, que ficou dois anos em cartaz e conquistou prêmios. Posteriormente, fez ainda a adaptação de o Diário de Um Adolescente Hipocondríaco, que falava sobre AIDS e DSTS na pré adolescência. Entre os mais de 40 atores, estava Tatá Werneck. “Ela era pequena e já muito talentosa”, recorda Sura, que abriu uma produtora e durante 12 anos produziu os próprios trabalhos.
“Quando pintava um papel na televisão ou no cinema era bacana, eu adorava, mas tinha que trabalhar no teatro, porque tinha uma equipe trabalhando comigo. Lecionar teatro me levou a direção e os meus espetáculos montados me levaram a aprender a produzir, então, fiquei dona do meu nariz e segui em frente”, relata.
Nesse percurso, realizou outros outras funções na Globo, atrás das câmeras. Foi preparadora de elenco e diretora, por exemplo, com a novela Era Uma Vez… (1998). “Eu fazia uma personagem importante na trama, mas a novela inteira fiz a preparação das crianças que eram os protagonistas. Fiz alguns trabalhos assim na TV e no cinema, como no filme Meu Nome Não É Johnny”, explica.
Quando decidiu que era hora de voltar a atuar com mais frequência, estudou na CAL, em uma turma só para atores já experientes, ao lado de nomes como Zélia Duncan, Luciana Braga e Bruce Gomlevsky, e durante a graduação, ela fez a preparação do elenco jovem da novela Um Lugar Ao Sol (2021/2022), da Lícia Manzo. “A galera jovem, não do público comum, mas estudante de teatro ou quem frequenta, me tem como referência como professora e diretora, porque eu formei muita gente lecionando desde 1971.” Ela, por exemplo, foi uma das diretoras do espetáculo Cócegas. E, há cinco anos, é jurada do Prêmio do Humor idealizado por Fábio Porchat. Em 2019, participou de A Primeira Tentação de Cristo, Especial de Natal do Porta dos Fundos. Em 2020, quando completava 40 anos da morte de Nelson Rodrigues, ela participou da montagem de Anjo Negro. “Queria pegar a questão do racismo estrutural, que Anjo Negro fala sobre isso. Foi um mergulho nessas questões que eu queria entender melhor” afirma.
Em sua trajetória, soube se desvencilhar de situações machistas. “Eu tive que aprender a me defender muito bem. Na época, nós não tínhamos agentes, então, a gente negociava, sabe, a gente conversava sobre trabalho, tinha muito assédio. Eu era novinha, bonitinha. Eu via coisas ali também, mas aprendi muito cedo na minha casa a me defender, então, fui criando uma maneira de poder estar nesse mercado e me impor como mulher, com minhas ideias. Eu sou fruto da geração de mulheres desbravadoras, como Norma Bengell (1935-2013), Leila Diniz (1945-1972), Dina Sfat (1938-1989), em quem me espelhei também na questão da opressão, da censura, da ditadura”, observa.
Como professora ou diretora, Sura trabalhou muito com criança. “Já nos anos de 1990, 2000, eu ficava muito chocada quando via mães de adolescentes, praticamente empurrando suas filhas para um caminho de sedução para conseguir fazer uma novela. Um feminino que eu achava ultrapassado, esse clichê da mulher e da menininha sensualizada para conquistar. Hoje, vemos isso direto no Instagram, em que o corpo é uma grande referência. Fico perplexa com esse tipo de colocação dessas moças tão jovens por esse caminho. Pessoas que ficam se postando sem nenhuma ideia por trás, a não ser o exibicionismo. Acho um horror, quando não tem criação, exibicionismo puro, narcisismo”, aponta.
No campo pessoal, Sura é avó de Vicente, 7 anos, herdeiro de sua única filha, a psicóloga Natasha, 38 anos. “Sou superavó, me viro para poder ter tempo para ele, mas assim, eu sou avó de mais quatro, porque considero os filhos dos meus enteados, irmãos da Natasha, como se fossem meus netos também.” Andréa tem o Lucas, 11, e a Helena, 2, e o Leonardo, é pai da Manoela, 10, e da Isadora, 8. “Eu e o pai da Natasha (Gilberto Otero, fotógrafo de cinema), não somos casados há muitos anos, mas graças a Deus, temos uma boa relação, todos se dão superbem, então, é a família que eu tenho. Sou uma mãe judia. Assim, foi dedicação total pra Natasha, que teve sorte também, porque a infância dela foi justamente quando eu estava produzindo e revisando esses trabalhos infantis, os livros e as peças. Ela estava sempre comigo. Atuou no Peter Pan e em outras peças. Depois, foi minha assistente no Tablado como professora, fez aula lá também, mas preferiu se dedicar a Psicanálise e adora o que faz. Mas não à toa casou com um produtor cultural, Pedro Ivo”, finaliza.
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