* Por Flávio Di Cola
Se a intenção do Presidente do Festival de Cannes Thierry Frémaux era homenagear a diva de Hollywood que transformou perante os olhos do mundo um falido e envelhecido principado de opereta num dos destinos mais cobiçados do planeta, parece que essa tentativa começou muito mal. Mas se o verdadeiro objetivo foi o de polemizar a festa máxima do cinema logo de cara com fofocas mundanas e bate-bocas, a escolha do filme foi acertada. A cinebiografia “Grace: a Princesa de Mônaco” (Grace of Monaco, 2014), dirigida por Olivier Dahan – o mesmo do consagrado melodrama “Piaf, um hino de amor” (La vie en rose, 2007) que imortalizou Marion Cotillard -, ao ser colocada na linha de frente da 67ª edição do festival, também jogou os holofotes da mídia internacional sobre as disputas nos bastidores do filme, sobre as fragilidades das biografias faz-de-conta perpetuadas pela indústria do cinema e sobre alguns fatos incômodos da própria história contemporânea desse microestado.
As polêmicas em torno de “Grace of Mônaco” começaram no final do ano passado quando Olivier Dahan e seus produtores franceses decidiram lançar o filme a tempo de garantir a sua participação na corrida pelo Oscar. O megaprodutor Harvey Weinstein, que detém os direitos de distribuição de Grace para o mercado norte-americano, se opôs a essa estratégia, considerando a “versão do diretor” inconclusa e prematura. O chefão de Los Angeles não parou por aí: como dono da superpoderosa The Weinstein Company, aproveitou-se de brechas nos complicadíssimos contratos de co-produção que atualmente norteiam a alta indústria audiovisual para exigir que o filme fosse remontado com um tratamento menos sombrio da vida da ex-estrela e princesa, e que – uma vez aprovada essa versão mais rósea – o seu lançamento fosse melhor planejado, até porque – nesta altura das discussões – o filme já estava sendo cogitado para abrir solenemente o Festival de Cannes 2014, ou seja, ganharia visibilidade praticamente gratuita no mais espetacular ponto de exposição para um só filme.
Sem uma data certa para lançamento, “Grace of Monaco” chegou às primeiras páginas da imprensa especializada americana e francesa pela porta do escândalo. O bate-boca atingiu um inesperado padrão escatológico quando Dahan chamou o projeto de remontagem de Weinstein de “a pile of shit” (um monte de bosta). Hoje, em Cannes, treme-se ao imaginar o que poderá acontecer quando diretor e distribuidor se cruzarem nos corredores do festival nos próximos dias.
Para envenenar ainda mais o clima da Côte d’Azur, normalmente delicioso nesta época do ano, os próprios membros da família real Grimaldi na figura dos filhos de Grace com o Príncipe Rainier III – Sua Alteza Sereníssima Príncipe Soberano Albert II e suas irmãs Caroline e Stéphanie – não só se recusaram a comparecer à abertura do festival como também divulgaram nota definindo “Grace of Monaco” como uma “farsa”, impregnada de “erros históricos”, de “glamourização vazia” e de “cenas puramente imaginárias”. Nicole Kidman ainda tentou compreender o ponto de vista dos três filhos para conciliá-lo com as supostas boas intenções do filme, mas suas declarações públicas soaram tão burocráticas como inúteis.
Na verdade, a oposição dos Grimaldi não é apenas contra a banalização da imagem de Grace. Há motivações muito mais sérias por trás: o filme aborda um curto e perigoso momento da vida da princesa e do seu reino – de dezembro de 1961 e novembro de 1962 – quando o Presidente da França General Charles De Gaulle pressionou o Príncipe Rainier no sentido de rever a política de impostos do principado já que a sua condição de “paraíso fiscal” sangrava as finanças do Estado francês ao servir de refúgio para as operações de grandes fortunas. A crise fiscal descambou rapidamente para a esfera diplomática quando a própria legalidade do status de principado foi colocada em questão e Mônaco correu o sério risco de ser absorvido pela República Francesa da qual depende até hoje em todos os campos, do militar ao econômico, passando pela defesa e infra-estrutura. Atualmente, todos os “paraísos fiscais” do mundo estão cada vez mais sob a observação severa de instituições governamentais. Mas o magnífico principado a bordo do Mediterrâneo ainda não fez a sua lição de casa para relaxar as regras de sigilo bancário, permanecendo na lista dos países não-cooperantes de várias organizações mundiais de desenvolvimento econômico-financeiro que combatem a evasão e a lavagem de dinheiro.
O filme “Grace of Mônaco” parte da tese de que a princesa atuou com destaque nos bastidores diplomáticos para evitar a ruptura entre o principado e a França, o que constrangeu e revoltou o seu marido. A partir desse episódio a vida conjugal do casal real esfriou e, segundo o tititi da corte, o príncipe e a princesa passaram a viver como dois estranhos, mantendo – todavia – as aparências a fim de sustentar a lucrativa imagem de Mônaco como um reino de conto de fadas. Assim, é fácil entender as razões do antagonismo do Príncipe Albert e irmãs em relação ao longa-metragem, ainda mais no contexto de um lançamento de gala a poucos quilômetros do Palácio Real.
Os ataques à imagem de Grace Kelly, tanto no papel de estrela de cinema como no de princesa, não se restringem aos escândalos momentaneamente disparados com o lançamento dessa cinebiografia. O mercado editorial também se aproveita para fazer as suas releituras e “correções históricas” da trajetória da mimada filha de uma próspera e tradicional família da Filadélfia e cultivada nos melhores colégios católicos do Leste americano, da garota linda (mas muito míope) que tenta a carreira de modelo em Nova Iorque, da atriz iniciante de televisão e – depois – da estrela de ascensão vertiginosa no firmamento de Hollywood, consagrada com o ‘Oscar de Melhor Atriz’ de 1954 por “Amar é sofrer” (The country girl) e como diva-fetiche de Alfred Hitchcock em três clássicos.
Desde os anos 1990, com o boom do filão das biografias autorizadas ou não, foram lançadas pelos menos três visões diversas de Grace Kelly, todas já publicadas no Brasil: a historiograficamente séria “Grace” (Idem, 1994) de Robert Lacey, a sensacionalista “A vida sexual das divas de Hollywood” (Sex Lives of the Hollywood Goddesses, 1997) e a oficial, mais recente e atualmente nas prateleiras das livrarias, “Grace Kelly, a vida da princesa de Hollywood (High Society: the Life of Grace Kelly, 2004) de Donald Spoto. Mas mesmo diferentes entre si, todas as três abordagens tiveram de levar em consideração os fortes indícios de que Grace passou o rodo em praticamente todos os galãs com os quais contracenou: Gary Cooper, William Holden, James Stewart, Frank Sinatra, Stewart Granger, Clark Gable e Jean-Pierre Aumont entre os mais cotados. Nos dias de hoje, ela seria facilmente classificada como “peguete”, mas uma pegadora de classe que dissimulava sua energia sexual atrás de grossas lentes de óculos de armação de tartaruga e de uma aparência serena.
Só o Mestre do Suspense soube condensar esses opostos a fim de criar uma das personas mais ambíguas e surpreendentes do cinema, ou em suas próprias palavras: “a dama que se transforma em puta no quarto de dormir”. Todavia, para Grace Kelly poder carregar a coroa milenar dos Grimaldi na fábula de princesa preparada para ela no cenário mais exclusivo do mundo, toda a perversidade do ícone de Alfred Hitchcock precisou ser esterilizada e repaginada. Mas os Deuses da Tela, inconformados, voltaram hoje a Cannes para se vingar e exigir a restituição da princesa verdadeira.
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os constrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema
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