*Por Flávio Di Cola, direto de Veneza
O movimento na calle Dorsoduro, que liga o bairro dos estudantes com este mesmo nome à ponte Accademia, é tão intenso que circular por ali é praticamente impossível. A maioria dos pedestres é de turistas, muito mais interessados em registrar sua “aventura” veneziana através de selfies desfocadas e fora de quadro do que propriamente apreciar os encantos deste distrito construído sobre o terreno mais sólido de Veneza.
Por isso, quase ninguém nota a existência do “laboratório” e da loja Ca’Macana de máscaras artesanais do genovês Mario Belloni, 60 anos, um dos raros profissionais a se dedicar à criação desses disfarces dentro do conceito de que cada peça deve ser concebida como artisticamente única. Por sua excelência, ele foi um dos quatro artesãos escolhidos para fornecer as máscaras que ajudaram a criar a intrigante atmosfera entre pesadelo e erotismo do polêmico filme de Stanley Kubrick “De olhos bem fechados” (Eyes wide shut, 1999, Warner Bros.) em que Tom Cruise e Nicole Kidman interpretam o casal (e, na época, os astros eram casados de fato) em crise e que se aventura numa noite de perigosas descobertas existenciais e sexuais.
Fotos: Flávio Di Cola
Mario conta como foi procurado pela produção do filme que estava sendo rodado na Inglaterra – embora ambientado em Nova York –, devido ao pavor que Kubrick tinha de viagens aéreas: “Quando fornecemos as nossas máscaras, não sabíamos que era para um filme tão importante, com astros e diretores tão famosos. Só nos demos conta disso quando eles nos pagaram e a nota fiscal foi faturada. Minha mulher ligou para um dos assistentes de produção para agradecer a preferência e acabamos ganhando dois convites para a sua estréia no Festival de Veneza. Onde, aliás, Kubrick recebeu o prêmio da crítica de melhor direção, postumamente – é bom lembrar – já que o cineasta inglês tinha falecido alguns meses antes, na semana que antecedeu a apresentação do corte final aos produtores da obra.
Stanley Kubrick não é considerado apenas um dos maiores autores da Sétima Arte, mas também está entre os seus diretores mais maníacos e idiossincráticos. E “De olhos bem fechados” não desmentiu essa fama. Sua realização se constituiu numa verdadeira prova de resistência para a equipe que se desdobrou desesperadamente para atender a todas as exigências inerentes ao célebre perfeccionismo kubrickniano. Resultado: seus 400 dias ininterruptos de filmagem garantiram a “Eyes wide shut” o título da produção com a filmagem contínua mais longa da história, segundo o livro Guinness de recordes, colocando os 250 dias de “Cleópatra” (Idem, 1963) no bolso.
Vídeo “De olhos bem fechados (melhor cena)” (Divulgação)
Cada objeto que aparece em cena foi rigorosamente supervisionado por Kubrick. Evidentemente, as máscaras venezianas – utilizadas nas sequências mais importantes e quentes do filme e que acabaram se responsabilizando pela sobrevivência dessa película no imaginário do público mundial – mereceram uma atenção redobrada da parte do diretor e da equipe de adereços. O roteiro de “De olhos bem fechados” respeitou a novela do austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931) que lhe serviu de base e – embora deslocando o espaço e a época da Viena de 1900, para a Big Apple de quase um século depois – manteve a ambientação original de Carnaval, o que era essencial para justificar as máscaras como metáfora das relações matrimoniais monogâmicas, as quais não passariam de uma sucessão de engodos, segundo a visão anti-burguesa de Schnitzler. As máscaras usadas durante os rituais de orgias por todos os membros da sociedade secreta em que Tom Cruise acaba a sua noite também foram primordiais para reforçar o clima ambíguo entre um perigo elegante e as promessas de delícias sexuais surpreendentes, aproveitando-se da reputação histórica e imaginária de Veneza como capital da riqueza, do mercantilismo e da depravação absoluta.
Vídeo “As máscara de ‘De olhos bem fechados’, que revela um pouco desta arte secular” (Divulgação)
Diante desse contexto, não é difícil entender a importância artística e simbólica da atividade de Mario Belloni na manutenção dessa tradição artesanal cujas origens se perdem nos séculos de existência desta fabulosa cidade e um dos paradigmas da civilização ocidental. Mas esse legado está sob séria ameaça de extinção diante da crescente invasão das máscaras de plástico chinesas vagabundérrimas que são vendidas a rodo por camelôs no chão, nas barracas ou nas lojinhas para turistas mais preocupados com o peso e o tamanho das lembrancinhas que terão que caber nas valises socadas nos vôos de classe econômica. Como lutar contra mais um desses efeitos contraditórios da globalização que – ao mesmo tempo – exalta a glória eterna da cidade dos Doges e a rebaixa a um parque temático fast food? E a responsabilidade dos poderes governamentais italianos? Diante dessa pergunta, Mario abre um sorriso irônico e dispara esta máxima que traduz perfeitamente as prioridades populistas dos “homens públicos” em geral: “Como diceva um politico, con la cultura non si mangia“, [Em tradução livre:”Como dizia um político, cultura não enche barriga”]. E completa: “O descaso das autoridades da Itália com a cultura é total. Basta ver o que está acontecendo com Pompéia, onde a cada dia desaba um muro”.
Na verdade, Mario e outros artistas como ele demoraram um pouco para perceber para onde caminhava o mercado de máscaras artesanais e artísticas de Veneza. Ele lembra: “Durante o auge dos anos 1980, com o dólar forte e a lira italiana fraca, vendíamos muito, principalmente para os americanos. Nos anos 1990, junto com a adoção do Euro, que encareceu tudo, começou a inundação dos produtos chineses. Como não trabalhamos com capital, máquinas e estoques, todos nós perdemos nossa participação nesse ramo de negócio. O próprio fornecedor exclusivo das máscaras para Tom Cruise, no filme, mudou-se para a Romênia, onde os custos são baratíssimos. Além disso tudo, nossas criações foram descaradamente copiadas”.
Cena do ritual mágico em “De olhos bem fechados” (Divulgação)
Mas a questão da cópia a partir das criações originais dos verdadeiros artesãos não apareceu na era do “Made in China”. É muito mais antiga e se relaciona com a vocação cultural da cidade e a atração que ela sempre exerceu sobre os jovens do mundo inteiro. Assim como Mario, que chegou a Veneza há cerca de 40 anos para estudar urbanismo, muitos estudantes de artes e arquitetura sem muitos recursos para sobreviver num lugar tão caro, começaram a aprender e a se desenvolver nesse tipo de artesanato para depois vender o que faziam para os turistas mais desavisados. A maioria desses “artesãos” começou copiando o que já existia, para depois estabelecer uma espécie de marca própria. Eles acabaram ou ficando em Veneza ou levando a sua arte para seus países de origem.
Diante da inevitabilidade das leis desse novo mercado, movido por forças absolutamente fora de qualquer controle, Mario chegou à conclusão de que uma parte dos rendimentos da sua Ca’Macano poderia vir daquilo que não ocupa espaço e nem depende da boa vontade de quem passa diante das vitrines com máscaras à venda que infestam Veneza, pois não tem nem peso, nem cor ou textura, ou seja, a sua incomparável expertise nesse arte tão antiga e emblemática da própria Itália, com a qual ele contribui com as suas próprias experiências e pesquisas artísticas pessoais.
Vídeo “Introduzindo Ca’Macana” (Divulgação)
Mario decidiu, então, abrir inteiramente o seu laboratório para transmitir para turistas e estudantes –- ou mesmo para qualquer curioso – a possibilidade de sentir com as próprias mãos as virtuais belezas das máscaras de Veneza – através de cursos com diversos níveis de aprofundamento e especialização. Se o processo de globalização substitui ou destrói toda e qualquer tradição que se oponha à sua marcha, ele também está permitindo que artistas como Mario permaneçam ainda ativos divulgando os tesouros da sua cultura. Até quando? Difícil responder. Mas o que Mario sabe na ponta da língua é que não vai se curvar à massificação da sua arte: “Copiar a si mesmo é o cúmulo!”, encerra triunfalmente a conversa.
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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