*Por Vítor Antunes
“Pantanal” vai chegando ao fim mantendo a tradição da obra original: um incontestável sucesso. A trama de Benedito Ruy Barbosa atualizada por Bruno Luperi trata majoritariamente sobre a questão agrária, e sob esta ótica deu-se a ação tanto da protagonista Juma (Alanis Guillen), como da sua inicialmente antagonista Muda (Bella Campos). Ester Dias viveu a mãe de Muda, Cândida, que era casada com Fulgêncio (Alexandre Moreno). A morte dele provoca a mudança da personagem de Bella Campos para a região alagadiça do Mato Grosso do Sul e desencadeia a sua trama. Quem viu Ester Dias brilhar na primeira fase da novela das nove verá a moça agora na série “Bom dia, Verônica”, da Netflix – onde interpreta uma delegada. Quem a vê brilhar nas telas não imagina que a atriz quase largou mão do ofício e chegou a trabalhar como hostess em um restaurante do Leblon, bairro nobre do Rio: “Cogitei, inclusive, largar tudo e tentar um emprego fixo e tradicional, mas em um determinado momento as coisas entraram nos eixos e começaram a acontecer”, diz a artista, que integrou o elenco de “Sob Pressão” e de “Malhação”, na temporada de 2009.
A batalha, contudo, não foi fácil. A atriz matriculou-se em suas faculdades – Dança (UFRJ) e Teatro (UNI-RIO) – e não conseguiu completar nenhuma das duas: “Quando os semestres começavam eu precisava fazer um trabalho e não dava conta. Na Uni-Rio, o curso de Teatro era em horário integral, o que inviabilizava fazê-lo”. Na época, a atriz morava no Vidigal, onde fixou residência por 14 anos e donde traz suas melhores lembranças “O local tem uma continuação da realidade que conheço, já que sou nascida no Irajá. No Vidigal, eu me sentia em casa. Lá também tem essa relação de pertencimento, de todo mundo se conhecer, de uns vizinhos tomarem conta dos filhos dos outros”. Aliás, haver morado no Vidigal e estudado no grupo “Nós do Morro” foi fundamental em sua carreira: “O trabalho do ator nasce da observação da experiência de vida dessas pessoas e eu aprendi muito enquanto estive lá”.
O Vidigal é um lugar lindo, de tirar o fôlego e que respira cultura. Claro que não podemos normalizar os problemas existentes em se morar numa comunidade. É preciso que haja um maior suporte aos moradores – Ester Dias
QUESTÕES AFIRMATIVAS
Recentemente a atriz protagonizou a série “The Way We Move“, que é um documentário produzido pela Adidas e que tem o racismo como tema central. O doc está disponível no YouTube no canal da gigante alemã. Aliás, esta é uma pauta muito presente e discutida pela atriz. O racismo e as questões afirmativas são importantíssimas para ela, que acha fundamental que estes temas estejam presente nos debates públicos. Personalidades pretas não estavam presentes na sua infância, de modo que estas referências só chegariam na fase adulta, quando “via a Ruth de Souza (1921-2019) e a Léa Garcia, ou a Viola Davis”.
Ainda sob esta ótica, ela diz que “representatividade importa e eu espero conseguir, num futuro, depois de haver trilhado uma história, inspirar meninas a ocuparem o espaço que elas quiserem. Mas a gente sabe que não é fácil”.
E acrescenta: “O ator negro ele tem que ser múltiplo. Ele não pode se dedicar a um trabalho só. Isso exige de nós uma estrutura que nem sempre a gente tem, já que, desde muito jovem há a necessidade de dar conta da nossa própria subsistência. Só a gente sabe do nosso corre. Temos que valorizar as nossas vitórias e medi-las com a nossa régua e não com as dos outros. A história de um artista negro e a de um não-negro não é a mesma”.
Segundo Ester, é importante haver gente para seguir firme na estrada que foi carpida por outros atores pretos: “O artista preto cava uma trilha que alguém já deixou feita. Ele deve seguir cavando para os outros próximos que ainda virão. Temos que deixar um legado”. E destaca haver “muita falta de letramento racial na nossa sociedade e isso trata-se de um problema profundo, que reside na estrutura o racismo. Para muita gente ainda é muito difícil debater sobre o tema. Por isso, eu acho importante que artistas negros falem sobre racismo. É um assunto que não se esgota e que é preciso conhecer pelo lado do oprimido e não pelo lado do opressor”.
Perguntamos à artista também por que razão há sempre de haver o debate sobre o tema afirmativo, se em algum momento, como a própria internet diz, não haverá de “descansar a militância”. E a atriz diz que “gostaria muito de, também, falar sobre outros temas, como esporte, moda e maquiagem. Mas, a sociedade sempre olha para gente nesse lugar ou fala sobre isso. E isto é algo que atravessa a nossa existência já que vivemos o racismo 24 horas por dia. É sintomático de uma sociedade estruturalmente racista, inclusive, achar que todo negro deve, necessariamente, ter letramento racial ainda que o país não nos dê essa educação. É uma faca de dois gumes”.
Atuando como uma delegada na série “Bom dia, Verônica”, ela ressalta que é “importante haver um acolhimento às mulheres que não se sentem protegidas quando vão às delegacias, ainda que nas voltadas a elas”. De fato, não são poucos os casos de mulheres que não se sentem confortáveis ao procurarem delegacias especializadas, isso quando elas existem. Os dados mostram que apenas 7% das cidades brasileiras têm unidades de delegacia do Atendimento à Mulher e elas estão concentradas em municípios maiores: somente nove das 3,6 mil cidades com até 20 mil habitantes as têm. Não foi localizada estatística sobre a quantidade de delegadas negras neste segmento.
É muito representativo haver uma delegada negra. São poucas e eu acho que isso me fez ressaltar a questão da representatividade. A partir do momento em que a gente passa a se reconhecer em espaços diferentes daqueles que a sociedade está acostumada ou acha que cabe à mulher negra. Sabedoras somos que as mulheres negras são colocadas sempre neste lugar, de que devem ser guerreiras e fortes o tempo todo. E ninguém sobrevive fazendo força a todo tempo todo – Ester Dias
CORPO E MOVIMENTO
Ester compõe ainda o elenco de “A vida não é um musical” peça na qual já esteve em cartaz em 2018 e que voltou aos palcos, onde ficará até o dia 25 de setembro. “O musical é um espetáculo que fala sobre um universo mágico e místico e do qual a protagonista, vivida por Daniela Fontan, resolve sair para conhecer o mundo real. A montagem critica os moldes do musical tradicional e é uma peça muito divertida”, garante.
Além dos palcos, a atriz relata-nos que encontra grande prazer em praticar corrida: “Isso me ajuda tanto na saúde física como na mental. Trata-se de um esporte muito versátil, que nos permite correr sozinho, em grupo, viajando, em casa ou chovendo. E um esporte que dá muita autonomia a quem pratica”.
Houve uma ocasião em que pôde aliar a prática do esporte à arte. Quando fez o filme “Um casal inseparável”, com Nathalia Dill e pôde treinar junto com a campeã de vôlei de praia das Olimpíadas de Atlanta (1996), Jackeline Silva. Segundo a atriz, Jackie é “uma grande professora. Tivemos de intensivo um mês e por sua influência consegui fazer o filme sem lançar mão de dublês”, confidenciou.
O africano dialoga através do corpo. Ele é seu instrumento de comunicação. Razão pela qual a fé se dá pela dança e a festa é celebrada com corpos que se expressam. Ester entende que seu corpo é de comunicação “holística e muito ancestral, que não separa as coisas”. Talvez, se pudesse, Ester encerraria sua fala citando o poema afirmativo de Victoria Santa Cruz (1922-2014): “Bendigo aos céus porque quis Deus que negro azeviche fosse minha cor. E compreendi, afinal, que tenho a chave: sou negra!”
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