No “Noé” de Darren Aronofsky, o protagonista até tenta, mas Deus não fala com Russell Crowe, só com Charlton Heston!


Na salada de referências, o filme brinca com sustentabilidade, estética-apocalipse, Mad Max e até com a fantasia estilo “Senhor dos Anéis”!

Em vários momentos do filme, o protagonista interpretado pelo australiano Russell Crowe olha para o céu, quase sempre cinzento. Talvez essas cenas sejam – junto com a chegada dos animais digitalizados à arca e o dilúvio – o momento mais esperado da nova versão de “Noé” (Noah, Paramount Pictures, 2014), que entra hoje em circuito. É quando a plateia, sentada na cadeira, imagina que vai abrir um feixe de luz entre as nuvens e alguma voz em off, bem grave, começará a falar: “Noéeeeee, eu sou seu Deus…” Mas isto nunca acontece. Este possivelmente é o maior mérito da produção dirigida por Darren Aronofsky (O Cisne Negro, Black Swan, Fox Film, 2011), a nova versão do épico bíblico. Crowe até dirige o olhar para cima, na esperança de uma resposta, mas, exceto por um pesadelo ou outro, o Todo-Poderoso se revela bem mais contido do que de praxe.

O diretor joga na lona toda a estilização da mitologia judaico-cristã concebida dentro da ótica (hoje desgastada) que começou a se desenhar ainda no cinema mudo, na década de 1910, com “Cabiria”(idem, de Giovanni Pastrone, Itala Film, 1914) e se solidificou a partir do cinema falado, sobretudo nas produções que tinham a batuta do Spielberg da Era de Ouro, Cecil B. DeMille. Naturalmente, não colam mais patriarcas de túnica azul clarinha alvejada com Confort, barba branca, jeitão de Papai Noel e semblante sereno batendo papo com Deus, como se estivessem em uma prosa vespertina de domingo, em enredo “lição de vida” aditivado com colorido technicolor e frases de efeito moral. Não, definitivamente, Aronofsky sabe que, para conseguir levar o público às salas de cinema para contar esta história batida é preciso, além de submetê-la à graça do hiperrealismo visual, enriquecido pelos mais modernos efeitos de computação gráfica, modernizá-la através de um roteiro que torne os personagens menos idealizados, mais verossímeis, cheios de dúvidas, próximos do medo de perder tudo e submissos ao tipo de drama interior que renovou a narrativa hollywoodiana a partir dos anos setenta. Exatamente como foi feito a partir de meados da década de 1990 com o cinema-catástrofe – com “Independence Day” (De Rolland Emmerich, 20th Century Fox, 1996) – e na virada de milênio com os épicos – em “Gladiador” (Gladiator, de Ridley Scott, Dreamworks e Universal Studios, 2000). Faltava renovar o gênero bíblico e nada melhor do que começar com Noé, que mistura tanto um gênero quanto o outro, com saga histórica acrescida de cataclisma natural de proporções planetárias.

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 A estética épica lançada por “Cabíria” foi rapidamente assimilada em Hollywood através de realizadores como D.W.Griffith em “Intolerância” (Intolerance – A Sun Play of Ages, Triangle Distibuting Corporation, 1916), tanto no episódio que narra a missão de Jesus Cristo quanto o da queda do Império Babilônio. Com essa mistura de cenários grandiosos, travelling de câmeras, cenas de sofrimento e dor (originários da filosofia cristã) e pitadas de sexo para entreter o público pagante, estava lançada a base daquele que se tornaria o gênero épico religioso pelos quase 100 anos seguintes, com Cecil B. DeMille se estabelecendo, já na década de 1920, como principal artífice desse tipo de espetáculo. Em produções como “Macho e Fêmea” (Male and Female, Paramount, 1919),“Rei dos Reis” (King of Kings, DeMille Pictures Corporation, 1927),“Sansão e Dalila”(Samson and Delilah, Paramount, 1949) e “Os Dez Mandamentos” (The Ten Commandments, duas versões da Paramount, 1923 e 1956), o diretor eleva esse tipo de interpretação das passagens religiosas ao seu ápice, com o Moisés de Charlton Heston na segunda transposição conversando com o Criador através de offs e jatos de luz, se tornando um marco na história do cinema e copiado à exaustão.

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Agora, Aronofsky é inteligente o suficiente para admitir que os tempos são outros e que, em era de direção de arte alçada ao patamar de realidade extrema e idealizada por recursos de photoshop, não cabe mais lidar com qualquer mito bíblico dessa forma. Assim, além de repaginar visualmente a saga do dilúvio, ele também confere novo gás à história, não apenas atualizando temas e renovando os personagens, mas até alterando a história original sem perder sua essência, introduzindo alusões a outras passagens da Bíblia – como o milagre da gravidez de Sarah (esposa de Abraão) transposto para o contexto da mocinha interpretada por Emily Watson, estéril por conta de uma agressão na infância, o sacrifício de Isaac (aproveitado através do dilema de Noé quanto a exterminar toda a raça humana do planeta, o que implicaria em imolar suas netas) e Matusalém (Anthony Hopkins), o patriarca mais longevo do Velho Testamento e avô de Noé que, embora não mencionado na história deste, teria sua morte coincidindo com o extermínio da humanidade. Pode ser um samba do crioulo doido, mas funciona, até porque o cineasta não abre mão da dose de sexualidade latente, nem da grandeza visual para costurar a narrativa, como seus antecessores em Hollywood fizeram.  

E mais: como o escapismo de filmes como a trilogia “O Senhor dos Anéis” (The Lord of The Rings, Peter Jackson, 2001-2003) faz o maior sucesso e amealha milhões de dólares em bilheteria, por que não conferir uma boa pitada de fantasia a uma saga que, por si só, já tem forte viés sobrenatural, com Noé recebendo ajuda de anjos caídos transformados em gigantes de pedra? Ou até pela presença de animais imaginários ou de outros que se extinguiram antes do término do Pleistoceno? Sacada perfeita para arregimentar às salas de exibição novas gerações de expectadores, que poderiam considerar o tema bíblico um tanto careta.

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Neste caldeirão de influências, a estranheza final fica por conta da interpretação do planeta, exaurido pela exploração desmedida de recursos. Nessa linha de raciocínio, a maldade dos descendentes de Caim não se resume apenas às atrocidades que são feitas entre irmãos da mesma espécie, mas também à ambição descabida que destrói os recursos naturais, extermina animais e transforma a Terra em solo estéril. Essa opção por inserir a questão da sustentabilidade – outro tema na ordem do dia – no pouco apreço que a humanidade tem pelo próximo é outra novidade do roteiro, com sucessão de planícies e vales consumidos ao extremo, como se o filme tivesse um quê apocalíptico no estilo de Mad Max” (idem, de George Miller, Village Roadshow Pictures e Warner Bros Pictures, 1979) e “O Exterminador do Futuro” (The Terminator, de James Cameron, Orion Pictures, 1984). Um planeta devastado, com florestas cortadas, solo cinza coberto de brita e jazidas abandonadas, predomina em boa parte do filme, imprimindo sensação de que não há mais nada a fazer a não ser lavar tudo com água. Com isso, a reprodução do ambiente pré-sumeriano ao pé da letra vai para o espaço, e o figurino de Michael Wilkinson também foge do realismo, pouco se preocupando com o rigor histórico, mas com certa dose medieval.                   

Com todas essas referências usadas em prol da renovação do mito, o diretor também procura conferir aos personagens esse sopro de novidade. Noé, ao invés de um septuagenário complacente, é um whopper furioso, cheio de tempero, que não se furta a defender a família na ponta da faca. Mais do que um homem virtuoso, ele ganha a missão divina porque capaz de dar cabo dela até o final, custe o que custar. Tipo Chuck Norris, só que sem o Ray-Ban. Sua mulher é bem mais nova, uma Jennifer Connely gata, já que a expectativa de vida era bem menor nessa época e a vida sexual precoce ainda não dava cadeia. E seus filhos são adolescentes (ou nem isso) por ocasião do dilúvio, estando em ponto de bala como qualquer garotão nos dias de hoje, com a testosterona saindo pelos poros. Mas, fora isso, o embate entre o bem e o mal está lá, concentrado na figura maniqueísta de um vilão que resumiria todos os pecados do homem, o déspota Tubalcaim interpretado por um Ray Winstone inspirado. Disso não dá para fugir e Aronofsky sabe que aqui não dá para inventar. Vale a conferida. 

Trailer legendado de Noé