*Por Vítor Antunes
Filme de Gustavo Fernandez, “Predestinado – Arigó e o espírito de Dr. Fritz” traz à tona a trajetória do médium José Arigó (1922-1971). Católico de formação, ele tornou-se espiritista por conta da influência do falecido médico alemão citado no título do longa e que teria morrido durante a Primeira Guerra Mundial. Fritz escolheu Arigó como instrumento para realizar as cirurgias espirituais. O método pouco ortodoxo e em desarmonia com a medicina tradicional trouxe inúmeros dissabores a José Pedro – nome real de Arigó – em sua vida pessoal, como o fato de haver sido preso. Segundo o filme, ao tornar-se um médium famoso, o homem enfrentou questões difíceis com sua família e esposa, Arlete, interpretada por Juliana Paes.
“Predestinado” é o terceiro trabalho de Juliana a dialogar fortemente com a questão religiosa. O primeiro foi a novela “América” na qual viveu a evangélica fogosa Creuza. Depois, deu vida à hindu Maya, de “Caminho das Índias”. Desta vez, a católica-que-margeia-o-espiritismo Arlete. Perguntamos à atriz quando poderíamos vê-la fazendo algo relacionado ao candomblé ou à umbanda – sendo esta última uma religião que traz íntimas relações com a sua família. E ela disse: “Eu sou de uma família que, originalmente, têm muitos umbandistas. Hoje tenho pessoas de todas as cores e credos – desde cristãos a católicos – e a gente convive muito bem assim. Para mim é muito natural dar vida a personagens de diferentes verves de crença, eu sempre achei isso muito natural. Me assombro em saber que os números de intolerância religiosa são crescentes. Isto sim, não é o natural”, declara.
A fala de Juliana encontra eco nos índices apresentados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). Segundo o órgão, em 2021, o Rio de Janeiro registrou aumento de 11,7% nos casos gerais de intolerância, quando comparados a 2020. Ainda naquele ano, foram 1.564 ocorrências, versus 1.400 nos 12 meses anteriores. Os casos de “ultraje a culto religioso”, também saltaram de 23 para 33, nos anos analisados. A maior parte dos casos de intolerância direcionou-se às religiões de matriz afro.
Segundo a atriz, a personagem que interpretou no filme, uma mulher simples, do povo, abriu mão de muita coisa a fim de acompanhar o marido em sua missão, estabelecida junto ao espírito. Paes, inclusive, faz um contraponto às relações afetivas atuais e para tal lança mão de um conceito elaborado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017): “Trata-se de um momento, o atual, onde vivemos relacionamentos líquidos. Aquela mulher abriu mão dos seus desejos e da própria crença para estar ao lado de seu companheiro”. E Juliana prossegue:
Eu me peguei refletindo de que às vezes é preciso ser mais Arlete no que diz respeito a essa entrega, a essa doação, a essa coisa de “OK, talvez eu não compactue com isso, mas eu estou do seu lado, estou contigo”. Às vezes é isso que a gente precisa. – Juliana Paes
Quando a atriz fala sobre relacionamentos líquidos, ela faz referência ao conceito estabelecido por Bauman, no qual o sociólogo diz que “hoje os relacionamentos escorrem por entre os dedos”. O polonês estende a expressão para outros campos de significado ao dizer que na atual época, “as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos”. Em oposição a este entendimento, Bauman usa a expressão “modernidade sólida”, para relacionamentos fortes e duradouros.
Com efeito, ainda que Arigó tenha desencarnado em 1971, sua esposa – que também era sua prima – se fez presente o quanto possível. Diante do fato do médium não cobrar pelas consultas e cirurgias que realizava sob a influência de Fritz, cabia à Arlete o sustento da família diante dos trabalhos que realizava como costureira. Juliana Paes salientou, inclusive, que a parceria entre Arlete e Arigó era ainda mais robusta e definiu como enxerga esta mulher na relação com o marido: “Arlete o ajudou, inclusive, quando Arigó duvidou da própria sanidade, levando-o em muitos médicos e tentando entender o que estava acontecendo com seu marido, diante das dores de cabeça, visões e luzes que ele via. Percebo-a como uma fortaleza, uma rocha! Arlete é uma mulher forte, resoluta e que sempre foi um apoio para o Arigó”, define.
DESCONSTRUIR PARA CONSTRUIR
Coincidentemente, Juliana Paes está no ar em duas produções onde precisou se despir da vaidade e nas duas contou com a presença do diretor Gustavo Fernandez. Filmado em 2018, “Predestinado” pegou a atriz num processo de transição entre a beligerante Bibi Perigosa, de “A Força do Querer” e a exuberante Maria da Paz de “A Dona do Pedaço”. O filme teve que encaixar-se nesta agenda apertada. Sobre o processo de composição da Arlete, a atriz atribuiu a uma “maturidade artística”: “Esse processo de desglamourização e desconstrução tem muito a ver com uma maturidade artística, embora nunca tenha sido para mim um problema estar totalmente livre de qualquer que seja o padrão estético quando vou viver uma personagem. As pessoas sabem que eu gosto de me produzir, de me arrumar, mas [esta vaidade] fica da porta do estúdio, ou do set, para fora”. E ela prossegue:
A mim não é nenhum problema, é um prazer vivenciar as personagens a fundo, como são. Claro que a minha maturidade, a minha entrega é emprestada a estes personagens que exigem maior carga dramática, assim como trago o meu emocional mais burilado também. Tudo isso acaba andando junto – Juliana Paes
O fato de haver vivido Arlete em três fases da vida também ajudou neste processo de desrotular Juliana da imagem de musa ou de mulher fatal. E ela destaca o fato de a caracterização envelhecê-la gradualmente a fim de marcar o tempo da narrativa do longa “Os profissionais [de maquiagem] foram extremamente precisos, pois quando eu chegava para a caracterização, eles já sabiam exatamente que marca de expressão colocar ou tirar, qual cabelinho branco ou mais escuros precisava manter. E é incrível que embora seja muito rápido, o resultado é muito marcante”, sinaliza.
Segundo o diretor Gustavo Fernandez, a própria Juliana já chegou ao set pronta para desconstruir a imagem de diva que alinhavaram para si e disse que ela era o nome mais adequado ao papel justamente por verem nela uma escalação inesperada. “Quando o nome da Juliana surgiu entre o de atores sugeridos, achamos todos que era uma escolha adequada, justamente pelo fato de ser uma escalação surpreendente. Mais ainda diante do fato de ela fazer questão de estar no projeto, ainda que entre duas novelas e com uma agenda cheia de compromissos. O processo de desconstrução foi muito fácil por que ela própria já chegou neste movimento”, explica.
De acordo com Fernandez, era importante a presença de uma atriz do quilate de “Ju” no longa, já que a Arlete, sua personagem, tem fundamental importância na história do biografado. “Se não existisse a Arlete não existiria o Arigó (…). Era importante para a gente ter uma atriz forte neste lugar. Queríamos que Arlete tivesse destaque”.
Gustavo Fernandez também é o diretor de “Pantanal”, o mais recente trabalho de Juliana na TV, e papel no qual a atriz se despojou das vaidades para viver Maria Marruá, mãe da protagonista Juma (Alanis Guillen). O desafio era enorme para Juliana, não apenas em face da desconstrução da incontestável beleza, mas diante do fato de ter que estar ao alcance da potência que foi a interpretação de Cássia Kiss na primeira versão de “Pantanal”, em 1990.
Uma das primeiras personagens de Juliana a fazer sucesso da TV chamou-se Jacqueline Joy. “Joy”, em inglês remete à palavra “alegria”. Diante dos 22 anos da atriz na tela, difícil foi vê-la sem sorrir ao menos uma vez. Poderíamos dizer que deve-se ao fato de a moça haver sido criada em Niterói, que era conhecida como “cidade sorriso”, mas não. Talvez seja seu espírito a essência do que se entende por ser alegria. Seu pai era um ogã, o responsável nos terreiros a chamar os orixás à festa, ao xirê. Ou seja, a moça traz em si a essência da alegria de ser o que (se) é.
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