“Entre Vales” traz Ângelo Antônio como metáfora do consumo desenfreado em papel que remete à Carminha!


Filme do economista que circula por lixão após ir à bancarrota pode ser associado à “Avenida Brasil”, mas é inteligente crítica à cultura da obsolescência programada!

*Por João Ker

Estreia hoje, em um seleto circuito de cinemas no Rio e em São Paulo, “Entre Vales”, o segundo longa-metragem lançado pelo diretor e roteirista Philippe Barcinski, que ganhou atenção da mídia em seu primeiro trabalho, “Não Por Acaso” (2007), protagonizado por Letícia Sabatella, Rodrigo Santoro e Leonardo Medeiros. Dessa vez, a estrela principal (e talvez única) é o ator Ângelo Antônio, ator de sólida carreira na televisão, filmes nacionais e peças de teatro, com densidade perfeita para o papel.

Ponto central do drama, a clássica questão sobre como sobreviver depois de perder tudo e descer ao fundo do poço permeia todo o enredo. É com essas dúvidas que o protagonista Vicente (Ângelo Antonio) procura lidar durante toda a narrativa, sobretudo após sofrer duas perdas irreparáveis. O público – meio desorientado graças à narrativa que vai e volta no tempo e só explica os motivos quase no final do filme – acompanha esse turbilhão do economista, que ora transita por uma semi-felicidade em casa, com um filho e um emprego que ele ama, mais a esposa com quem não para de brigar e que uma hora o descarta, ora cambaleia por um lixão, enquanto segura uma garrafa de cachaça barata, daquelas que poderiam ser usadas como removedor no lugar de Faísca. E, óbvio, como as associações costumam ser imediatas em um país onde as engrenagens midiáticas são avassaladoras, a lembrança de personagens recentes da dramaturgia na tevê, como Mãe Lucinda (Vera Holtz) e a vilã Carminha (Adriana Esteves), de “Avenida Brasil”, é quase imediata.

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Vicente mais uma vez vaga sem eira nem beira, após ter se tornado um subproduto pronto para ser descartado (Foto: Divulgação)

A ideia toda parece ótima no papel. Mas, na hora de ser colocada em prática, alguma coisa situada no limbo entre a teoria e a execução parece falhar. Entre bebedeiras homéricas e alguns diálogos engessados, Vicente se torna um personagem que dificilmente é palatável para o público. Trata-se daquele tipo de quem a gente tem pena, mas não quer por perto nem coberto de ouro. E a falta de carisma dos seus coadjuvantes – principalmente da criança, que é peça fundamental nesse jogo – só piora o panorama. Ângelo Antônio segura a barra e, naqueles momentos em que contracena com os moradores do lixão, é até divertido, menos monótono que algumas cenas do restante. Mas, ainda assim, não é suficiente.

Cansa a insistência da cronologia não linear (herança do cinema novo), somada à câmera solta usada nas cenas em que Ângelo Antônio faz a Rainha da Sucata, por mais que a conjugação desses dois fatores seja interessante como recurso pra revelar o redemoinho que consome a percepção do personagem em seu périplo. Mas, por outro lado, funciona lindamente a força de sua principal metáfora – e como ela se encaixa perfeitamente no amadurecimento de Vicente: ele é apresentado ao público como um novo produto, perde seu rumo, “vira” lixo (ao mesmo tempo em que está no meio dele), sucumbe ao descarte e permanece no limbo da obsolescência até encontrar uma luz quase divina que lhe permite reerguer a cabeça, em um momento de literal autorreciclagem, como algo que foi consumido à exaustão, jogado fora e, agora, ganha novo uso através da autossustentabilidade do seu íntimo. No final das contas, a mensagem é muito positiva, o conceito é genial e, mesmo que o acabamento não alcance o trabalho anterior de Barcinski, é inegável o seu valor.

Trailer oficial de “Entre Vales”