Se Gilberto Gil tivesse conhecido Fabrício Boliveira antes de escrever a clássica Toda Menina Baiana, certamente, ele teria feito uma versão masculina para o hit. É que esse soteropolitano de 36 anos possui um jeito e um encanto, que só um menino baiano como ele tem. Curioso, politizado, talentoso, charmoso e trabalhador incansável, Fabrício é, hoje, um dos mais importantes atores do país. Com seis novelas no currículo, seis séries, 15 filmes e dezenas de prêmios, ele, hoje, está no ar como Roberval, de Segundo Sol, sucesso da novela das 21h, da TV Globo, e também poderá ser visto nos cinemas com Simonal, longa que fez sua estreia nacional no Festival de Cinema de Gramado. Entre tantos compromissos – ele ainda tem mais um filme pra estrear e outros três para rodar – Fabrício conseguiu um tempo para passar uma tarde com o site HT, no estúdio de Alex Santana, em Santa Teresa, onde posou para estas fotos lindas, com styling de Anderson Vescah e beleza de Everson Rocha.
Em meio a tantas tarefas, Fabrício não perdeu um detalhe do menino baiano que saiu lá de Salvador cedo para tentar a vida mundo afora e viver de sua arte: a de olhar no olho do interlocutor, de se preocupar com o outro e fazer com que quem esteja em um ambiente com ele, saia mais feliz do que quando entrou. “Acho que tem um pouco dessa minha relação com o outro que eu carrego de Salvador. As pessoas na Bahia são muito abertas e têm interesse pelas pessoas, são realmente ávidas por ajudar. Tive que dosar isto um pouco, inclusive, ao trabalhar fora da Bahia, porque são culturas diferentes, mas não deixei de ser assim. Não tenho medo de ser quem sou”, enfatiza o ator, que, filho de uma família classe média de Salvador, teve a certeza – e o estímulo – desde muito cedo, de que a arte era o seu caminho essencial. Inclusive para curar uma gagueira que o perseguia desde criança. “A minha mãe fazia teatro de forma amadora antes de eu nascer. No entanto, eu tive muita experiência com arte quando era pequeno, pois ela trabalhava em uma biblioteca, por isso eu assistia a muitas peças e pequenas apresentações. A partir daí, fui me relacionando com este meio. Muita coisa também mudou na minha vida com este contato. Eu era muito gago e quando comecei a fazer teatro com certa frequência percebi que tinha algo na minha fala em cena que não existia na minha rotina. Foi a minha primeira percepção com relação a isto e tentativa de resolver. Quando estava atuando, eu sabia dosar a minha respiração com a ideia da fala. A arte me ajudou muito na minha construção”, revelou em papo exclusivo com o site HT. Esta, aliás, não foi a única revelação em mais de uma hora de muita conversa.
Fabrício, que é formado em teatro pela UFBA, se sustentou na adolescência e juventude como professor de dança especializado nas coreografias do axé music em academias de Salvador. “Acabei embarcando neste universo, depois que saí da escola, porque sempre tive aptidão para dança e fazia aulas desde pequeno”, relembrou o ator, que, na conversa, ainda falou sobre representatividade negra nos espaços artísticos, sua fama de workaholic, eleições 2018 e muito mais. Vem ler!
Heloisa Tolipan: Como você foi parar no teatro?
Fabrício Boliveira: Entrei com 15 anos em um curso de teatro por influência de uma prima que fazia. Ela acabou saindo depois e eu fiquei, porque entendi que tinha alguma coisa para resolver com este meio. Depois disso, cursei a faculdade de teatro.
HT: O que a faculdade trouxe para o seu trabalho?
FO: Fiz faculdade pública, então precisei acrescentar muitas matérias de outros cursos, como psicologia. Isto me proporcionou estudar com gente de outras realidades o que fez abrir a minha cabeça e entender que cada indivíduo possui as suas particularidades, que é o que nos faz interessante. Além deste âmbito pessoal, ela me deu mais respaldo e referências para a construção dos meus personagens. Estudei muito a história do teatro no nosso país e fora. Me ajuda muito ainda.
HT: Você falou do convívio com outras realidades na faculdade, mas qual era a sua?
FO: Eu era professor de dança de música baiana na academia. Acabei embarcando neste universo, depois que saí da escola, porque sempre tive aptidão para dança e fazia aulas desde pequeno. Eu assistia aulas de ética e filosofia na faculdade com uma blusa de banda de pagode. Era um choque muito grande. Isto acabava alimentando muito a discussão do que era cultura, porque vinha de outra realidade e eu acabava trazendo uma estética mais popular.
HT: Ainda dança?
FO: Amo dançar. Saio sempre para isso e uso para o meu trabalho. Já fiz balé clássico e dança moderna. Às vezes, faço parte do espetáculo Batucada, de um grupo do Piauí chamado Demolition Incorporada. Viajei para alguns lugares do país juntamente com o nosso diretor, Marcelo Evelin, que também trabalha na Holanda e Japão. É um caminho mais performático, porque, como artista, meu estudo é muito voltado para o espaço e o corpo.
HT: Como você usa estas diferentes formas de expressão para construir seus personagens? O Roberval, por exemplo, de que forma foi influenciado pelo seu arcabouço?
FO: Tem um pouco do meu jeito de um garoto que saiu da Bahia e volta depois de 20 anos com experiências européias e africanas. Fui construindo muitos outros corpos. As meninas do figurino brincavam que era um desfile de moda, mas queria passar esta ideia de um rapaz bem vestido e que gosta de estar daquele jeito. Ele explora isto um pouco, inclusive, e tentei brincar com este lugar dentro da moda. Quando o personagem voltou, deixamos bem ratificado esta brincadeira para contrastar com as outras pessoas que estavam na Bahia. Ele tinha uma forma mais destacada, mas isso, com o tempo, foi se diluindo a partir do contato que ele teve com a sua casa.
HT: Como veio o convite para participar desta novela?
FO: Eu já tinha feito A Favorita com o João Emanuel Carneiro e ele me convidou para tomar um café e conversamos sobre este trabalho. Está sendo uma experiência muito nova, porque é um personagem muito forte em uma novela e não tive esta oportunidade antes. Já fiz, claro, papéis marcantes em séries e filmes, mas é a primeira vez em novela. Está sendo inusitado.
HT: Quando começaram as críticas com relação à falta de representatividade negra na novela, você já tinha pensado nisto antes?
FO: Claro! Eu já tinha percebido isto antes e apresentei esta questão para todo mundo. Sou baiano e, na minha terra, 80% da população é negra, então não dá para ter uma novela que não corresponda a este fato. Acho que a luta de todo o movimento está muito forte e vem de muitos anos. Precisamos realmente abrir a discussão para isto na televisão, no cinema e nos altos cargos. Não conheço, por exemplo, muitos advogados, fotógrafos e médicos negros. Por que isto? Eles existem, claro, mas falta mais oportunidade de trabalho… de chegar ao mercado. Acho que está na hora da gente inserir e trazer esta harmonia no olhar.
HT: Engraçado você falar isso, porque nós tentamos fazer uma equipe mais representativa, mas foi difícil encontrar profissionais negros para a produção do editorial…
FO: De algum jeito, existe uma falta de comunicação. Acabei de fazer um curta no qual a equipe inteira era negra e uma amiga minha do GNT quer montar uma equipe fixa só com negros. Falei com vários conhecidos sobre isso e recebi uma lista de mais de 150 nomes. Existe esta mão de obra, mas tem algum buraco que nos impede de encontrar. Eu funcionei como um canal para esta minha amiga, mas, de algum jeito, precisamos de uma forma que consiga passar e ser esta fonte de integração. De facilitar os dois lados: oferta e demanda. Estamos na batalha, mas acho que temos poucas modificações. Temos que abrir esta discussão em todos os ambientes de trabalho.
HT: Quando era criança, no início da sua carreira, você tinha alguma representatividade, alguém em se espelhar?
FO: Isto é muito louco. Aqui, no Brasil, este cenário tem se modificado muito lentamente. Na minha época, as minhas referências eram estrangeiras: Eddie Murphy e Michael Jackson. Com 28 anos, fiz uma performance em São Paulo sobre o Itamar Assumpção, mas eu não o conhecia. Fiquei com muita vergonha, porque este cara poderia ter sido a minha grande referência. Cheguei a comprar uma passagem e ir a São Paulo, porque fiquei louco pela história dele. Passei cinco horas falando com a família dele sem me tocar que ele tinha falecido. Fiquei triste de não ter conhecido este cara com vida. Que desserviço midiático é este que fez com que eu não o conhecesse?
HT: Mas hoje, você é uma referência para muitos meninos e meninas que podem se inspirar em você. Como é isso na sua vida?
FO: Isto é muito lindo, de algum jeito, porque é para além dos meus desejos. Parece que há uma vontade nacional por esta representação. Passei um carnaval em um trio elétrico com o Baco Exu Do Blues e mais uma galera. No meio do percurso, ele ficou me olhando e me chamou no canto para dizer: ‘Cresci e passei a minha adolescência vendo os seus trabalhos. De algum jeito, você me incentivou’. Foi muito bacana, porque é um grande cantor que admiro e curto a música me falando aquilo. Comecei a perceber a importância do meu trabalho e isto vai além das coisas que imagino. Fico muito feliz de ocupar este lugar.
HT: Você começou no teatro, mas está meio sumido dos palcos, né?
FO: A última peça que fiz de teatro convencional foi no Rio há algum tempo. Era um espetáculo meu sobre a mente das plantas e se chamava Philodendrus. Tenho feito mais trabalhos com dança e performance.
HT: Por que a dança consegue ocupar mais este espaço na sua vida hoje?
FO: Amo ver e fazer teatro, mas há algo anacrônico no conteúdo e na forma. Acho que a dança, neste sentido, está mais livre, tem menos formatos.
HT: Você me parece ser muito destemido. Tem medo algo?
FO: Tenho medo de não poder continuar fazendo o que amo como a minha arte. Fiz parte do filme do Simonal e, em um determinado momento, ele foi impedido de cantar e isto bateu muito forte.
HT: E foi impedido de cantar por um momento político que podemos reviver…
FO: Estamos super revivendo. O que ele passou foi racismo e uma perseguição por ser um artista negro de muito sucesso. Ele pagou por uma coisa que falou e foi deturpada. Tenho esse medo: de não poder fazer por conta de uma interferência e de uma mentira ou algo que não possa controlar. Sou taurino e, talvez, a minha falta de medo exista por causa do meu domínio sobre aquilo e também por conhecer a minha fragilidade.
HT: O futuro do Brasil dá medo também ou você é mais otimista?
FO: Têm acontecido coisas muito fortes. Temos visto um lado político desastroso que é o Lula preso e Bolsonaro candidato. Faço questão de não repostar e dar qualquer divulgação para este cara. Nestes últimos anos do governo do Lula e da Dilma Rousseff, rolou um avanço social que nunca ocorreu na história deste país. Tudo o que eu falava antes muito sozinho – sobre diferenças sociais, questão da mulher e racismo – virou uma rede e um grito geral de necessidade. Este avanço não vai mais voltar atrás. Tem alguma coisa neste sentido que me deixa mais seguro. Sinto que temos uma força independente deste viés político. Talvez, o que ameace de verdade é a estrutura política do jeito que está, não só pela corrupção, mas pelo jeito como está construída. Não cabe mais. É preciso se relacionar diretamente com o povo e nós temos que interferir nas decisões políticas. Atualmente, a gente sabe exatamente quais são os candidatos e temos toda a possibilidade de saber em quem vamos votar. A gente discute política o tempo inteiro. Virou um assunto de todos.
HT: Sempre foi um ser político ou isto é recente?
FO: Acho que nasci um pouco assim. O corpo negro já é um corpo político no Brasil, então, qualquer lugar que fosse, esta discussão ou destaque já existiria, afinal, componho ou não este espaço. Isto está muito no olhar dar pessoas para comigo o que me faz mostrar sempre a minha posição nestes locais. Mas, ao mesmo tempo, tenho este momento de reflexão. Isto me lembra também um pouco da minha família que tem esta questão de ser negro na Bahia. Não tenho como não ser político.
HT: Que questão é essa de ser negro na Bahia?
FO: Em Salvador, na década de 80 para 90, começou a aparecer o pólo petroquímico. Antes disso, não tinha a ideia de classe média. Ou era pobre ou muito rico, vindo daquelas famílias antigas e brancas. Com o surgimento disto, a mão de obra veio toda de Salvador e o meu pai, por exemplo, foi nesta leva. Enquanto minha mãe era funcionária pública e trabalhava em uma biblioteca. A partir disso, a classe média – inclusive a negra – surgiu. Sendo assim, eu estudei em escolas particulares, fiz faculdade e sempre tive um porto seguro financeiro, o que me levou a escolher o que queria fazer. Por isso, nós tínhamos tempo para discutir coisas, pois não estávamos vivendo na necessidade. Conseguimos refletir e rever a nossa situação.
HT: Teve possibilidade, então, de seguir o seu sonho e ter a segurança financeira dos seus pais…
FO: Sim, mas isto também é complicado porque trabalho desde os meus 15 anos e estou com 36. O meu pai pagava a minha escola e me dava algum dinheiro para transporte, mas comecei a dar aula em casa para alunos de séries inferiores para poder controlar as minhas finanças. Sendo assim, desde os 15 tenho certa independência financeira dos meus pais.
HT: Você trabalha muito, né?
FO: Sou um pouco workaholic. Confundo muito o meu trampo com prazer, por isso acabo entrando de cabeça. De qualquer forma, também valorizo o meu tempo de descanso.
HT: O que você faz nas suas folgas?
FO: Tenho viajado bastante, porque estou um tempo sem ter uma casa propriamente dita. Alugo lugares para morar, na verdade. Por isso sempre tiro um mês para ir para outros locais, entre um trabalho e outro, como para China, Marrocos ou Minas Gerais. Este é um bom jeito de usar o meu dinheiro e otimizar o meu tempo, além de buscar o novo. Como sou taurino, isto acaba sendo uma provocação minha com relação à estabilidade. Ah, e também gosto de cozinhar.
HT: O que você tem para frente de projetos?
FO: A novela, eu gravo até novembro e depois estreia Simonal. No ano que vem, vamos divulgar Breves Miragens do Sol, de Eryk Rocha, que é um diretor que admiro muito e foi um dos filmes mais lindos que já fiz. Ele é genial. Vou trabalhar ainda em dois longas, sendo que um deles é do diretor baiano Henrique Dantas e fala sobre liberação da maconha e também sobre oncologia. É uma ficção sobre um rapaz que é médico em Amsterdã e volta para Bahia por conta de uma morte. Também temos a história do Luís Gama, que é uma trama real sobre o primeiro grande jurista brasileiro. Foi um cara vendido pelo seu pai, mesmo sendo negro liberto. Já adolescente, começa a ler sobre direito e liberta os outros escravos da fazenda onde morou somente pelo papo. Ele começa a tirar todo mundo somente pelo respaldo da lei. Vou fazer este personagem emblemático da nossa história. Sinto muita responsabilidade e desejo por interpretar este cara, porque pouco se fala sobre ele e quero recontar esta trama para que os meus irmãos negros e meus filhos tenham esta referência. Para que não exista mais aquela história que contei lá atrás: Por que nunca ouvi falar do Itamar e do Luís?
Equipe:
Foto: Alex Santana
Styling: Anderson Vescah
Beleza: Everson Rocha
Produção de moda: Lucas Bueno
Assistente de beleza: Yago Maia
Tratamento de imagem: Phellipe Souza
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