‘Ele não tinha pudores, se entregava para a câmera o tempo todo’, diz Isabel Cavalcanti sobre Sergio Britto


No documentário ‘A Última Gravação’, codirigido pela montadora e roteirista Celia Freitas, o ator, que fala abertamente sobre sexualidade, limitações físicas e sexo, aparece fazendo aulas de dança e tomando banho

*Por Jeff Lessa

Sergio Britto dança sozinho e descalço em sua biblioteca, ao som de “In My Solitude”, na voz rascante de Billie Holiday. “In my solitude / You taunt me / With memories / That never die” (“Em minha solidão / Você me insulta / Com lembranças / Que nunca morrem”). A letra da canção, lindíssima, não traduz o homem por trás do mito. Não havia solidão e ninguém o insultava com lembranças. Aos 87 anos de idade, Sergio vivia no e para o presente. “Eu faço o que eu quero. Ainda faço o que eu quero”, diz ele, em off, enquanto rola a música. A cena faz parte do documentário “A Última Gravação”, dirigido por Isabel Cavalcanti e Celia Freitas. O longa estreia na mostra Itinerários Únicos, no Estação Net Gávea, do Festival do Rio, nessa terça-feira (17), dia em que se completam oito anos de morte do ator.

‘A Última Gravação’ será lançado no Festival do Rio 11 anos após o começo das filmagens (Reprodução)

As diretoras mostram Sergio ensaiando as peças curtas de Beckett “Ato sem Palavras 1” e A Última Gravação de Krapp”, que formavam um programa único e ficaram em cartaz por mais de um ano no Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro. No doc, que começou a ser rodado em 2008, Sergio fala livre e abertamente sobre sexualidade, limitações físicas e até sexo, que ainda praticava. Ele aparece fazendo aulas de dança e tomando um banho. “Não tinha o menor problema em mostrar o corpo octogenário. Nenhuma depressão com a velhice. A entrega era total”, ressalta Isabel Cavalcanti.

As codiretoras Isabel Cavalcanti e Celia Freitas se tornaram amigas íntimas de Sergio Britto

Os onze anos que separam o começo das filmagens do lançamento não desanimaram as diretoras. “O fato de estar sendo lançado só agora e exatamente no dia em que ele morreu é muito simbólico. Afinal, é um documentário, serve para proteger e preservar a memória. Estrear nesse momento em que fazem tudo para destruir os valores culturais que fundamentam a nossa identidade é especial”, observa Isabel Cavalcanti, que além de atriz e diretora, é estudiosa da obra de Samuel Beckett.

Pois foi justamente o dramaturgo irlandês que aproximou os dois artistas e proporcionou o nascimento de uma sólida amizade. “Eu estava fazendo ‘Fim de Partida’ no Espaço Sesc’. No último dia, ele foi assistir. Já tinha feito com o Amir Haddad. Na saída, veio conversar comigo e me chamou para ser entrevistada no programa dele na TV Brasil, ‘Arte com Sergio Britto’”, conta Isabel. “Logo depois da entrevista, fez o convite para eu dirigi-lo, queria ser desconstruído como ator aos 85 anos, idade que tinha na época”.

Convite feito, convite aceito. “Muita gente disse que ele não ia conseguir, que devia descansar. Mas o que eu via era um homem com imensa vontade de fazer e aprender. Nós nos apaixonamos pelo processo criativo daquele espetáculo e, com isso, ficamos muito, muito próximos. O Sergio ganhou todos os prêmios de melhor ator do ano, inclusive o Shell”, lembra Isabel, que dirigiu o ator nas peças curtas “Ato sem Palavras 1” e A Última Gravação de Krapp”, formando um único programa, em 2009.

O espetáculo, que ficou em cartaz por mais de um ano no Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, representou, para o ator, um desafio de desconstrução e desnudamento. O próprio Sergio observou: “Beckett é uma experiência tão especial que eu não sei se tenho as palavras exatas para falar dela. Só posso garantir que foi talvez a experiência mais importante de toda a minha carreira. Barbara Heliodora disse que eu estava perfeito. Macksen Luiz matou a charada quando disse que nesse Krapp surgia um Sergio reinventado pela Isabel”.

O ator no camarim do Oi Futuro Flamengo, quando ensaiava as peças curtas de Beckett (Reprodução)

No documentário, a entrega à direção foi absoluta. “A disponibilidade era impressionante. Ele não retrucava”, conta Isabel Cavalcanti. “Na primeira leitura dos textos, na casa dele, fiquei com o coração na boca, pois ele tinha composto demais o personagem e não era aquilo. Fui obrigada a dizer ‘Sergio, não é isso, esquece a voz de velhinho, seja você. Você tem a memória do cinema, a sua própria memória. Não precisa fazer nada. Você é o Krapp’. E ele foi perseguindo aquele ‘nada’ lindamente. Tinha uma confiança e uma escuta incríveis. Confiava completamente nas minhas escolhas artísticas e estéticas”.

Codiretora de “A Última Gravação”, a montadora e roteirista Celia Freitas salvou o doc de ser um mero making of. “Quando vi as imagens do Sergio, fiquei apaixonada. Completamente apaixonada. Falei com a Bel: ‘Isso não pode ser making of, tem de ser um documentário’. Começamos a filmar sem compromisso, mas saiu uma nota no jornal. Um amigo dele leu e pediu para doar recursos”, conta Celia. Isabel Cavalcanti conta o resto da história: “Só conseguimos começar a fazer o filme porque tivemos esse apoio do Rodolfo da Silva, amigo do Sergio da época do Teatro dos Quatro (do qual Sergio Britto foi um dos fundadores, em 1978). Ele não é rico e não queria sequer aparecer, mas nós convencemos a figurar nos créditos. Fez isso por amor”.

Sergio Britto dança em sua biblioteca, em uma das cenas mais bonitas do filme (Reprodução)

Celia conta que o que mais a apaixona no filme é o fato de ser “cinema de afeto”. “Não é ‘de poder’ nem ‘de entretenimento’. É no que acredito. Mostra momentos de potência do Sergio, da minha relação com a Bel. Tem uma passagem em que ele presta uma homenagem linda à Fernanda Montenegro e à Nathalia Timberg. Ele lê uma mensagem muito bonita sobre envelhecer saudavelmente. O que mais me apaixonou nele foi levar a tocha acesa até o fim”, emociona-se. “É um filme de nós três. Sergio aparece dirigindo, também. Dirige a câmera, o fotógrafo. Ele queria se desnudar, se mostrar como velho. E isso tem a ver com potência”.

“Quando ele teve a hemorragia, a memória foi afetada. Mas pediu para continuar trabalhando. E não tinha pudores, o documentário é ele se entregando para a câmera o tempo todo. Eu e Celia tivemos a preocupação de mantê-lo como ‘o’ personagem. Os outros aparecem para mostrar a força dele”, revela Isabel. “Em 2017, não estava esse caos na Cultura. Conseguimos fazer porque, além do precioso auxílio do Rodolfo, no começo, tivemos apoio da Ancine, do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, do FSA e do Canal Cine Brasil, além da produtora Modo Operante, da Susanna Lira e do Tito Gomes. Apesar de todas as dificuldades, esperamos que chegue a todos”.

Nós também estamos na torcida.

SERVIÇO

A Última Gravação

Estação Net Gávea: Shopping da Gávea. Rua Marquês de São Vicente, 52, Gávea

Terça-feira (17), às 18h e quarta-feira, às 15h15