‘Ela não levantava bandeiras, ela era a bandeira’, observa a atriz e produtora Fernanda Thurann sobre Rogéria


Aos 33 anos, ela acumula produções importantes no currículo, como o multipremiado docudrama que conta a trajetória da ‘Travesti da família brasileira’, e a elogiada peça ‘Dogville’, adaptação para o teatro do filme dirigido pelo dinamarquês Lars von Triers em 2003

*Por Jeff Lessa

Aos 33 anos, a atriz e produtora curitibana Fernanda Thurann tem o mundo a seus pés. Exagero? Vejamos. Em outubro, estreia o longa “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto”, docudrama sobre a vida de Rogéria (1943-2017), coproduzido por ela e pelo cineasta Pedro Gui através da BR Produções, fruto da sociedade entre os dois. O filme foi apresentado no Festival do Rio e premiado no Los Angeles Brazilian Film Festival no ano passado. Na quarta-feira (14/8), será exibido durante o encerramento da primeira edição da Mostra Paradigma de Cinema Nacional, em Florianópolis, com direito a bate-papo com o diretor e com o produtor, André Garcia. A expectativa é grande, pois “Rogéria” já chega com passagens elogiadas por festivais e vários prêmios. “As pessoas gostam muito do filme. Pudera, trata de uma figura apaixonante. Até porque ela não levantava bandeiras, ela era a bandeira”, pondera.

Produzido por Fernanda, o docudrama sobre a vida da travesti Rogéria estreia em outubro (Foto: Nana Moraes)

Tem mais. Outro longa de Fernanda, estrelado por ela com o ator Samir Hauaji, em nova parceria com Pedro Gui, também chega às telas em outubro – só que na Espanha. Trata-se de “Cabrito”, uma história de terror que será exibida no Festival Internacional de Cinema de Catalunya, dedicado a produções do gênero que, este ano, acontece na cidade de Sitges entre três e 13 de outubro.

“O filme acompanha a saga de uma família extremamente religiosa, com uma fé muito grande. Em nome dessa crença, porém, eles cometem atrocidades. Comem carne humana porque acreditam que podem ‘se melhorar’, e mantêm relações familiares doentias. É uma crítica contundente à fé cega, a pessoas que não analisam criticamente suas crenças”, conta Fernanda. “O diretor Luciano Azevedo nos procurou com dois curtas de terror superpremiados, pois queria fazer o longa. Gostamos do que vimos e resolvemos produzir. Filmamos em fazendas de Juiz de Fora. O Pedro Gui fez a assistência de direção”.

Nesse ponto, vale a pena dar um pause na história para contar um fato curioso: Fernanda morre de medo de filme de terror. “Levei dias para ver os curtas! A trama e as críticas me deixaram muito interessada, e cadê a coragem?”, pergunta-se, rindo, a atriz. “Filmar, porém, foi muito gostoso. Nos sets não tinha o clima pesado da história e foi até bastante divertido”. Agora, “Cabrito” deve cumprir o circuito de festivais, cinemas, plataformas digitais etc. Por enquanto, o filme não tem data de estreia prevista no Brasil: “Estamos na fase de fechar com a distribuidora”.

Mas o coração de Fernanda se acelera ainda mais pela reestreia de “Dogville”, a peça baseada no filme dirigido pelo dinamarquês Lars von Triers em 2003 estrelada por Mel Lisboa e Fabio Assunção, que fará temporadas nos CCBBs de Belo Horizonte e Brasília ainda neste segundo semestre de 2019. Antes terá mais uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo e voltará ao palco no ano que vem, na capital paulista. Imenso sucesso em 2018, quando colecionou críticas excelentes por onde passou, a montagem foi idealizada e produzida por Fernanda e seu sócio, Felipe Lima.

“Trouxemos o cinema para o teatro, na contramão do filme, que levava o teatro para a tela. Misturamos as linguagens e o efeito foi fantástico. Como a maioria do elenco é de São Paulo, passamos três meses ensaiando lá. Agosto, setembro e outubro. Estreamos no Shopping da Gávea e tivemos nove semanas de casa cheia. Foi uma surpresa, pois o público hoje busca mais escapismo, mais comédias”, observa a atriz, que interpreta Liz, a mais jovem e bela da aldeia antes que Grace (Mel Lisboa) chegue para abalar as estruturas do lugar. “Em São Paulo foi um escândalo. Tivemos a temporada dos sonhos de qualquer um que trabalhe com teatro. Três meses de casa cheia, críticas maravilhosas, seis indicações aos prêmios Bibi Ferreira”.

A atriz e produtora Fernanda Thurann vai voltar ao palco com ‘Dogville’ (Foto: Nana Moraes)

A peça conta a história de Grace, uma mulher misteriosa que está fugindo de gângsteres e se esconde na pequena Dogville. Em troca de abrigo, se propõe a trabalhar para os moradores. Quanto mais ela se entrega e demonstra bondade, mais os cidadãos de bem abusam, esgarçando a situação a limites inimagináveis. Grace descobre que a bondade pode ser bastante relativa em Dogville, mas guarda um segredo capaz de abalar o lugarejo. “Foi um processo riquíssimo de aprofundamento na dualidade humana. Começamos a ensaiar no período pré-eleição, estávamos todos muito apreensivos, não tinha como não levarmos esse sentimento para a cena”, observa Fernanda.

Fernanda estudou no Lee Strasberg Theatre and Film Institute, em Nova York (Foto: Nana Moraes)

Para o começo do ano que vem, a incansável Fernanda já tem um projeto em andamento. Quer produzir e estrelar o monólogo “Encantados do Sossego”, baseado na tese de doutorado da diretora e amiga pessoal Monique Deboutteville. “Ela tem pai francês e mãe paraense. Passou a infância na Ilha do Marajó. A tese dela, por sinal, é sobre a cultura da ilha. Foi a partir da tese que veio a ideia do monólogo”, conta Fernanda. “Fomos juntas a festivais de carimbó, um ritmo fascinante que eu conhecia pouco. O pessoal de lá não encara as histórias do Boto e da Mulher Cheirosa, por exemplo, como lenda. Eles fazem parte da vida. Muitas conversas começam com histórias sobre uma prima que engravidou do boto e é real, não é imaginação”.

No monólogo, Fernanda dá vida a Joana, uma mulher que conta sua vida falando dos mitos do Norte, de religião, do carimbó. “À medida que ela conta a história, a gente vai ficando em dúvida se é uma mulher ou uma encantada que está ali”, entrega a atriz, que quer montar “Encantados” no Teatro Poeirinha. “A princípio pensamos em fazer num espaço ao ar livre, um jardim. Mas a ideia agora é justamente montar num lugar mais íntimo, para poucas pessoas de cada vez”, diz.

Em 2020, Fernanda vai estrelar o monólogo Encantados do Sossego”, que fala da cultura na Ilha de Marajó (Foto: Nana Moraes)

Por trás da fala tranquila e do jeito suave, está uma mulher experiente, que sabe o que quer e acumula um currículo e tanto. Em 2006, com apenas 20 anos, ela mudou-se para Nova York a fim de estudar no prestigioso Lee Strasberg Theatre and Film Institute, fundado pelo inventor do Método, técnica de interpretação criada no final dos anos 1940 usada até hoje por grandes atores. Depois de um ano, voltou ao Brasil para estudar na Casa de Artes Laranjeiras (CAL). No teatro, Fernanda atuou em peças como “Perto do Coração Selvagem”, adaptada do romance homônimo de Clarice Lispector com direção de Luiz Arthur Nunes, “O Mambembe”, de Arthur Azevedo, dirigida por Almir Telles, e “Nó do Coração”, dirigida por Guilherme Leme. No cinema, além dos longas que produziu e estrelou, Fernanda está com Leandro Hassum em “Operação Coyote”, ainda em fase de captação.

Produtora de teatro e cinema em um país no qual a cultura é constantemente ameaçada, como ela faz para não desanimar? “Escolhi olhar sempre para o lado positivo. As leis de incentivo fiscal são importantes? São, mas se não existirem mais, a gente cria outras maneiras de fazer arte. O financiamento coletivo é uma possibilidade e engaja a pessoa física na produção cultural. Na verdade, a crise está dando a oportunidade de o pessoal da área artística se conhecer, se juntar. O que não pode é parar”.