*Por Brunna Condini
O premiado documentário do cineasta e roteirista Karim Aïnouz, “Aeroporto Central” (2018), teve alterados os projetos de lançamento nas salas de cinema por conta da pandemia do novo Coronavírus. E como inovar? Em entrevista exclusiva ao site, o cineasta cearense fala da estreia do longa nas plataformas de streaming na sexta-feira (dia 24), quando estará disponível no Now, Vivo Play, Oi Play, Itunes, Google+, Filme Filme e Looke. E também, da repercussão da pandemia no mundo, e mais especificamente na Alemanha, onde vive. Além disso, Aïnouz reflete sobre as criações durante e pós Covid-19.
“Esse documentário estreou em 2018 e circulou pelos festivais internacionais. Logo depois, fiquei tomado por outro filme, “A Vida Invisível” (2019), e decidimos lançá-lo no Brasil em março. Mas aí veio o Coronavírus e mudamos a estratégia”, pontua. “É a primeira vez que estou lançando um longa no streaming. Mas esse documentário tem um DNA diferente. As pessoas vão assistir um filme sobre refugiados em quarentena em um aeroporto e que também estarão vivendo um isolamento social. Acho que pode suscitar debates importantes tal qual uma espécie de espelho”, frisa.
O filme de Karim Aïnouz tem uma trajetória considerável e celebrada. Estreou mundialmente na Mostra Panorama do 68º Festival de Berlim onde conquistou o prêmio da Anistia Internacional. Além de ter sido exibido em mais de 30 festivais internacionais, também foi lançado na Alemanha e exibido no Brasil na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e no 20º Festival do Rio.
O documentário se passa no extinto Aeroporto de Tempelhof, em Berlim, quem entre 2015 e 2019, teve seus hangares utilizados como um dos maiores abrigos de emergência da Alemanha para refugiados que buscavam asilo. O enredo foca nas trajetórias de dois homens, o estudante sírio Ibrahim Al Hussein, de 18 anos, e o fisioterapeuta iraquiano Qutaiba Nafea. Karim acompanha os dois entre 2015 e 2016. E, à medida que se ajustam ao cotidiano de entrevistas com o serviço social, aulas de alemão e exames médicos, eles tentam lidar com a saudade e a ansiedade para saber se poderão residir no país ou se serão deportados.
“Era um lugar de aviões de guerra e virou um abrigo de emergência temporário. O aeroporto foi usado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, e depois como parque. Em 2015, o lugar começou a receber refugiados que chegavam à Europa. Moro perto, passeava no parque, então, como via as pessoas chegando, senti a necessidade de registrar as cenas. Eram pessoas fugindo da guerra e sendo abrigadas em um antigo aeroporto militar alemão. Pensei que seria importante rodar um documentário sobre a experiência única e também repleta de ironia”, detalha.
“Fiquei muito impressionado com as histórias que ouvi. Comecei a ir durante seis meses antes de começar a filmar, para conversar, conhecer de perto. No começo, não sabia quanto tempo as pessoas que estava conhecendo ficariam no abrigo. Então, pensei que o filme só faria sentido se fosse realizado ao longo de um tempo e para acompanhá-las”.
O diretor falou conosco direto de sua casa, em Berlim, onde está em isolamento social. Como você está e qual a impressão pessoal sobre os efeitos da pandemia na Alemanha, que é um país que parece ter mais controle da situação? “Estou bem. Tem uma história curiosa desta situação toda para mim, que começou no início de março. Em fevereiro, tive um problema no joelho, então estou em casa, isolado, há algum tempo. Só continuei assim, estou protegido”, revela Karim.
“O combate à pandemia na Alemanha está sendo bem conduzidp. Temos uma primeira ministra responsável (Angela Merkel). As medidas de isolamento social foram rígidas, como têm de ser. Tenho uma casa para morar, trabalho, mas fico angustiado com o que está acontecendo no mundo, no Brasil, com tanta gente vulnerável”, pondera.
Natural de Fortaleza, filho de uma brasileira e de um argelino, o cineasta tem acompanhado o Brasil em meio ao Coronavírus. ‘”O cenário é assustador. Fico muito chocado observando como os poderes Legislativo e Judiciário têm se comportado com relação ao Executivo. Observo como o presidente tem estado à frente de uma das maiores economias do mundo. É isso: um sentimento de indignação em muitos aspectos”, desabafa. “Falo com minha família, acompanho, mas somos de classe média, estamos relativamente protegidos. E quem não tem nada e está desamparado?”, questiona.
Diretor de longas premiadíssimos, como “Madame Satã” (2002) “O Céu de Suely” ( 2003) e “Praia do Futuro” (2014), Karim não costuma rever suas obras. Mas entrega que com “Aeroporto Central” vai ser diferente: “Não assisti novamente desde que finalizei. É que parece que quando assisto um filme de novo, fico vendo o que acho que poderia ter feito melhor (risos). Mas esse filme conversa com esse momento. Então, eu vou abrir uma exceção”.
Além do contexto histórico, ele também destaca o fato da criação ter um aspecto pessoal envolvido. “Sou filho de argelino e vivi na França durante a adolescência. Por conta do meu nome, que é árabe, a discriminação que vivi lá me fez ver o mundo com outros olhos. Senti esse preconceito que os personagens passam no filme. Claro que em outra proporção. Então, quis verdadeiramente ouvir essas histórias e aprendi muito’, recorda.
“E tem outro aspecto, que é o de estar contando minha versão desse fluxo migratório. Até porque a representação do jovem árabe, principalmente o homem, estava sendo atrelada ao perigo, isso me incomodou e é injusto, preconceituoso. Os que vêm para a Europa e sobrevivem são representados na grande mídia mais como números do que como seres humanos. Isso causa uma grande indignação. Na França fui constantemente discriminado. Era exatamente esta experiência que Ibrahim, Qutaiba e todos os solicitantes de asilo viviam ao chegar no continente que a priori deveria acolhê-los. Eram tratados como vírus e deveriam passar por um período de “quarentena” até serem admitidos no país que supostamente os acolheu. Com esse filme aprendi sobre resiliência. Quase que como se eu tivesse resolvendo uma questão pessoal”, revela.
Você mora na Alemanha há dez anos. Por que foi morar aí? “Vim porque me atrai morar em um lugar onde não sabem quem sou, de onde vim. Isso me dá um encantamento, algo como poder me reinventar do zero, sem julgamentos”, comenta.
Amor, opressão, resistência e afeto, são temas presentes no seu trabalho. Está escrevendo agora? “Estou fazendo um projeto sobre a história da minha família, sobre a guerra de Independência na Argélia. Me interessa falar de personagens que estão lutando para sair da margem”, diz. “E com a quarentena, minha cabeça anda repleta de ideias. Estou sonhando em fazer mil projetos”, conta.
O cinema brasileiro já passava por um momento difícil, com crises nas instituições e na distribuição de fomentos, embora 2019 tenha sido um bom ano para indústria. Acha que ele se reinventa mais uma vez depois desta pandemia? “Acho que vamos repensar que histórias devemos contar. O mundo não será mais o mesmo. Vai ser muito difícil contar histórias sobre o agora neste momento, mas espero que possamos continuar contando histórias. Precisamos voltar a ter um mercado forte”, torce.
“Um dos cinemas mais exuberantes que temos no mundo é o coreano, que é subsidiado pelo governo. Se mudarmos a política audiovisual, que não deve ser por agora, podemos retomar a exuberância do cinema. Mas temos um desafio gigante com os contadores de histórias, que é reimaginar o futuro, porque não temos ideia. Qual será ele daqui para frente? É um desafio excitante. Não é sobre o agora, é sobre o depois. Não sabemos que mundo teremos pós-pandemia. Quero acreditar que teremos um mundo melhor, não distópico”, dispara.
O que espera atingir nas pessoas que assistirem “Aeroporto Central”? “Transformar a maneira como os solicitantes de asilo são vistos, chamando a atenção para a verdadeira luta e trabalho duro dessas pessoas. E também espero que a energia das pessoas que cruzaram o Mediterrâneo e arriscaram suas próprias vidas esteja impressa no filme. É importante, especificamente neste momento que estamos vivendo, que a gente olhe para o passado de maneira crítica e não deseje voltar para o “normal”, porque o que chamamos de normal era de fato uma aberração. É importante imaginarmos um mundo mais justo, com uma distribuição de renda mais igualitária, mais humano e menos neoliberal”, opina.
Pedimos o auxílio luxuoso de Karim para dar dicas do que assistir nesta quarentena. “Olha, indico “Atlantique”, um filme senegalês do ano passado. E de série, gostei de “Chernobyl” (HBO), que é devastadora, mas ajuda a não cometer os mesmos erros. E tem “True Love” também, da BBC”.
E que dica dá para quem deseja escrever, começar a registrar essa realidade de alguma forma? “Escreva um diário sem pensar se ele vai ou não ser publicado. Isso será importante para as gerações que não viveram isso”.
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