Dívida de honra: Hilary Swank estrela visceral western feminino sobre jornada solitária do ser humano pela vastidão do mundo


Aficionados do gênero western têm razões de sobra para comemorar o lançamento de “The homesman”, segundo filme dirigido por Tommy Lee Jones que estréia hoje, assim como os fãs de Hilary Swank que já algum tempo não a viam numa atuação tão pungente

*Por Flávio Di Cola

As representações do Velho Oeste na cultura popular consolidaram esse espaço como o domínio do macho por excelência, onde “os homens são homens” ou o lugar onde eles provam que não são mais “meninos”. Mas depois da Segunda Guerra – momento que deu o pontapé decisivo rumo à emancipação feminina do século 20 –, essa visão começou a mudar. Em 1954, explode nas telas a obra-prima do diretor Nicholas Ray (1911-1979) “Johnny Guitar” (Idem, Republic Pictures), western protagonizado por duas mulheres destemidas e implacáveis – Joan Crawford e Mercedes McCambridge – cujo ódio que nutrem uma pela outra na esteira da disputa por poder e sexo as arrasta inevitavelmente para um duelo de qual só uma pode sair viva. Desde então, esse gênero que define a natureza profunda do cinema norte-americano passou por todo o tipo de revisão, desconstrução e vulgarização. Uma vez ou outra, o western volta às telas à procura da sua velha dignidade, como ocorreu sob a tutela de Clint Eastwood em “Os imperdoáveis” (Unforgiven, 1992, Warner) e também agora com “Dívida de Honra” (The homesman, 2014, EuropaCorp/Ithaca), este com a curiosidade de recolocar a figura feminina no centro das motivações e da condução do enredo.

O mais famoso duelo da história do western feminino: Joan Crawford versus Mercedes McCambridge no clássico de Nicholas Ray “Johnny Guitar” (Idem, 1954), embalado pelo tema inesquecível de Victor Young (Reprodução)

Os revolucionários anos 1960 subverteram os gêneros tradicionais e o western não escapou de releituras irônicas e debochadas com um novo tipo de protagonismo, o das mulheres aventureiras, e irreverentes. Veja algumas:

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Dívida de honra” é a adaptação do romance The homesman de Glendon Swarthout (1918-1992), autor que já teve várias de suas sagas ambientadas no Oeste levadas para o cinema como “Heróis de barro” (They came to Cordura, 1959, de Robert Rossen), com Gary Cooper e Rita Hayworth; “Abençoai as feras e as crianças” (Bless the beasts & children, 1971, de Stanley Kramer), cuja canção-tema estourou nas paradas de sucesso na versão de The Carpenters; e “O último pistoleiro” (The shootist, 1975, de Don Siegel), derradeiro filme de John Wayne (1907-1979).

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Em “Dívida de Honra”, a ação transcorre nas Grandes Planícies do centro-norte dos Estados Unidos, em rápido processo de ocupação por colonos e vaqueiros, de expulsão dos índios autóctones e de dizimação dos bisontes, ícones da outrora vida selvagem desse habitat. Mary Bee Cuddy (Hilary Swank) é uma fazendeira “solteirona” que migrou de Nova York em busca de oportunidades nos novos territórios e membro de um minúsculo agrupamento humano perdido na imensidão regido pelo Reverendo Dow (John Lithgow). Nesse caldo de fervor religioso, brutalidade e solidão, algumas mulheres enlouqueceram e precisam ser afastadas de seus maridos e filhos a fim de serem transportadas de volta para o leste, em Iowa. Lá, elas deverão ser acolhidas por uma comunidade puritana supervisionada pela mulher de um pastor (Meryl Streep, numa aparição de 10 minutos). Viagem perigosíssima que a brava Mary Bee iria empreender completamente só – diante do vacilo dos homens – se ela não encontrasse pelo caminho George Briggs, desertor do exército, bêbado e oportunista (o próprio Tommy Lee Jones) prestes a ser enforcado. Ao livrá-lo da morte, Mary exige que George a ajude nessa aventura, o que ele aceita relutantemente e mediante a perspectiva de uma recompensa em dinheiro.

Trailer oficial (Divulgação)

Assim, estabelece-se a premissa clássica do gênero western desde John Ford, o “Homero do Cinema”: uma empreitada quase suicida e absurda – o transporte de três psicóticas amarradas como feras no interior de uma carroça-prisão –, levada a cabo por duas personalidades opostas que – todavia – têm em comum a insensatez e a consciência de que foram deserdados pelo mundo. Enquanto a virtuosa Mary Bee espera encontrar nessa prova mais uma razão para o seu higiênico reformismo e – quem sabe ? – arranjar um marido, o transgressor George se instrumentaliza como ajudante somente até onde puder garantir a sua escapada e um dinheirinho. O problema é que os desafios dessa jornada serão de tal monta que esses papéis acabarão embaralhados e as responsabilidades redistribuídas, até um final em que George não consegue resistir ao apelo para voltar àquele Oeste brutal, mas onde ele pode ser o que é.

Foto (Divulgação)

Foto (Divulgação)

E por falar em desafios, a direção de Tommy Lee Jones consegue vencer aquele que é o de contar com fluidez uma história que poderia facilmente se perder, mas que se mantém firme no seu propósito de nos arrastar a todos até a conclusão dessa jornada improvável e que ainda oferece boas reviravoltas. Nessa tarefa narrativa, deve ser destacado o trabalho do diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto em cujo currículo encontra-se não somente a maioria dos filmes de Alejandro González Iñárritu desde “Amores brutos” (Amores perros, 2000), como também contribuições decisivas para o êxito de cineastas como Ang Lee em “O segredo de Brokeback Mountain” (Brokeback Mountain, 2005), Ben Affleck em “Argo” (Idem, 2012) ou Martin Scorsese em “O lobo de Wall Street” (The wolf of Wall Street, 2013). A forma ao mesmo tempo bela e assustadora com que a câmera de Prieto abarca a desesperadora vastidão das planícies é fundamental para que se entenda a natureza trágica que define a vida desses personagens.

Aliás, não seria arriscado supor que Tommy Lee Jones e Rodrigo Prieto foram buscar na obra-prima de Terrence Malick “Cinzas do paraíso” (Days of heaven, 1978), também fotografada por outro diretor latino – o oscarizado Néstor Almendros (1930-1992) -, as referências cinematográficas capazes de captar em toda a sua grandiosidade os campos de Nebraska para torná-los a imagem viva do nosso abandono na terra.

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Hilary Swank é atriz que não hesita em levar até as últimas consequências as transformações exigidas para os seus papéis. Confira abaixo:

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*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria