* Por Flávio Di Cola, direto de Veneza
O “tappeto rosso” mais antigo da história dos festivais cinematográficos mundiais – desenrolado em frente ao Palazzo del Cinema desde 1932, quando Mussolini decretou que “a maior arma é o cinema” – nunca imaginou que iria servir de capacho para tanta agitação desde os primeiros momentos da 71ª edição da Mostra de Veneza: no dia da abertura, um pouco antes da chegada do presidente da República Italiana Giorgio Napolitano, dois mil funcionários públicos venezianos escolheram a passarela das estrelas para manifestar a sua revolta contra cortes salariais, o que acabou num empurra-empurra no meio das limusines que transportavam as celebridades.
Logo depois, os organizadores do festival anunciavam que as cadeiras da jurada iraniana – a documentarista Mahnaz Mohammadi – e a do diretor ucraniano natural da Criméia Oleg Sentsov, permaneceriam “simbolicamente vazias” como forma de protesto pelas suas prisões ocorridas poucos meses antes do início do evento. Mahnaz foi presa em Teerã, em junho, pelas suas ações em prol dos direitos das mulheres do seu país. Acusação: colocar em perigo a segurança nacional e a imagem do Irã. Sentsov foi detido pela polícia russa na Criméia em maio e levado para Moscou por ter se insurgido contra a anexação da sua província pelo “império” russo. Acusação: terrorismo. Agora, Alexandre Desplat – atualmente, o mais badalado compositor de trilhas de cinema e presidente do Júri da Mostra Competitiva – terá apenas oito jurados para auxiliá-lo nos trabalhos de premiação do Leão de Ouro 2014. Felizmente, ele conta com os talentos do ator Tim Roth e da super premiada figurinista com três Oscar nas costas, Sandy Powell, entre outros nomes originários dos meios cinematográficos chinês, alemão, austríaco, inglês, palestino e italiano.
Como se não bastasse toda essa confusão, a 71ª Mostra do Cinema de Veneza luta com unhas e dentes para recuperar parte do seu antigo prestígio e sustentar a posição do segundo mais importante festival cinematográfico do mundo, seriamente ameaçada pela mostra de Toronto que ocorre mais ou menos na mesma época. É verdade que é difícil esquecer a tradição da festa veneziana, o seu percurso de mais de oito décadas que irriga a história do cinema desde o início do século 20, e o acervo único de imagens embebidas de glamour e apimentadas por escândalos artísticos, políticos e mundanos. Mas o mercado de festivais de cinema está cada vez mais competitivo – são milhares deles, mundo afora -, e os rumos da arte e da indústria audiovisual parecem – a cada ano – cada vez mais incertos e voláteis. Isso sem falar das mudanças inesperadas no gosto do público e crítica, dos progressos tecnológicos alucinantes que impactam em termos literalmente globais a realização, a finalização, a distribuição e a exibição das criações audiovisuais. Por esses motivos, o foco do Festival de Veneza, nestes últimos três anos, tem sido marcadamente o de ser um fórum e um entreposto do mercado internacional do filme, mas de um jeito mais europeu. Segundo a última edição da poderosa revista “The Hollywood Reporter” que está na mão de cada frequentador da mostra, “se Toronto tornou-se um mercadão global, Veneza é uma requintada butique italiana”.
Fotos: Flávio di Cola
De fato, as dimensões e o desenho organizativo do festival veneziano priorizam muito mais a qualidade do que a quantidade e – numa pegada bem mediterrânea –, aqui o conforto e o prazer vêm antes da produtividade. A indústria de Hollywood não é boba e já percebeu que a atmosfera de exclusividade de Veneza pode ser um excelente trampolim para o lançamento global de alguns blockbusters que carreguem alguma “assinatura” autoral, como foi o caso de “Gravidade” (Gravity, 2013), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuaron, cujo primeiro salto no trampolim do sucesso foi dado na Mostra de Cinema de Veneza. Resultado: o melodrama espacial com Sandra Bullock e George Clooney já acumulou quase 720 milhões de dólares de renda desde então.
A Warner Bros. decidiu repetir esse ritual no festival de 2014 com a esperança de abocanhar mais milhões ainda com uma superprodução igualmente dirigida por um talentoso diretor mexicano: desta vez o amuleto asteca da sorte do estúdio norte-americano é Alejandro Iñárritu com o seu “Birdman (or the unexpected virtue of ignorance”. Para garantir o sucesso inicial nas areias da praia do Lido mas longe da terra de Montezuma, Iñárritu convocou todos os astros desta “comédia negra” sobre o meio teatral, como ele mesmo define seu sexto longa-metragem. Michael Keaton, Edward Norton e Emma Stone – noiva do herói aracnídeo Spiderman, e também na vida real do seu intérprete Andrew Garfield – não hesitaram em garantir uma abertura estelar ao evento. Para ironizar o próprio personagem que interpreta no filme – Mike, um jovem ator, narcisista e cabotino – Edward Norton aplicou-se um selfie em pleno red carpet. Mal sabia a multidão que se comprimia em frente ao Palácio do Cinema que “Birdman” é um violento libelo contra todo o tipo de fama e de celebração que supere e distorça a importância intrínseca da arte de representar. E no conjunto de fatores que alimentam a decadência trazida pela notoriedade massificada, Iñárritu mira a sua metralhadora para o Facebook e o Twitter. Para o diretor, a função primeira do artista como profeta se perdeu faz tempo e hoje está reduzida a imbecilidades que são tecladas e “compartilhadas” bilhões de vezes no circo digital e esquecidas no mesmo átimo de tempo em que são “acessadas”, para tudo desaparecer num grande nada.
Fotos: Divulgação
“Birdman” pode ser definido como uma versão de “A malvada” (All about Eve, 1950) da Era das Redes Sociais, e tão implacável e cínica como o clássico mitológico de Joseph L. Mankiewicz com Bette Davis e Anne Baxter. Michael Keaton é Riggan Thomson, ex-astro de uma franquia de super-herói de cinema – o Birdman do título, um ridículo paladino da justiça emplumado – que decide resgatar o seu renome e sua “dignidade” artística através da adaptação teatral de uma obra literária de Raymond Carver em fase de pré-estreias antes da première definitiva na selva da Broadway. Com a vida amorosa e familiar implodidas, dilacerado por dilemas internos que o enlouquecem até ser tomado por alucinações, Thomson é ainda obrigado a suportar a chegada de um jovem e turbulento ator em franca ascensão – numa evidente sátira aos rebentos do Actors Studio como Marlon Brando, James Dean e Paul Newman – capaz de todas as patifarias para fragilizar o astro da peça e roubar a cena. Nessa arena ainda brigam Emma Stone como a ex-drogada filha de Riggan em fase de hesitante recuperação, e Naomi Watts como a insegura e patética atriz estreante de uma produção importante.
Fotos: Divulgação
A obra de Iñárritu se alinha ao velho gênero de “filme de bastidor”, mas dirigido com ritmo vertiginoso e com apelo ao exagero tipicamente contemporâneo, características estas enfatizadas por uma câmera fluida e incansável que recupera radical e magistralmente a experiência de Alfred Hitchcock com o “plano sequência” (tomadas longuíssimas sem corte) de “Festim Diabólico” (The hope, 1948). Todavia, tanto “som e fúria” acabam por entorpecer um pouco os sentidos e a relação do público com esse relato sobre a voracidade da indústria cultural americana e os egos insanos e desesperados que nela (sobre)vivem, para tudo ser escrutinado por críticos raivosos e pelas massas e seus dispositivos de conexão com aquela coisa amorfa chamada “redes sociais”
Piera Detassis, crítica da revista de cinema italiana “Ciak”, qualificou – com muita propriedade – “Birdman” de “disaster movie intimista” não só motivada pela catastrófica sequência final que esculhamba com os insuportáveis super-heróis alados que infestam as telas do mundo, mas também pelos recentes e trágicos suicídios de Robin Williams e Philip Seymour Hoffman que – como o atormentado Riggan Thomsom – de alguma forma queimaram seus talentos na fogueira do sucesso.
Teaser Oficial de ‘Birdman’
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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