*Por Brunna Condini
É fim de tarde em Barcelona e o ator Luiz Felipe Lucas começa esta entrevista próximo à uma janela, em que podemos ver, através da chamada de vídeo, o entardecer do outono espanhol. “Está quente aqui, você espera um instante que vou abri-la?”. Ele abre a janela, fica confortável e começa um papo que fluiu fácil. Conta que mora na Espanha desde 2018 e fala da experiência de trabalhar com Bruno Gagliasso na série ‘Santo‘, da Netflix. Luiz Felipe dá vida a um delegado da polícia federal, braço direito do protagonista vivido por Gagliasso. “O streaming é poderoso, já me reconhecem por aqui. Olha, trabalhar com o Bruno foi demais. Ele é um cara que, ao mesmo tempo em que está ligado em tudo, é absolutamente concentrado, sabe muito da parte técnica, de cada lente, câmera. Conhece profundamente a dinâmica do audiovisual, bom de trabalhar perto. E tem uma curiosidade: ele é pequeno e eu enorme, tenho 1,90m (risos). Em muitas cenas isso fica evidente, mas decidimos assumir a diferença. Os seres são diversos na vida e nas telas também”.
Cria do teatro, ele integrou a Cia Teatro Esplendor, comandada pelo ator Bruce Gowslevsky, e a Uzyna Uzona, cia teatral de José Celso Martinez Corrêa, trabalhando no elenco principal por dois anos. “O palco é uma grande fonte de estudo. A sabedoria que o teatro traz, carregamos para todos os trabalhos”. Na função de diretor e criador, também tem seis trabalhos com sua assinatura, realizados no Brasil, na Itália, na Espanha e na Áustria.
Na luta por outras narrativas, desejando uma sociedade mais igualitária, inclusive em termos de oportunidades, Luiz Felipe chama atenção para o racismo ainda enraizado no audiovisual. “É fácil perceber isso. Existe uma falha grande com relação às nossas histórias, e a história do povo preto tem uma necessidade urgente de ser contada, da maneira que merecemos, porque o racismo é presente em nossas vidas cotidianas, dentro ou fora de um set. Mas o audiovisual ainda não trata dessa urgência”, reflete.
O ator mineiro de 34 anos, começou a fazer teatro aos 9, e conta que o desejo de viver do ofício foi um sonho de menino que se realizou. “Sinto saudades do Brasil, embora adore morar aqui. Visito meu país sempre que posso. Quando pintou o teste para a série, estar por aqui foi um facilitador”.
Filmada entre maio e agosto de 2021, com sets divididos entre Espanha e Brasil, a série “Santo” da Netflix está entre os 10 títulos de língua não inglesa mais vistos do mundo na plataforma. O thriller policial conta a história de um traficante de drogas com identidade desconhecida das autoridades. O mistério vira uma missão para os policiais federais, Ernesto Cardona (Bruno Gagliasso) e Miguel Millán (Raúl Arévalo). Como braço direito de Cardona e seu parceiro direto nas diligências, está o personagem de Luiz Felipe, Paulo. “O personagem do Bruno é explosivo, o meu é racional, sensato, cria da periferia. Sabe que existem dois lados da moeda, busca ser estratégico. Eles têm uma amizade antiga”, revela.
Tenho vontade de voltar a morar no Brasil e dar continuidade à uma história que também estava em crescimento. Nunca fiz novela, está na lista dos desejos – Luiz Felipe Lucas, ator
Para sempre
O ator conta que foi para a Espanha junto com a família e inspirado pela irmã, Nega Lucas, que morreu em março deste ano, aos 39, de câncer. “Minha irmã já morava na Espanha há 16 anos, e então começamos a vir, meus pais, minha outra irmã mais velha e eu. Nega era artista, escritora e performer. Partiu muito cedo, mas posso dizer que os últimos três anos e meio que passei com ela aqui foram os melhores da minha vida. Trabalhamos juntos, escrevemos, foi incrível”, recorda. “Sou muito parecido com ela, fisicamente e nas formas de ver o mundo. Sempre tivemos muita afinidade. Minha irmã está em mim totalmente e tudo o que faço dedico à ela. Cada trabalho, momento meu que acho que gostaria de ver”.
Racismo no audiovisual
“Avançamos, mas poucos pretos são vistos na chave de comando, os meios de produção não são nossos. Nos vemos muitas vezes a serviço de alguém que deseja contar a nossa história – porque é maneiro contar a nossa história – mas que de alguma forma, acaba perpetuando essa herança racista que o Brasil tem. Falta uma alternância de narrativas, é sempre o ponto de vista da pessoa branca olhando pra gente. Alternar vai fazer com que as histórias sejam contadas com a verdade que merecem. Precisa também de investimento, de gente consumindo essas histórias pretas. Fazer o dinheiro rodar para o lado de cá também. E aí, se ficar bom para a população negra, que são 54%, e passou o que passou para chegar aqui, vai estar bom para todo mundo”, pontua.
Minha irmã está em mim e tudo o que faço dedico à ela. Cada trabalho, momento meu que acho que gostaria de ver – Luiz Felipe Lucas, ator
E aproveita para falar diretamente com o branco que se reconhece antirracista. “É preciso adquirir conhecimento por si só. Não tem que ficar perguntando o que precisa fazer pra gente. Existe uma cultura no Brasil, do branco mal acostumado, de que as coisas sempre vão chegar até ele, sabe? Mas se você quer ser antirracista, é importante lançar mão de suas ferramentas para buscar esse conhecimento. Existe uma gama de informações que precisam ser rastreadas pelas pessoas brancas que não desejam que o racismo se perpetue. Sem preguiça, com iniciativa. A fase inicial é essa busca verdadeira. É isso que modifica a visão, que vai fazer você enxergar um preto em outros papéis, além dos que historicamente ele ocupou”.
E quando já é noite do lado de fora na janela do seu apartamento, conclui: “Foram muitas lutas até aqui. O ‘buraco do Brasil é mais embaixo’, mais do que de todos os povos que passaram por um processo escravista. Até hoje você anda na rua e vê quem come e quem tem fome. Quem limpa e quem se diverte. Temos que desnaturalizar isso de uma vez por todas. Não tem como andar mais para trás. Vamos em frente, sem culpa, a história está feita, mas que medidas nas atitudes diárias, na política, na arte, serão tomadas para a transformação dessa realidade? É sobre isso”.
Se ficar bom para a população negra, que são 54%, e passou o que passou para chegar aqui, vai estar bom para todo mundo – Luiz Felipe Lucas, ator
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