*Por Rafael Moura
A intelectual, política, professora e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994) foi uma das maiores pensadoras sobre os direitos humanos e tem muitas reflexões sobre a igualdade racial e de gênero e uma delas é a seguinte: “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo e negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial”. Com esse pensamento o site Heloisa Tolipan assistiu uma das lives mais interessantes durante essa pandemia entre a atriz Suzana Pires, fundadora do Instituto Dona de Si, com a multiartista Zezé Motta, em homenagem ao Dia da Mulher Negra, 25 de julho, também celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola que viveu no atual Estado de Mato Grosso durante o século XVIII. A data foi inspirada no Dia da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha, criado em julho de 1992.
No Brasil, o país que tem o maior índice de feminicídio na América Latina, a a comemoração nacional, desde 2014, marcou a luta das milhões de mulheres. Por todo território nacional ocorreram marchas que chegaram a reunir 30 mil ‘Terezas, Lélias e Marielles’ que se espalham pelo Brasil. Como disse o samba enredo, ‘História para ninar gente grande’:
‘Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês’
A live começa com Suzi Pires eufórica tentando dimensionar tamanha importância e pioneirismo de Zezé Motta para a arte brasileira. “Além de uma referência, um ícone, Zezé é pioneira, gigante. Estou meio nervosa com esse encontro. A primeira vez que eu te vi, não consegui nem falar, tirei uma foto de longe e fiquei te admirando”, inicia. E pergunta: “Você tem plena certeza da importância de ser pioneira em um mundo tão desigual. Qual é a responsabilidade de abrir as cortinas para as atrizes que estão por vir?”.
“A primeira foi Ruth de Souza, minha grande amiga. Ela sim acendeu os refletores dos palcos para as atrizes negras. Eu sou uma geração depois da dela. E você falou uma palavra certa: a responsabilidade com as que estão por vir. Foi e continua sendo uma grande responsabilidade e, a partir daí, você não pode vacilar, não tem volta. É daí pra frente”, explica a entrevistada. E acrescenta: “A minha preocupação foi sempre em me informar mais, ficar mais antenada, aperfeiçoar o meu discurso, principalmente na questão racial e feminina. Olhar para trás eu acho que fiz a coisa certa”, orgulha-se.
O ano de 2019 levou muitas estrelas brasileira e uma delas foi Ruth de Souza (1921 – 2019). A primeira dama negra do teatro, do cinema e da televisão do Brasil foi a primeira artista brasileira a ser indicada ao prêmio de melhor atriz num festival internacional de cinema, por seu trabalho em ‘Sinhá Moça’, no Festival de Veneza de 1954. Com mais de 70 anos dedicados à dramaturgia, Ruth é um ícone para várias gerações de atores. Ela foi pioneira ao longo de sua carreira: foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio e a construir carreira na dramaturgia.
Zezé segue a transmissão mostrando que tem fibra digna de ter interpretado a guerreira Dandara dos Palmares, no filme ‘Quilombo’, de Cacá Diegues, 1984. “A Dandara era uma guerreira que deu sua vida batalhando pela vida dos negros. E eu fui lendo o roteiro e vi que ela era uma pessoa sempre de cabeça erguida e falei: ‘Cacá, tem certeza que essa personagem é para mim?’ Ele só disse: ‘relaxa, eu te conheço e você vai fazer bem’. Foi ali que eu percebi que eu podia mostrar toda a minha verve como atriz, mostrar esses diferentes lados. Não perdi noites de sono, porque eu confiei e dormi em paz”, revela.
Suzana lembra que a artista estrelou cinco filme do diretor, entre eles, o papel que a consagrou no mundo, ‘Xica da Silva’, 1976. ‘Nós viramos irmãos, um dos meus melhores amigos eu amo de paixão. Xica foi um divisor de águas na minha vida. Eu tinha já um fã clubezinho, no teatro e eu virei uma atriz conhecida no Brasil e no mundo depois de Xica da Silva. Eu conheci 16 países, para divulgar o filme, então descobriram que a ‘Xica’ cantava”, brinca.
A anfitriã fala sobre esse papel que marcou a carreira. “Ser a Xica até hoje é um problema para você? Você teve que fazer terapia para lidar com ela?”. Zezé responde que essa associação foi um problema, por pouco tempo. “Eu estava tentando imprimir meu nome na mídia. Então chegava na rua as pessoas me chamavam de Xica. Até que eu descobri que ela era minha madrinha e eu não tinha que reclamar de nada. Tem gente que até hoje me chama de Xica, outros me chamam de Zezé, podem me chamar como quiser, é tudo um carinho”.
Para Zezé Motta interpretar essas mulheres foi um ato político. A atriz revela que já setia um grande incômodo com as personagens que as atrizes negras podiam interpretar, principalmente na TV, em que a maioria desses papéis são marginalizados, pois não tinham família, marido, filhos, um núcleo, um cenário. Eram apenas elementos perdidos dentro de um outro núcleo. “Tem gente que acha que artista não tem que se envolver com política. Eu discordo. Eu acho que a gente tem que aproveitar os espaços que temos na mídia e o fato de sermos uma figura pública, as pessoas nos ouvem”, conta. Suzana concorda com a opinião da diva. “A gente não é político em partidos ou cargos. Somos políticos agindo e existindo”.
Voltando a 1984, a novela ‘Corpo a Corpo’, de Gilberto Braga que causou uma grande polêmica na sociedade por conta do relacionamento inter-racial vivido entre Sônia (Zezé Motta), uma negra de classe média, e Cláudio (Marcos Paulo), filho do rico empresário Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana). Sônia é vítima do racismo da família Fraga Dantas, levando ao rompimento do romance. Mais tarde, ela doa sangue para Alfredo, salvando sua vida. O amor inter-racial não foi aceito pelo público. “Um jornal ouviu telespectadores sobre o casal. Ficamos espantados com as respostas”, disse Zezé Motta. E completa: “Eu teria sofrido muito se não tivesse tido uma guru importante como Lélia Gonzales. Eu sabia que algo estava errado e que deveria ter alguma atitude. Quando Xica estourou no Brasil e no mundo, a minha responsabilidade ficou do tamanho do planeta. Eu fazia três entrevistas por dia, por conta do filme e me sentia angustiada, pois eu tinha o sentimento, mas não um discurso formado, principalmente com relação ao racismo”, desabafa.
Seu encontro com a militante foi por meio de um curso, no Parque Laje.”Eu li um dia no jornal que Lélia ia dar um curso, eu fiquei eufórica. Na aula inaugural, ela já começou dizendo uma frase que me marcou ao longo de todo o curso: ‘Eu sei porque vocês estão aqui, mas quero lembrar que não temos mais tempo para lamúrias, temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo’. Lélia me tocou tanto que virou uma guru na minha vida, principalmente enquanto militante”, conta.
A conversa perpassa pela processo de criação de personagens. Na adolescência para ajudar nas despesas do lar, e sem ter conseguido oportunidades como artista, Zezé trabalhou como operária em uma indústria farmacêutica, e à noite estudava o curso normal de formação de professoras. Mesmo contrariando sua mãe, que desejava que ela fosse costureira, aos finais de semana, passou a frequentar o Tablado onde formou-se como atriz.
Sua carreira de atriz teve o start em 1967, estrelando a peça ‘Roda-viva’, de Chico Buarque. “Eu sempre sigo para um caminho muito perigoso, que aprendi no Tablado, que é me colocar no lugar daquela mulher. Eu me jogo de corpo e alma e fico imaginando porque ela tá falando isso, por ela está cantando, chorando e agindo. É um exercício muito intenso que é passar por aquele momento, sofrer e quando acaba, você desliga. Viver uma personagem negra na TV é muito duro, cruel, trágico, principalmente por conta das narrativas. Temos que virar essa página, se não a agente não dá conta”, enfatiza.
A série brasileira, ‘Arcanjo Renegado’, uma das mais assistidas do Globoplay terá Zezé Motta no elenco. Na obra, irá interpretará a reitora de uma universidade da Baixada Fluminense, que ainda será mãe da nova presidente da ALERJ, vivida por Cris Viana. Sob o comando de José Junior, a segunda temporada da série ainda contará com o ator e roteirista Rodrigo França. “Esse papel me deixa muito feliz, porque é uma resposta, um eco, uma confirmação de que valeu e vale a pena lutar para que se faça justiça aos atores negros e que não façamos apenas papéis subalternos”, comemora, acrescentando: “Eu tive o privilégio de ganhar uma bolsa e fazer um curso no Tablado. Mas valeu a pena que a passos lentos as coisas estão mudando. Eu tenho mais seis filmes para estrear, que foram adiados por conta da pandemia. E tenho muito orgulho de todos esses personagens que fazem parte da nossa luta como atores negros”.
Suzana lembra a dobradinha de Zezé Motta com José Wilker (1944-2014) na novela ‘Transas e Caretas’. “Em Transas e Caretas que eu namorei o galã. E foi interessante, porque eu vivia reclamando que eu fazia a empregada subalterna e eu vivi uma das namoradas daquele garanhão, com quem ele transava com mais frequência”, relembra.
Suzana fala ainda sobre um dos maiores clássicos do cinema, ‘E o Vento Levou’ que se tornou objeto de polêmica com os protestos por conta do assassinato de George Floyd. O filme foi retirado dos catálogos da HBO, WarnerMedia, e de várias plataforma de streaming dos EUA e do mundo, no início de junho, atendendo a solicitação do colunista John Ridley, no Los Angeles Times. O filme retrata a escravidão no estado do Sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil, com uma complacência que indica essa condição terrível como aceitável e até agradável. Os escravos são retratados como pessoas felizes e leais, e até simplórias, e nada é mostrado de suas condições miseráveis. O longa se tornou a maior bilheteria da história, considerando os valores corrigidos pela inflação, e recebeu dez Oscars da Academia. Mas, hoje só é aceitável assisto-lo tendo em consideração o alerta sobre conteúdo racista. No Brasil, ele está disponível no Youtube e em DVD, sem esse alerta. “O Brasil sempre foi um país em que a luta pelo racismo ficou em segundo plano, principalmente por conta de milhões de problemas como falta de acesso a saúde, educação, emprego saneamento básico. Tínhamos questões mais urgentes nas nossas vidas. Foi preciso acontecer aquela tragédia nos Estados Unidos para percebermos que não podíamos esquecer essa pauta tão importante. Um assunto que estava adormecido que foi estremecendo pelos quatro cantos do planeta. E com a violência, pobreza, desigualdade, um presidente racista, homofóbico, machista, misógino, que não está preparado para representar um país, a luta pela igualdade racial ficou de lado”, desabafa. Suzana completa. “Para termos uma democracia efetiva essa deve ser a primeira pauta em debate, a igualdade racial”.
Zezé lembra de sua grande inspiração artística, Marília Pêra, sua grande conselheira e madrinha artística, além de ser madrinha da Nina Morena, filha Marília e Nelson Motta. “Eu conheci essa grande amiga no elenco de Roda Viva, em 1968, e desde então passou a fazer parte da minha vida, na estreia em São Paulo substituindo Marieta, que não pode viajar por causa do trabalho na TV. Ficamos muito amigas, e ela virou uma irmã, mais até… Durante a temporada, o André Valli e eu fomos morar com ela. Eu a secretariava quando preciso: levava o filho dela, Ricardo, no colégio, resolvia algum pepino do dia-a-dia, ajudava aqui e ali. Ela já era produtora e quis levantar um espetáculo onde pudesse empregar os colegas que estavam desempregados, tipo eu, que estava iniciando na carreira e quase desistindo… Já falei tanto dela, mas não posso deixar de ressaltar que foi uma grande amiga, minha madrinha artística, uma pessoa que me ajudou muito no início da minha carreira e até hoje foi bastante próxima. Se não fosse Marília talvez eu tivesse desistido. Marília, para sempre em meu coração e eterna gratidão”, relembra.
Foi em Roda Vida que a estrela descobriu que além de atuar, podia cantar, e isso artisticamente dava à artista uma liberdade de poder escolher quais personagens iria se dedicar de corpo e alma. “Eu fiz Carolina Maria de Jesus em um curta metragem, mas eu sonhava em fazer um longa contando a mesma história. Até que mudei de ideia, acho que tenho que dar essa oportunidade para uma outra atriz, jovem, magra como ela era (gargalhadas). É uma personagem muito rica. Eu já fiz muita coisa, mas eu tenho um projeto que eu gostaria de investir mais. Eu dirigi alguns shows intimistas, o que me deu muito prazer. Eu pretendo investir mais em direção. Quem sabe se tornem grandes shows, espetáculos”, frisa. E Suzana elogia: “Esse olhar da narrativa feminina é importante para diretoras e principalmente para as atrizes, ainda mais com a sua experiência. Só temos a ganhar”.
Em 2016, a deusa de Ébano estreou o espetáculo, no Rio de Janeiro, ‘Zezé Motta canta Caetano Veloso‘ e revela que amou ter feito. “Foi um projeto lindo, que ficou com gosto de quero mais, sinto muita saudade e uma pena que ficou restrito ao Rio de Janeiro. Tenho um sonho de remontar, mas dependo da pandemia passar e de patrocínio”, conta. “A gente sempre se estrepa, mas no final da sempre dá um jeito de fazer acontecer”, completa Suzana. Sobre projetos futuros, Zezé Motta revela que sonha em fazer o espetáculo ‘Brasileiro, Profissão: Esperança’, já estrelado por Bibi Ferreira, Clara Nunes e Maria Bethânia.
A peça ‘Orfeu da Conceição’, de Vinicius de Moraes, baseada no drama da mitologia grega de Orfeu e Eurídice é uma dos grandes sucessos da carreira dessa pioneira. Em 1999 foi lançado o segundo filme baseado na peça, chamado de ‘Orfeu’ e dirigido por Cacá Diegues com música de Caetano Veloso, em que Zezé interpretou a mãe do protagonista. “Eu fiz a Eurídice nos anos 90, no Teatro Renascença, o Orfeu era Zózimo Bulbul. Eu me perguntava se aquele sucesso estava realmente acontecendo. Eu vi Orfeu quando eu era adolescente e fiz parte do elenco quando adulta. Foi uma emoção do tamanho do mundo, eu agradeço a Deus todos os dias. No cinema, eu fiz a mãe do Orfeu, que era Toni Garrido. É um fato muito curioso na minha vida. Porque fiz Xica da Silva e 23 anos depois vivi a mãe dela. “Eu estava fazendo um filme em Cabo Verde, na Costa Caribenha, e recebi uma ligação do Walter Avancini, que me fez o convite: você topa ser a mãe da Xica da Silva? Eu tomei um susto. Fui pro meu quarto e entendi que era uma homenagem. Então eu topei”, conta.
Em 2017, Zezé teve uma passagem pela TV portuguesa na novela ‘Ouro verde’, vivendo Dona Nénem. “Eu amei ter contracenado com o protagonista, Diogo Morgado, que já tinha feito Jesus Cristo, em Hollywood. Foi bom demais. Eu já gostava de Lisboa, mas eu ia e voltava rápido. Eu fiquei 10 meses e foi uma experiência fantástica. Pretendo voltar em breve”, espera. No fim da live, Suzana e Zezé brincam sobre a falta que sentem da correria dos aeroportos, ensaios e gravações. “Nessa pandemia estou trabalhando mais do que antes. Eu vivia reclamando da vida, do sobe e desce dos avião, ensaios, maquiagem, arrumar mala, hotel, troca de figurino… E eu prometo que nunca mais vou reclamar. Estou com saudades desse corre corre. É a vida que nos dá prazer”, brinca.
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