Depois de 9 anos longe da TV, Lúcia Veríssimo estreia no streaming e não vislumbra futuro de novelas no formato atual


Em entrevista exclusiva, a atriz conta sobre seu novo projeto para o Globoplay – a série “Rensga Hits”, que retoma a parceria com a emissora depois de nove anos. Veríssimo também trata do sucesso recente de “O Salvador da Pátria”, no Canal Viva, e “Roda de Fogo”, de exibição inédita no streaming global. Vivendo uma vida simples, na lida do campo, e exercitando a marcenaria como hobby, Lúcia, que foi uma das fundadoras do Partido Verde, define a atual política de proteção ambiental como “vergonhosa”, além de comentar os caminhos das novelas na TV aberta. E mais: “Tenho dois roteiros cinematográficos prontos, um documentário de oito capítulos para streaming, uma série em andamento, além de estar trabalhando para a entrada do meu filme (“Eu, meu pai e Os Cariocas”) numa plataforma digital”, revela

*Por Vítor Antunes

Depois de uma pequena participação em “Amor à Vida”, entre 2013 e 2014, a atriz Lúcia Veríssimo não fez nenhum trabalho inédito na televisão. O ano de 2022 marca a estreia da artista em um produto inédito para o streaming. Embora alguns de seus trabalhos mais antigos estejam disponíveis nos players da Globo, “Rensga Hits” trata-se do primeiro trabalho feito exclusivamente para a internet, com previsão de estreia neste segundo semestre.

Em ‘Rensga Hits’, Lúcia Veríssimo será mãe da personagem de Alice Wegmann. A série tem previsão de lançamento para o segundo semestre, no Globoplay (Foto: Reprodução/Instagram)

A reprise de alguns trabalhos que Veríssimo realizara nos anos 1980 repercutiram muito na internet, especialmente “O Salvador da Pátria” (1989) e “Roda de Fogo” (1986), ambas de Lauro César Muniz. Segundo a intérprete, por mais que haja espaço para discussões como as que “Salvador” se propunha – tráfico de drogas, aborto e reforma agrária – o atual panorama teledramatúrgico parece não disposto a absorver esta temática. A artista vai além e classifica os folhetins de exibição diária como fadados à extinção: “Tanto a TV como o cinema são advindos do teatro, que passou a existir, justamente para criticar, e colocar luz sobre os problemas da raça humana, estejam eles em qualquer camada na escala social. Acho um desperdício não fazer uso dessa máquina para alertar a sociedade. Não vejo espaço para novelas como aquelas que se fazia nos anos 1980 hoje em dia. Na realidade, não vejo mais nenhuma salvação para as novelas em TV aberta. Para mim já estão extintas. Se há 26 anos eu vislumbrava o futuro vendo as possibilidades da internet, imagine nos dias atuais…”, dispara.

Lúcia Veríssimo em “O Salvador da Pátria”, sua personagem era a líder de uma organização criminosa formada por pessoas de ‘colarinho branco’ (Foto: Reprodução/Canal Viva)

Veríssimo, inclusive, apostava na internet quando ela ainda parecia fruto de ficção científica, em 1996: “Quando cheguei de Nova York, tendo a internet como novidade, fundei a BMGV – empresa pioneira na venda de livros digitais e home-pages de artistas. Dei uma entrevista coletiva para o lançamento da firma e disse que a chegada da internet iria mudar todas as coisas de lugar. Afirmei, naquele momento, que estaríamos assistindo o começo do fim da TV nos moldes daquela época. Fui desacreditada por várias pessoas, incluídos aí alguns veículos de comunicação, que disseram que a TV aberta jamais deixaria de existir”, relata.

A artista vislumbra o futuro de formatos semelhantes, todos em plataformas online, e analisa: “(Quanto ao) streaming não só vejo como assisto, escrevo, e torço para que continue a fazer a diferença, retomando o espaço que jamais deveria ter sido negligenciado da arte como ferramenta de crítica à sociedade”.

A influência rural em sua arte

Além das duas novelas, recentemente inseridas no catálogo do Globoplay, “América”, de 2005, foi adicionada em abril ao streaming global. No folhetim de Glória Perez, a atriz viveu Gil, uma locutora de rodeios. Sobre a composição da personagem, que margeava a comicidade, Lúcia conta haver mergulhado neste registro: “Eu apostei num (tom) mais doido, numa mulher mais destrambelhada. Na sinopse, ela faria um triângulo amoroso com Sol (Deborah Secco) e Tião (Murilo Benício), os protagonistas, mas no decorrer da novela isso se perdeu”. Veríssimo revela-nos, inclusive, que a ideia da autora, de abordar a temática campestre, parece ter nascido de uma conversa informal entre elas e a jornalista Leda Nagle: “Anos antes da gravação de “América” eu tinha me encontrado com a Glória (Perez) num jantar e contei para ela sobre figuras icônicas do mundo rural, narrei algumas passagens e ela se encantou pelo o universo. Eu nem pensava que ela iria escrever sobre ele”. Dentre outras temáticas, “América” tratava também sobre a emigração brasileira aos Estados Unidos.

Lúcia Veríssimo leva uma vida sempre em contato com a natureza (Foto: Reprodução/Instagram)

“Rensga!”, palavra que batiza a série do player global, trata-se de uma interjeição típica do Estado de Goiás utilizada para traduzir espanto e admiração. Algo equivalente ao “Uau!”, ou “Impressionante!”. Outro dado de destaque em “Rensga Hits” é o fato de ter seu elenco majoritariamente composto por mulheres. Além da própria Lúcia e de Wegmann, que vive a protagonista, Fabiana Karla, Lorena Comparato, Deborah Secco e Rafa Kalimann compõem o time de artistas da série rural. Outra que faria parte do elenco, numa participação afetiva, seria a cantora Marília Mendonça (1995-2021).

A fim de conceder maior profundidade à personagem, Veríssimo conta sobre seu processo criativo: “Elaborei na minha cabeça que minha personagem era uma aspirante à cantora sertaneja e que fazia dupla com a irmã, personagem vivida por Stella Miranda. Quando era artista, conheceu o pai de sua filha, Raíssa (Alice Wegmann), e engravidou. Por haver engravidado e sido abandonada, teve de abdicar do seu sonho e virar mecânica para poder sustentar a casa e sua filha sozinha. Trata-se de uma mulher doída, sentida, abandonada pelo homem que amou e a engravidou”, conta. Ainda sobre a estruturação de seu papel, a atriz revela: “Tudo isso eu inventei para construir a personagem. Em série a gente não sabe de nada, nem se terá uma segunda temporada e tudo acontece muito rapidamente, já que a história deve ser contada em 8 capítulos”.

Lúcia Veríssimo e a paixão por cavalos (Reprodução/Instagram)

Inquieta, Lúcia aponta que, enquanto aguarda o lançamento da série, divide o seu dia entre cuidar da lida do campo e dos animais, além das plantações, ou ainda desenvolvendo aquilo que chama de “uma paixão antiga”, que é a oficina de marcenaria que tem em sua fazenda. Quando não encontra-se nela, ocupa-se das viagens – que inclusive estava fazendo enquanto deu-nos esta entrevista. À noite escreve de maneira prolífica: “Tenho dois roteiros cinematográficos prontos, um documentário de oito capítulos para streaming, uma série em andamento, além de estar trabalhando para a entrada do meu filme numa plataforma digital. Qualquer um desses projetos acontecendo vai ser magnífico”.

A estreia atrás das câmeras e a paixão pela música

“Eu, meu pai e Os Cariocas”, trata-se de sua primeira experiência como diretora de cinema. O longa teve pré-lançamento oficial em 2017, mas ainda não entrou em grande circuito, sendo apresentado restritamente a festivais. O documentário, em formato de longa-metragem, dialoga muito com a história pessoal de Lúcia, já que seu pai, o maestro Severino Filho (1928-2016), foi um dos líderes do grupo Os Cariocas. O filme é repleto de histórias insólitas, sendo algumas delas surpreendentes inclusive para a própria Lúcia: “Em seu depoimento, Boni contou que meu pai foi o autor das músicas de todas as personagens das três primeiras novelas feitas na TV Globo, o que gerou em mim uma surpresa colossal. Eu jamais saberia disso se não fosse o próprio Boni contando. Meu pai sempre foi “low profile”. A discrição foi sua aliada inseparável, além de ter uma qualidade raríssima no ser humano em geral, que era a humildade. Meu pai sempre foi a mesma pessoa e tratou sua carreira como uma função que deveria ser executada com profissionalismo e competência, em respeito à sua escolha e o que lhe era oferecido. Essa era a visão dele”, relata.

Sobre o pai, Veríssimo classifica-o como sendo “um funcionário da música. Ele não tinha uma relação de glamour, de estrelato, mesmo nos áureos tempos da Bossa Nova quando experimentou um sucesso arrebatador”. Inclusive, conta-nos ela, que seu pai foi um dos responsáveis por lançar o ritmo que consagrou João Gilberto (1931-2019), nos anos 1950: “Esse sucesso começou com o samba-canção, quando meu tio, Ismael Netto (1925-1956), ainda era vivo e eles eram astros da Rádio Nacional. Por este motivo, os novos compositores levavam ao meu pai suas criações e foi assim que ele descobriu a Bossa Nova e resolveu lançá-la”. Aos depoimentos que conseguira coletar para o filme, Lúcia atribui como sendo “o maior presente que poderia ter recebido. Um resgate absolutamente incrível, não só da história do meu pai, mas também minha e de toda a minha família, especialmente minha mãe, pois sem ela teria sido impossível ter acesso a todo esse material”, reverencia. Segundo a atriz, a disponibilização do longa nas plataformas digitais ainda está sendo viabilizada.

Lúcia Veríssimo estreou como cineasta em “Eu, meu pai e os Cariocas” (Foto: Divulgação/Globo Filmes)

Talvez por influência de uma família de músicos, Lúcia tem grande convívio com nomes exponenciais do cancioneiro nacional. Presenciou vários movimentos de vanguarda, como a já citada Bossa Nova, o Rock Nacional e a MPB dos festivais. Foi ela a corresponsável por lançar Marisa Monte no cenário cultural brasileiro ao sugerir, incisivamente, que “Bem Que Se Quis” fosse o tema da sua personagem em “O Salvador da Pátria”. Em 1994 lançou um disco de música country chamado “Western”. Devido a esta participação ativa no gênero e da gravação do documentário sobre seu pai, a artista traça um paralelo entre a música atual e aquela de sua contemporaneidade: “Para produzir meu filme, baseei-me numa frase do Tom Jobim (1927-1994), que dizia: ‘Toda música é o reflexo da sua época’, e ela  deu o ritmo do meu projeto (…), pois descreve a cultura musical com o viés político (…). Meu documentário retrata muito bem esse caminho estranho trilhado nos dias atuais. O Erasmo Carlos fala no filme, e concordo com ele, que existem, sim, compositores com acervos maravilhosos a serem mostrados e cantores com vozes lindas que não encontram mais um caminho que permita à musica produzida por eles chegar ao consumidor, como antigamente havia”, analisa.

A profunda relação entre a atriz e o pai, Severino Filho, e a importância dele no cenário musical brasileiro acabou por virar um documentário: “Eu, meu Pai e Os Cariocas” (Foto: Divulgação/Globo Filmes)

As causas ambientais

Nos anos 1980, Lúcia Veríssimo foi uma das porta-vozes da questão ambiental, quando o assunto ainda não era totalmente discutido. Tamanho posicionamento em favor da questão ecológica resultou, inclusive, na fundação do Partido Verde, em 1986, tendo em Lúcia, Fernando Gabeira e Lucélia Santos seus expoentes de primeira hora. Perguntada sobre o desmatamento da Amazônia e as políticas ambientais praticadas pelo Governo Federal, a atriz foi enfática: “Uma vergonha! As políticas ambientais, já vêm sofrendo com desmantelo há algum tempo. Na primeira metade da década passada, ela vinha sendo prejudicada, mas vem piorando enormemente nos tempos atuais. Estamos passando por uma crise mundial na verdade, civilizatória, se pensarmos em termos energéticos. Enquanto encontramos países com uma preocupação em investir em novas tecnologias para um mundo com menos agressividade ao meio ambiente, vemos outros em constante desrespeito, que ao meu ver, continuam sendo a maioria. Não muito longe, dentro de nossa casa, estamos assistindo à destruição da Amazônia, cujo o desmatamento é o maior dos últimos 10 anos. Somado a isso o problema do garimpo artesanal e a aprovação do PL dos Venenos”. Aprovado em Fevereiro de 2022, o Projeto de Lei 6299/2002, altera importantes artigos da Lei 7802, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, de modo que retira poder da ANVISA e do IBAMA na regulamentação do uso destes produtos. A atriz finaliza dizendo: “Não está sendo nada fácil para o Brasil, de fato”.

A atriz usou suas redes sociais pela causa de apoio à preservação da onça pintada (Foto: Reprodução/Instagram)

As palavras em Lúcia Veríssimo são caudalosas, típicas de uma mulher com vasto repertório. Se ser artista é, sobretudo, ter algo a dizer, a intérprete, em cada palavra parece retomar Tommaso Salvini (1829-1916). O falecido ator italiano dizia que “um grande ator deve ser habitado por sentimentos. Deve sentir a sua personagem e viver as suas emoções não só uma ou duas vezes, (…) mas duma maneira mais ou menos intensa cada vez que representa, seja a primeira ou a milésima vez”. Lúcia, por sua vez, não sente apenas suas personagens, mas também sua personalidade. Suas palavras são sentimentos. Sua fala é assertiva. Sua voz, ativa. No coração talhado por ela própria, em madeira envernizada, brilha a autonomia de ser o que é, num mundo que não cansa de surpreender.

A potência da voz e ações de Lúcia Veríssimo (Foto: Reprodução/Instagram)