* Por Carlos Lima Costa
Ator de novelas como Xica da Silva, O Cravo e a Rosa, Carrossel e Nos Tempos do Imperador, Deo Garcez – que está de volta à TV, interpretando Catão, funcionário responsável pela fazenda do Coronel Tertúlio (José de Abreu), em Mar do Sertão, trama das 18 horas da Globo -, sempre acreditou no poder de transformação de uma sociedade através da educação e da arte e assim prossegue a carreira tocando em feridas de um país repleto de preconceitos.
Mesmo após longa trajetória, ele conta que ainda é chamado para interpretar escravo ou bandido. “Antes de Mar do Sertão, eu recebi convite para fazer uma dessas séries fechadas como um bandido, mas o personagem não tinha importância na história. Recusei. Eu faço qualquer personagem, desde que ele tenha algo a dizer e tenha importância no roteiro. A gente não pode permitir que continuem nos estigmatizando. Eu tive essa conquista na minha carreira, claro, em função do meu talento, mas também de muita postura para me colocar nesse sentido e de estudo, fiz duas faculdades de teatro, Bacharelado em Interpretação e Licenciatura em Artes Cênicas. Sou professor de teatro. Isso me dá uma bagagem, uma técnica importante para fazer qualquer personagem”, pontua.
“Temos que olhar desde o momento em que a frota portuguesa veio para cá, trazendo os escravizados. E, até hoje, vemos um país altamente racista, escravocrata, preconceituoso. Um país que escraviza não está evoluindo, ele não admite a educação, caminho para o crescimento. Antigamente, existiam leis que proibiam as pessoas negras de serem alfabetizadas, de irem às escolas. Quantas pessoas são assassinadas por conta da intolerância, do preconceito religioso? O Brasil começou errado, ainda continua, mas estamos aqui para através da nossa arte colocar essas questões. Então, com meus personagens, quando eles permitem, vou colocando a minha indignação na interpretação”, frisa.
Com relação ao preconceito racial, crê que ainda falta muito para dar fim a ele. E, como frisou, tudo passa pela educação. “O Brasil precisa acordar. A gente só vai ser um país um pouco mais evoluído com relação a essa questão racial, quando a gente encarar de fato que é preciso dar um basta ao racismo e começar a cumprir as leis. Por exemplo, a 2.639, de 2003, reformulada em 2008, virando a 11.645, fala exatamente da obrigatoriedade do ensino da história e da importância da cultura afro brasileira e indígena nas escolas brasileiras. Isso é uma educação antirracista. O Brasil tem que de fato implementar essa lei. Como um país, que não conhece a sua história, vai se autovalorizar? Como o povo preto e em especial o povo branco vai valorizar nossa população, o quanto lutamos, contribuímos para a formação, riqueza e construção desse país? Ele vai discriminar o tempo inteiro. Eu bato nessa tecla, porque precisam de fato entender que somente poderemos mudar através da educação. Tem uma frase do (Nelson) Mandela (1918-2013), que é exatamente sobre isso. Ele disse que ninguém nasce racista, aprende-se a ser. Onde? Dentro de casa, na rua, na escola, em todos os ambientes. São os adultos mal formados que ensinam. Então, precisa fazer uma revolução na educação brasileira para que possamos ter uma vida minimamente igualitária”, crê.
Só vamos ser um país um pouco mais evoluído com relação a questão racial, quando a gente encarar de fato que é preciso um basta ao racismo e começar a cumprir as leis – Deo Garcez
E conclui apontando que está faltando uma educação humanista para o Brasil e para o mundo. “Durante a pandemia, vimos George Floyd (1973-2020), um negro, ser assassinado ao vivo. Depois de tantas conquistas e vitórias é inadmissível que a gente ainda tenha que lutar contra o apartheid. Então, é necessário educar em todos os sentidos, contra todos os tipos de preconceitos, a questão do machismo, a gordofobia, LGBTQIA+…somente assim, teremos o crescimento de uma sociedade. Eu vou nessa linha. Eu sou ator por amor. E na minha cabeça de menino já pensava que podia modificar o meu destino através da arte. Podemos transformar o povo, a coletividade, trazer uma nova consciência. Os personagens que tenho feito vão também por aí. Coincidência ou não acabam dentro do tema da questão racial, no sentido mesmo de abordagem, da luta antirracista. A primeira peça de teatro que eu fiz, por exemplo, foi Flicts, do Ziraldo, a história de uma cor que não se encaixa, entre aspas, em nenhum lugar e é discriminada, rejeitada. Mas, nessa época, eu ainda não tinha essa consciência”, observa.
RESGATE DA ANCESTRALIDADE NORDESTINA
No atual trabalho, Catão, seu personagem, ao mesmo tempo que é o homem de confiança do coronel Tertúlio, na Fazenda Palmeiral, luta ao lado da mulher, Ismênia (Ana Miranda) pela sobrevivência. Deo está empolgado com esta que é a segunda novela escrita por Mario Teixeira, que ele participa. A primeira foi O Cravo e a Rosa, atual reprise nas tardes da Globo, que Mario colaborou com Walcyr Carrasco. Natural de São Luís, no Maranhão, Deo é um dos inúmeros artistas nordestinos que integram o elenco. “Essa novela está valorizando os artistas e a cultura nordestina. O elenco é ótimo, há uma diversidade muito grande. E eu faço um personagem bem diferente do que eu já fiz na minha vida. Por exemplo, fiz um desse universo nordestino, em Mandacaru com o (Walter) Avancini (1935-2001). Mas apesar de ser no Nordeste, passava no cangaço, eu era um cangaceiro. Essa agora tem outra pegada, é contemporânea, tem humor, explora também a cultura e a beleza da região, da cultura nordestina, da natureza em si. Muitas vezes estigmatizam o Nordeste como o lugar da pobreza, principalmente da seca, da miséria. Mas temos uma riqueza natural e cultural muito grande. O povo nordestino é bastante acolhedor, alegre, colorido. Estou adorando. O meu personagem, ainda que não seja de um núcleo de humor, tem as situações engraçadas”, exalta.
E observa algo que considera importante. “Somente o fato de estar recuperando a minha ancestralidade nordestina, isso é um valor incrível. O trabalho do ator é esse, trabalhar com recuperação de memórias afetivas. Lembra a minha avó materna, Malvina, que faleceu há um mês e meio, aos 94 anos. Ela era bem do interior. Então, o que vem dos meus parentes na minha memória, isso sai no personagem, no compor fisicamente, no gestual, no olhar, no sotaque, na prosódia. Tem sido um exercício maravilhoso”, ressalta, emocionado.
Foi aos 18 anos que Deo deixou a capital do Maranhão, onde já fazia teatro desde os 11 anos, indo com a família para Brasília. Algum tempo depois, prestou vestibular e cursou a Companhia de Teatro Dulcina de Moraes. “Tive a felicidade e a honra de ter sido aluno da própria Dulcina (1908-1996). A importância dela no teatro é fundamental. A própria Fernanda (Montenegro) fala que Dulcina foi a pessoa mais importante para o teatro no século passado”, diz ele, que lembra com carinho de O Cravo e a Rosa.
“Me lembra um momento de felicidade, minha terceira novela. Tinha feito a Xica da Silva através de teste (na época se mudou para o Rio). Na sequência, o Avancini me escolheu pra Mandacaru. Aí ele foi para a Globo, fez O Cravo e a Rosa junto com Walcyr e me chamaram, escreveram o Ezequiel pra mim. Foi a primeira novela que não fui escravo nem cangaceiro. Muito legal deles terem me chamado, eu, um ator negro, para fazer um personagem rico, poderoso, inteligente, culto e que tinha estudado na Sorbonne. Me da saudade, porque aquilo foi um reconhecimento, já em início de carreira, do meu trabalho vindo de duas pessoas importantíssimas”, ressalta.
Há sete anos, ele apresenta o espetáculo Luiz Gama – Uma Voz Pela Liberdade, escrito por ele, que retrata a história do jornalista, advogado e escritor, considerado patrono da abolição da escravatura no Brasil. Em novembro, mês da Consciência Negra, Deo sobe ao palco do Centro Cultural Justiça Federal, no Rio, com a peça. Coincidentemente, interpretou também Luiz Gama (1830-1882) na novela Nos Tempos do Imperador, exibida até fevereiro deste ano.
Outro momento que ele considera importante na televisão, foi dar vida ao escravo André, no remake de A Escrava Isaura, da Rede Record, que está sendo reprisada na TV Brasil. Assim como sr. Morales, milionário, benfeitor da escola, em Carrossel. “Este foi uma conquista, porque foi em uma fase depois de O Cravo e a Rosa, em que eu estava sem trabalho. Peguei um ônibus, fui para São Paulo, marquei com o Fernando Rancoleta, produtor artístico do SBT, na época e me ofereci para trabalhar. Ouvi que as novelas de lá eram todas mexicanas, já chegavam com formato e perfis prontos. Então, argumentei: ‘Estamos no Brasil, tem que adaptar a nossa realidade, chamar atores com as nossas características.’ Poucos meses depois, ele me chamou para fazer Canavial de Paixões, onde no original, meu personagem, Vicente, era um cara branco, não tinha nada a ver comigo fisicamente. É o mesmo caso de Carrossel, que na versão original do México, era um senhor branquinho”, recorda Deo, que no Instagram tece comentários sobre o momento político no país.
“Apesar desse caos que vivemos no Brasil, estou com muita esperança, o que me motiva muito. Creio que podemos reverter essa situação, que a vida seja valorizada e que nós da cultura possamos respirar com tranquilidade, porque a gente sabe que a arte é uma forma de educar e transformar o mundo. Não vai ser fácil enfrentar uma guerra contra esse governo, mas somos guerreiros”, reflete ele, que este mês realizou leitura dramatizada da peça Mandela, Dormi com Saudades e Sonhei com a Liberdade, dirigida por Dani Câmara, e texto de Ícaro Donadel, tendo como base as principais cartas que Nelson Mandela (1918-2013), líder sul-africano, detentor do Prêmio Nobel da Paz, escreveu durante os 27 anos em que permaneceu preso. “Foi um encontro lindo, um termômetro do que será a receptividade com esse espetáculo que planejo estrear no início do ano que vem”, finaliza.
Artigos relacionados