*por Vítor Antunes
Atualmente podemos rever a atuação de Denise Fraga em “Bambolê” (1987), no Canal Viva. No entanto a atriz tem tido presença bissexta nas novelas. Na Globo, esteve em “Um Lugar ao Sol” (2021/2022) e antes disto, sua última participação em novelas da casa remonta a “Barriga de Aluguel” (1990). Segundo ela, seu afastamento deste formato de dramaturgia não é voluntário, mas fruto de uma intensa produção teatral. Inclusive, a atriz está em cartaz com “Eu de Você”, delicada produção que objetiva dar protagonismo às pessoas comuns, cujas histórias compõem o roteiro da peça. Em entrevista exclusiva, a atriz também confessa o desejo de dedicar-se mais ao canto, talento que se descortinou diante da participação na última trama das 21h da Globo.
Quando escreveu “Pauliceia Desvairada“, Mario de Andrade (1893-1945), dizia querer sair da obscuridade. “Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções”. Quando Denise se propõe a contar histórias que não são suas, mas passam a ser, revela um Brasil profundo e bonito por ser único. O Eu passa a ser você, a música vira prosa, e falada, passa a ser nós. O desvario de um Brasil – ou uma brasileia, parafraseando Mario de Andrade – reinterpretado por uma brasileira.
Segundo a atriz não estar em um novo projeto na TV não se trata de uma negativa ao formato, muito pelo contrário: “Parece que eu não quero fazer novela, o que não é verdade. Eu não tenho como, recém estreado uma peça, falar para as pessoas, que vou paralisar a montagem para atuar em uma novela. Muitas vezes, eu recebi convites que não pude aceitar e daí começou a correr essa história que não faço novela. A questão é: o folhetim precisa caber na minha agenda, como aconteceu, recentemente, com “Um Lugar ao Sol”.
Durante o bate-papo, Denise relembra ainda uma de suas investidas na TV que não logrou forte sucesso, o programa “Norma”, exibido em 2009. Foi tirado ao ar após a exibição de três episódios. A previsão era de que 12 fossem ao ar. O show em alguns horários, batia de frente, com o programa “Pânico na TV“, que havia explodido em audiência. De acordo com a atriz e co-idealizadora do projeto, “não acho que Norma tenha sido um fracasso. Ele dava muita audiência para o horário, só não batia o Pânico. Lastimo que tenha estreado naquele horário, naquelas circunstâncias. Era uma ideia incrível do Luiz [Villaça]. Mas era, digamos assim, avançada pro seu tempo. Em 2009 causava estranheza um programa gravado ao vivo pela internet, onde o público decidia o final e que depois a gente gravaria o resto do episódio do jeito que o público tinha ajudado a construir”.
NOVELAS E SÓIS
“Eu gosto muito de fazer televisão. Acho um exercício. Outro trabalho meu, “Três Teresas ” (2013) vai estar agora na TV Cultura. Nesse meio tempo também fiz uma série, “A Mulher do Prefeito” (2013). Mas, teledramaturgia enquanto novela é algo muito longo. Depende de um planejamento”. Fora as novelas, a atriz esteve em outros projetos para a televisão. “Quando eu me aproximei da Globo acabei conseguindo realizar alguns projetos pessoais, como os quadros do “Fantástico” – o “Retrato Falado“, o “Copas de Mel“, “Álbum de Família” e o “Te Quiero América“. Tudo era ideia minha ou do Luiz [Villaça, diretor da TV e seu marido] e dos nossos times de roteiristas parceiros”.
A última presença de Denise nas novelas foi na já citada “Um Lugar ao Sol“, vivendo Julia, uma cantora alcóolatra e que não consegue oportunidades. Segundo a atriz, “a personagem tinha, sim, uma complexidade, porque ela não era só uma alcoólatra. A questão não era só o alcoolismo, era uma pessoa que também era adicta ao sonho. E por sonhar ser cantora, sabotava a si própria. Era possuidora de um otimismo trágico, crônico”. Ainda sobre a preparação para viver a personagem, ela diz haver visitado algumas reuniões do AA (Alcoólicos Anônimos). “Eu estive numa reunião do AA e percebi o poder que tem essa terapia tem, que nos cura através da escuta e do compartilhamento de relatos e experiências”.
Os índices que tangem à adicção alcoólica no Brasil são alarmantes e especialmente junto à população mais jovem. Segundo a Sociedade Brasileira de Neurologia (SBN), em pesquisa publicada em 2021, quase 3% dos brasileiros com mais de 15 anos são alcoólatras, ainda que a venda de bebidas a pessoas com essa idade seja proibida. Outro dado estatístico, publicado pela Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apurou que o consumo de álcool entre jovens com idades entre 13 e 17 anos, do 9º ano do Ensino Fundamental aumentou de 52,9% em 2012 para 63,2% em 2019. Entre as moças o índice foi maior, de 55% para 67,4%. O levantamento do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas (Vigitel) – uma plataforma do Ministério da Saúde – revela que o índice de mulheres de 18 a 24 anos que bebem excessivamente cresceu de 14,9% para 18%. Na faixa etária da personagem vivida por Denise Fraga na trama, 50 anos, o índice passou de 10,9% para 14%.
Além do universo da adicção, Denise percebeu um outro talento: “A novela também me fez ter contato com estudos para a personagem que foram tremendamente importantes pra mim. Primeiro, interpretar uma cantora, que é algo que está me chamando à vida. Este não foi o primeiro trabalho que me fez cantar. Eu canto na peça, tenho cantado, faço uma rodinha de samba, cantei na minha outra peça, que foi “A Visita da Velha Senhora“. São sinais que a vida está me dando”, diz ela sobre a possibilidade de investir no segmento musical.
Sua chancela está também em um dos maiores sucessos do cinema brasileiro, “O Auto da Compadecida“. A bem aventurada trajetória da série que virou filme – ou do filme que virou série – é até hoje tida como um dos maiores cases de sucesso nacional. Diz-nos a intérprete de Dora que “O Auto da Compadecida já é um clássico nacional. Quando há alguém que diz não me conhecer, eu falo que sou a mulher do padeiro, do filme. Fico muito feliz de ter participado desse projeto, e ainda mais de estar no meio de tantas pessoas que eu admiro, tão talentosas”.
Eu acho que a vida é muito móvel. A gente não segura tudo na mão. Creio que um dos segredos do sucesso é estar inteiro, ali com brilho no olho, ou com sangue nos olhos. E, claro, não é fácil fazer o que o público quer exatamente. Mas, com generosidade e clareza a gente consegue dar a ele algo mais, algo que ele nem sabe que quer, mas que acaba por se surpreender positivamente – Denise Fraga.
TECENDO O VIVER
Denise Fraga está em cartaz em São Paulo com a peça “Eu de Você“. Segundo a atriz, que é uma das idealizadoras da montagem, ela e Luiz Villaça gostam “do cotidiano. O ‘Retrato Falado‘ já era assim, quando colocou a pessoa anônima na televisão. Eu gosto de conversar com as pessoas reais e a peça tem essa proposta de colocar estas histórias de gente de verdade, mas sem sem começo-meio-e-fim como no ‘Retrato‘. A esses fragmentos de vida, compomos com literatura, música e poesia cotidiana.
Quem lê Dostoievski (1821-1881) e Fernando Pessoa (1888-1935), no mínimo, gosta de sofrer mais bonito. A arte nos ensina a viver. A pessoa que está triste e ouve uma música do Chico Buarque, vai se emocionar por encontrar nele a cumplicidade do poeta, mas também o pertencimento que a inclui. É como se o Chico passasse a ser parça dessa pessoa – Denise Fraga
É recorrente na dramaturgia de Denise Fraga um humor que margeia a tristeza. Um humor-dissabor, que também está presente em outros autores como Vicente Pereira (1949-1993). “Esse humor com a tristeza é uma obsessão minha há muitos e muitos anos. Eu acho que não só é possível como é o melhor tipo de humor pra mim. Creio que ele reside muito na comunicação revolucionária, que nos permite olhar para nós mesmos, nos reconhecer, e nos entender. Fico feliz quando consigo fazer alguém que está com lágrimas nos olhos, dar uma gargalhada e é o que tem acontecido no “Eu de Você“. Eu acho que esse terreno é muito fértil para se entender a própria vida e perceber que temos as rédeas dela e é isso que faz com que sejamos protagonistas da nossa história”.
Ela prossegue dizendo: “A arte faz melhor as pessoas e com ela entendemos a imperfeição humana. Passamos a ser mais compreensivos com a nossa falência inexorável, com o quanto somos ridículos, quanto podemos entender que as artes mais clássicas só são clássicas por que se relacionam com as condições humanas. É aquilo que a Simone de Beauvoir (1908-1986) fala e que a gente colocou na peça: ‘Nas horas mais difíceis da minha vida. eu preciso escrever frases ainda que não sejam lidas por ninguém. Isso traz pra mim o mesmo conforto do que a reza pra quem tem fé. Através da linguagem eu ultrapasso o meu caso particular comungo com toda a humanidade. Toda a dor dilacera’. Com a arte nós universalizamos essas experiências e permitimos que o público conheça do seu sofrimentos individuais, o consolo da fraternidade, eu adoro isso”.
Essa é uma das funções essenciais da arte: superar a solidão, o que é comum a todos nós. E que, no entanto, faz com que nos tornemos estranhos uns aos outros – Denise Fraga
Qual a grande mensagem que “Eu de Você” propõe? “Eu acho que a grande mensagem que a peça propõe é um convite para deixar atravessar pelas experiências alheias. E também olhar a sua própria existência com um olhar de beleza. Eu acho que a gente pegou essas histórias do público, das pessoas, que muitas vezes achavam que não eram dignas de dar numa peça de teatro, e de alguma forma embrulhamo-as num papel de beleza, da arte, da poesia e devolvemos pra elas dizendo: ‘olha o que você viveu’. Associamos essa vivência com um trecho da literatura no qual ela nota pertencer a uma coisa muito superior que é a humanidade. Eu acho que a grande função da arte é é essa: nos fazer entender que estamos juntos e também nos liberar. Liberar-nos dessa mediocridade dos dias. A vida não é isso. A vida é muito maior do que eu”.
A peça de Denise estreou no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, e tem tido bons resultados junto ao público, segundo conta-nos ela. “As pessoas ainda confiam e acreditam na experiência única do coletiva que o teatro proporciona. É uma fé rara que a gente precisa saber vangloriar. As pessoas largaram as telas para se disporem a estar vivendo experiências que só o teatro permite. Devido à emoção presente na peça, ela é uma importante experiência para mim”, pontua.
BRASILÉIA (E BRASILEIRA) DESVAIRADA
Depois de quatro anos de perseguição à cultura e às artes, como diz Denise, este é um momento mais bem-aventurado no fazer teatral. De alívio. “Fazer esta peça me faz faz feliz, especialmente depois de atravessarmos por este período pós-Bolsonaro. Há um alívio geral, um clima de que as coisas voltaram ao normal. Não se pode ter um presidente que é inimigo declarado das artes do país. Ele não podia ser levado a sério senão pelo cargo que ocupava. Muita coisa ficou desmontada na então Secretaria de Cultura, bem como verbas paradas e não utilizadas, numa represália burocrática clara. A arte tem um poder que estes extremistas não entendem. Mas estou muito feliz e aliviada por esse retorno às atividades e programas de cultura”.
E, como esperançosa que é, acredita que o melhor do Brasil é, justamente, o brasileiro em seu fazer pulsante, criativo. “O Brasil é uma explosão de talento. Um celeiro de talentos impressionantes. Como a gente tem gente talentosa na arte, na cultura… Essa nova geração de atores é cada vez mais especializada, antenada, tanto para o teatro como para a televisão. E o audiovisual tomou um corpo muito grande com a vida virtual, mas eu acho que é impressionante como a gente vê pessoas muito jovens, muito preparadas, muito preparadas, é muito bonito de ver, de escalar, diante de tanta gente boa que tem. Viva as artes cênicas brasileiras, os atores e atrizes brasileiras que são incríveis!”, exulta.
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