De volta às novelas em ‘Vale Tudo’, Luís Salém fala de representatividade LGBTQIA+ na TV e papel social dos atores


Após 13 anos afastado das novelas, o ator retorna à TV em “Vale Tudo”, onde interpretará o mordomo Eugênio, que foi vivido originalmente vivido por Sérgio Mamberti (1939-2021). Esta será sua primeira novela das nove. Conhecido pela diversidade de seus papéis, Salém reflete sobre o compromisso de humanizar personagens LGBTQIA+, destacando sua preocupação em evitar estereótipos. Em relação ao passado, o ator admite que, hoje, não interpretaria uma personagem trans, pois acredita que esses papéis devem ser feitos por pessoas trans. Além da carreira, Salém também compartilha sua atuação no projeto social Axé, em Salvador, que visa capacitar jovens da periferia por meio da arte, reforçando seu compromisso com a educação e o impacto social

*por Vítor Antunes

Por anos, Luís Salém esteve fora das novelas. Sua última participação foi em Aquele Beijo, em 2011, na qual viveu a travesti Ana Girafa. Agora, ele comemora a volta em Vale Tudo, novela que já vem despertando a atenção e o debate do público, justamente em razão do grande sucesso da primeira versão da trama. Na releitura escrita por Manuela Dias, Salém dará vida ao mordomo Eugênio, papel originalmente interpretado por Sérgio Mamberti (1939-2021).  Salém já interpretou diversos tipos de personagens na televisão e sob várias matizes, incluindo a homossexualidade. Em Anjo Mau, por exemplo, Benny, ainda que gay, não era o alívio cômico estereotipado da novela. Isso reflete o compromisso do ator em humanizar seus personagens para além dos estigmas: “Eu sempre ficava meio preocupado em ser chamado para fazer personagens gays, porque isso pode ser algo meio limitante. Pensaram em personagens assim para mim pelo fato de eu ser gay. Daí a importância de humanizar esses personagens, para que eles sejam iluminados, verdadeiros”.

Luís Salém mora há sete anos em Salvador e voltará às novelas em 2025 (Foto: Divulgação)

Porém, ainda que ache pertinente o debate sobre questões LGBT, Salém diz que não voltaria a interpretar uma personagem como Ana Girafa, uma mulher trans que viveu em Aquele Beijo, ainda que margeasse o protagonismo e tivesse um grande carisma e acolhida junto ao público. “Foi muito legal a recepção do público, meu trabalho foi superconsiderado e bem bacana, que adorei fazer. Mas acho que hoje em dia eu pensaria sobre aceitar fazê-la e inclusive acho que não seria convidado a vivê-la. Creio que realmente temos atrizes trans para interpretar esse tipo de personagem. Naquela época, entendia-se como uma composição do ator — e eu não sou uma pessoa trans. Fiz da melhor maneira possível e adoro quando me chamam de Ana Girafa, ou quando dizem que ela é uma mulher solar, feliz e alegre, e me conecto com o jeito que ela era, totalmente aceita na novela — à exceção da mãe, a vilã Maruschka (Marília Pêra [1943-2015]). Estamos vendo que hoje em dia o caminho é esse. Existem mulheres trans que estão chegando à dramaturgia, criando suas personagens e conquistando seus espaços”. Em novelas como A Lua Me Disse e Salsa e Merengue, Salém interpretou personagens heterossexuais.

Sabemos que atores gays interpretam heterossexuais muito bem, de forma interessante, brilhante, e, às vezes, isso não acontece com atores heterossexuais que vão interpretar gays. Mateus Solano, por exemplo, foi brilhante como Félix [de Amor à Vida]; foi fiel, verdadeiro, sensível. Um personagem de verdade, humano — Luís Salém

Sobre o contexto atual das novelas, Salém aponta que há uma grande variedade de atrações disponíveis, mas que os folhetins ainda têm seu espaço: “Claro que as novelas perderam um pouco do protagonismo; acho difícil uma novela hoje ter os índices de audiência do passado. As pessoas estão vendo séries, o streaming… Há uma maior competição e os parâmetros mudaram. Mas a novela sempre vai ter público”.

Ana Girafa em “Aquele Beijo” (Foto: Divulgação/Globo)

ENTRE A MODERNIDADE E A MÁQUINA DE ESCREVER

Salém não é uma pessoa que se mova profundamente através das redes sociais. Na época do Orkut, por exemplo, ficou famoso um fake que se apresentava como Ana Girafa, naquela extinta rede social. Hoje ainda geram discussões as convocações de influencers para a função de atores, ou atores que são vendidos comercialmente em razão do número de seguidores. “Tenho uma relação meio pequena com a rede social, embora esteja chegando cada vez mais perto. Por muito tempo o meu laptop foi meio que uma máquina de escrever. As pessoas que me seguem, o fazem por gostar de mim com elas eu interajo dentro do possível. Antigamente os olheiros estavam atentos ao que fazia sucesso no teatro e hoje erram por que vão atrás dos números de seguidores, e isso é desastroso”.

A TV sempre esteve em busca do que poderia render para ela. Foi assim com os atores, com as misses, com as pessoas as capas de revista, com os BBB’s. Hoje é com os influenciadores – Luís Salém

Num momento em que se debate a questão do politicamente correto, seu excesso ou falta, Salém diz ser totalmente favorável a esse discurso mais amigável, inclusive no humor: “Sou totalmente a favor do politicamente correto. Acho que precisamos abraçar essa questão, sim. Temos que ter cuidado com as coisas que dizemos, mas acredito que essa radicalização vai passar. Em breve, as pessoas vão entender que, principalmente na área do humor, onde usamos cores mais fortes, o objetivo não é aniquilar ninguém. Pessoalmente, nunca gostei de fazer piada em cima de supostos defeitos de alguém, mas de fazer algo mais crítico. Nosso trabalho é observar comportamentos”.

E ele prossegue: “Por exemplo, quando brincávamos com a questão gay, sempre tirávamos onda com os gays, mas sem um sentimento de ódio ou vontade de ofender moralmente alguém por ser gay, trans ou qualquer outra pessoa. Acho que, no futuro, isso será mais compreendido, e todos vão perceber que, quando um comediante faz uma brincadeira, ele não está querendo ofender. Ele está tirando uma onda, expondo algo de forma leve. Ficou mais difícil fazer humor por conta disso, mas também nos obriga a ser mais criativos e responsáveis com o que falamos”.

Para o ator, tudo, permeia a questão da responsabilidade. “Acho que, em algum momento, vamos entender como transitar tranquilamente nesse contexto, sem perder a responsabilidade que nos foi imposta, e que devemos abraçar. Porque, realmente, não tem graça ofender as pessoas, e não é engraçado para ninguém. Mas o mundo trabalha com essas cores fortes, e há quem exagere em alguns temas. Precisamos ser responsáveis, sim, para que piadas homofóbicas, transfóbicas e racistas não continuem sendo feitas. Essas pessoas devem, de fato, ser responsabilizadas. Esse cuidado é essencial”, pondera.

Luís Salém acredita que o politicamente correto deve ser valorizado (Foto: Divulgação)

(S)ALÉM DA IMAGINAÇÃO 

Há cerca de sete anos, Luís Salém deixou o Rio de Janeiro e mudou-se para Salvador. Na capital baiana, tem se dedicado à educação de jovens artistas periféricos. “Estou fazendo projetos de educação com jovens da periferia de Salvador, num projeto apoiado pelo governo da Bahia e que tem como intenção capacitar esses jovens que vivem em situação de vulnerabilidade. O Projeto Axé alia arte e educação”. O ator salienta que, nos últimos anos, colocou-se mais à disposição para explorar essa possibilidade. “Tenho me voltado mais a essa questão de dar aula, de fazer projetos educacionais para o teatro, a interpretação e possibilitando a eles algo que costuma ficar restrito a um pessoal de classe média. Não consigo pensar no trabalho que não tenha um cunho social”.

Salém conta que sua mudança para Salvador veio de uma insatisfação com o Rio: “A cidade estava ficando meio chata para mim, fora o fato de eu ter perdido muitos amigos, inclusive a minha mãe. Me sentia sem conexão à cidade, inclusive politicamente. E Salvador sempre foi esse lugar para mim de escape, mesmo quando eu ainda morava na capital fluminense. Então é natural que esse lugar fosse o escolhido, também em razão dos movimentos culturais”.

Luís Salém é professor em Salvador (Foto: Divulgação/Globo)

Ao longo dos anos, Luís Salém desenhou na dramaturgia não apenas personagens, mas universos que desafiam rótulos e estigmas, iluminando as múltiplas facetas da humanidade em seus papéis. Em sua trajetória, ele caminha pelo teatro e pela televisão como quem atravessa um campo vasto de possibilidades, sem nunca se prender aos limites que lhe impõem. Em cada personagem, de cada fala bem colocada, surge a essência de alguém que compreende a profundidade do humano e a sua complexidade. E agora, morando em Salvador, seu palco expande-se para a vida real, onde, através do teatro, oferece aos jovens a mesma chance de expressão e criação que a arte lhe deu. Porque, para Salém, viver e atuar são verbos que se conjugam em comunidade, em projetos que trazem à tona novas vozes e inspiram futuros — um legado que não cabe em tela, mas se escreve no tempo e no espaço, com tintas vivas e cuidadosas, tão complexas e intensas quanto a própria arte de ser humano.