*Por Vítor Antunes
“Nívea Maria, uma jovem estrela cuja carreira desponta com toda a intensidade”. Assim foi a apresentada na extinta Revista Intervalo. O ano era 1965, e a novela era “O Preço de Uma Vida”, da extinta TV Tupi. Cinquenta e sete anos depois desta manchete, Nivea Maria revela-se uma atriz que está no Olimpo das Artes e dá vida à personagem Maude, do clássico “Ensina-me a viver”, de Colin Higgins (1941-1988). Atriz diz sentir-se “Muito honrada por este convite feito pelo Arlindo Lopes, por ele haver lembrado do meu nome para a montagem de um clássico que foi um sucesso no cinema, assim como no teatro. Trata-se de uma história que, mais do que nunca, a gente vê na sociedade tudo o que é dito pela minha personagem”. Aos 75 anos, dentre os quais 50 dedicou-os à TV Globo, Nivea Maria vê sua saída da Casa como algo natural e coloca-se à disposição para novas possibilidades no streaming ou outras emissoras: “Estou com a cara na janela, quem me chamar está ótimo”.
Eu respeito a mudança de contrato. Não posso reclamar. Não tenho mágoa [da casa]. A porta está aberta para qualquer convite e eu continuo sendo convidada. Eles tiveram muito carinho e respeito comigo depois que me comunicaram a não renovação do contrato. E esta não é uma coisa particular da Globo, trata-se de uma coisa que está acontecendo no mundo. As empresas estão tendo que se reformular – Nivia Maria
Além deste projeto teatral, a artista antecipa três outros trabalhos. Um deles, a segunda temporada da série “A Divisão”, na qual interpreta a mãe do ator Marcelo Adnet, este num raro investimento no drama. Seu trabalho mereceu o reconhecimento da atriz: “Adnet me surpreendeu. É um grande ator dramático”. “A Divisão” marca a estreia da atriz nos streamings “Trata-se de um formato no qual eu nunca havia trabalhado, assim como com uma equipe que eu também nunca havia estado junta. Gravei cinco episódios para a segunda temporada”.
“A série toca num tema muito atual que são os sequestros e as intervenções da polícia”, destaca. Embora seja o primeiro trabalho da atriz nos players, não trata-se de seu primeiro investimento no gênero ação. Trabalhara na série “A Justiceira”, de 1997, cujo formato é, de alguma forma, semelhante ao dos streamings.
Nívea estará em dois filmes. Um chamado “Capitão Astúcia” e outro batizado “Um Caso do Outro Mundo”. Neste projeto, um fato quase insólito: ela contracena com a própria irmã, Glauce Graieb. Ambas tiveram muitos poucos encontros profissionais.
ENSINA-ME A VIVER
De volta aos palcos, “Ensina-me a Viver” conta agora nesta remontagem com a atriz Nívea Maria revivendo Maude, mulher de 80 anos que, a contrário do jovem Harald (Arlindo Lopes), vê a vida com leveza. É o que a própria atriz revela: “O personagem do Arlindo tem dificuldade de relacionamento com a família e com as namoradas. Mais do que nunca o texto de Higgins se mostra atual e sensível. As pessoas se divertem por conta do humor e se emocionam com a Maude, com a sua experiência de vida e com o fato de ela viver sem se deprimir, sem brigar com a vida, sem desencantar-se com ela”. Na peça, inclusive, há um encantamento, um romance, entre os dois personagens, a despeito da diferença de idade entre eles, o que Nívea diz ser algo “completamente possível”.
“Ensina-me a Viver” passou por várias montagens. Numa delas, a mais antiga, o papel hoje interpretado por Nivea Maria foi vivido por Henriette Morineau (1908-1990), depois substituída por Maria Clara Machado (1921-2001), numa de suas atípicas presenças como atriz, mais tarde suplantada por Clayde Yaconis (1923-2013). Em todas as ocasiões, Diogo Vilella fora Harald, o co-protagonista. Na encenação mais recente, Arlindo Lopes fizera par com Glória Menezes. A artista vê neste papel uma oportunidade de “mostrar uma Nívea Maria diferente, mais madura, num personagem no qual o público pode se surpreender tal como eu me surpreendi com o convite”.
Quero mostrar que sou capaz sempre de atuar com força, energia e alegria – Nivea Maria
Ainda sobre a icônica personagem de Higgins, a atriz diz identificar-se em “50% com Maude, pois que vemos as coisas com muito humor, com muita leveza, mas sem fazer piadas ou ridicularizar. Às vezes, as coisas não chegam ou não acontecem como gostaríamos e tudo bem. Quem nunca teve pedras no caminho, ou teve de mudar as metas da vida, ou teve problemas na família, por exemplo, em razão de haver perspectivas familiares diferentes?”, questiona.
Nívea é muito elogiosa ao produtor, diretor e ator Arlindo Lopes por haver trazido à peça de volta aos palcos. Segundo ela, trata-se de “um jovem que batalha pelo teatro e não apenas é um jovem ator como um produtor, ou seja, é um cara que faz tudo.
Eu me orgulho muito dessa geração que não vê a profissão apenas como glamour ou como luxo, mas de forma séria, através de textos que dialoguem com a sociedade e com as pessoas” – Nívea Maria
A protagonista feminina da montagem relata-nos que há a pretensão de trazer a peça para outras capitais, como o Rio, mas que irão aguardar “convites para levá-la para outras cidades e estados, ou ainda para Portugal, que sempre se interessa pelo nosso trabalho”.
ETARISMO
Embora seja sabido que há personagens para todas as idades, o amadurecimento dos atores, e, em especial das atrizes, mostra que são poucos os papéis destinados a eles e, mais que isso, os atores dessa faixa etária nem sempre são vistos como aptos a trabalhar. Não é incomum haver artistas que estão em dificuldades financeiras. Sob esta ótica, Nívea comenta: “Dentro da minha faixa etária são poucos os produtos existentes para os atores, diretores e outros produtores mais velhos. Alguns encontram dificuldade em continuar com suas atividades mas eu estou aqui.
A gente vem de alguns anos antes e depois da pandemia de um desânimo muito grande, um desencanto com tudo o que está acontecendo, as pessoas ficam desmotivadas, mas nem por isso a gente tem que parar. Eu sou das que se aborrece quando o público associa o fato de ser artista com o ser milionário. Existe um momento em que o mercado favorece o artista e ele ganha muito dinheiro, bem como há aquele em que o profissional não tem o retorno. A profissão é muito instável – Nívea Maria
Em razão da longa carreira na televisão, onde iniciou na extinta TV Paulista (1952-1966), Nívea Maria é uma atriz que participou da primeira leva de artistas que trabalhavam quando a profissão ainda não era sequer regulamentada. E não apenas isso. Ser atriz rendia olhares de soslaio tanto das famílias dos artistas como da sociedade em geral. É o que ela nos conta: “Sou de uma família de classe média, que tinha muito preconceito com a profissão de atriz, tanto que eu demorei para me assumir profissionalmente. Eu só comecei a trabalhar de fato, porque a carreira começou a dar certo e comecei a ser remunerada. Até então, eu estava estudando para cursar Direito”, relembra.
Embora uma menina discreta, não via-se como tímida, pois sempre teve desenvoltura “nas brincadeiras de criança e nas fotografias quando eu era menina. Eu não tinha problemas em me expor lendo uma poesia ou fazendo um trabalho. Eu fiz um teatrinho no Colégio Dante Alighieri, onde eu estudava e o diretor de uma agência de publicidade me convidou para fazer um comercial. Desse comercial, os diretores da TV Paulista me convidaram a trabalhar. Nesta emissora trabalhei com o Walter Forster (1917-1996), um dos pioneiros da TV”. Entre papeis coadjuvantes, o primeiro em que destacou-se foi em “O Preço de Uma Vida”, da Tupi, em que vivera a protagonista feminina. Segundo sua intérprete “a personagem começou a chamar atenção e o Cassiano Gabus Mendes (1927-1993) achou melhor dar destaque à personagem e a alimentar sua história. Essa novela era uma adaptação de um original cubano, escrito pelo Félix Caignet (1892-1976)”. O destaque masculino era o ator Sérgio Cardoso (1925-1972). Coincidentemente, a primeira novela de Nívea na Globo foi “O primeiro amor”, na qual, Cardoso vivia o personagem Luciano. Cardoso faleceu durante as gravações da trama.
Para Nívea Maria, esta fase inicial, de implantação da “Aldeia Global” foi importantíssima: “A empresa achou o caminho do ouro. Nós fazíamos todo o esforço possível e dávamos as mãos para fazer a coisa avançar”
Nós fizemos a Globo com pá e cimento e fomos acertando. Este é, de fato, um novo momento. Eu passei por todas as emissoras e todas passaram por isso. A Record, na gestão Paulo Machado de Carvalho, teve problemas, a Tupi e a Excelsior fecharam. Eu sou de uma geração mais preparada para estes golpes que a vida dá na gente. Mas eu sou positiva e otimista. Ao ver uma dificuldade eu digo pra mim: Vambora! – Nívea Maria
Uma das ressalvas que Nívea faz à modernidade alcança um pouco o que diz respeito ao uso da tecnologia no processo de feitura dos capítulos, ou ainda o negligenciamento das pesquisas: “Algo que hoje eu sinto falta é da proposta que havia antigamente de novela informar e educar. Quando fazíamos uma novela de época, por exemplo, havia uma pesquisa sobre aquela fase histórica, com toda a equipe de produção – onde estudávamos desde os modos daquele momento à economia. Os avanços tecnológicos tomaram este lugar, crescendo feito uma onda em cima disso e resolve pontos que antes cabia aos atores, autores e técnicos. Não que eu veja um problema na tecnologia, mas acho que nada supera o olho no outro, ouvir o colega, ou estar em locações reais em vez das cidades cenográficas”.
Um dos exemplos que Nívea cita é um dos seus maiores sucessos na Globo, o remake de “A Moreninha”, de 1975: “Nós revelamos para o Brasil a Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro. Na época das gravações ainda havia carruagem movida a cavalo nas ruas, não havia automóveis, senão o das patrulhas policiais ou da ambulância. A gente andava pela ilha em charretes”, relembra ela, que batizou um acidente geológico da região. A “Pedra da Moreninha” chama-se assim justamente por causa da novela da Globo (e da atriz). Embora não vá até lá há algum tempo, a intérprete da musa de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) lamenta o fato de as praias de região estarem poluídas e a área malcuidada.
A única experiência de Nívea Maria fora da Globo depois que entrara naquela casa no início dos anos 1970, foi na TV Manchete, em 1986. Em “Mania de Querer”, novela de Sylvan Paezzo (1937-2000), os bastidores foram turbulentos e Herval Rossano (1937-2005), diretor da trama, foi demitido por conta de indisposições com a direção da casa. Nívea Maria, sua esposa, saiu em solidariedade ao então marido e a novela, sem muito rumo, teve Aracy Balabanian alçada a protagonista. Perguntamos à Nívea qual memória ela tem deste trabalho e ela não o considera um fracasso: “Eu não me lembro da ‘Mania de Querer‘ ter dado errado. Eu me lembro da estrutura precária da Manchete que já vinha de novelas de sucesso, como ‘Dona Beija‘, e resolveu investir no segmento. A TV não tinha estabilidade financeira e administrativa para alimentar os produtos que botava no ar. Eu não considero fracasso mas a gente corre esse risco, que tiveram Ibope baixo e dividiram opiniões”, relata.
PROTAGONISTA DA PRÓPRIA HISTÓRIA
Diante de uma carreira solidamente construída, Nivea Maria nos falou sobre dois trabalhos que dialogam com a sua própria família. Um deles foi “Anos Dourados”. Conta-nos ela que foi convidada a fazer a série pouco tempo depois que sua mãe falecera. E durante as gravações, percebeu que ela e a personagem tinham muito a ver: “A série representa a história da geração da minha mãe, que havia falecido há poucos meses das gravações. Tal como minha personagem, ela também viveu um casamento estremecido por conta de uma relação extra conjugal do meu pai, que era militar tal como o meu marido na ficção (vivido por José de Abreu). Foi lindo atuar nessa série e, quando eu assisti, embora eu a tenha feito muito machucada pela perda, me emocionei muito com o resultado. A personagem libertou-se das correntes que a aprisionavam, e mesmo sendo de uma família rica, foi à luta”. A personagem de Nívea na série de Gilberto Braga (1945-2021) chamava-se Beatriz. Ao pedir o desquite – na época da série ainda não havia divórcio – a personagem resolveu entrar para a universidade e ter uma nova vida.
Essa personagem me fez pensar que algumas mulheres daquela época eram tímidas não por personalidade, mas por viverem à sombra da sociedade – Nívea Maria
A homenagem ou reverência a um familiar não ficou restrita a “Anos Dourados”. Em 1992, Nívea fez uma portuguesa em “Pedra Sobre Pedra”, e também homenageou as mulheres de sua família, que são nascidas naquele país. Aliás, seu nome, Nívea, deve-se a elas. A avó da atriz usava um cosmético homônimo, razão pela qual sugeriu que a neta mais nova chamasse assim. Versátil, Nívea transita entre a doçura da musa romântica da literatura, à amargura da matriarca de “A Casa das Sete Mulheres”. Disse-nos ela que “não há papel que eu não goste de fazer. Não me importo em ser protagonista da novela, mas em protagonizar a história dos meus personagens”. A quem já construiu muito, talvez não haja espaço para sonhos novos. Diz a artista que “vive o hoje, o agora. O meu sonho eu estou realizando, que é voltar ao palco. Nesse momento não dá para sonhar tanto, a gente tem que estar com o pé no chão”. Pés fincados no chão do palco, vivendo o sonho que é realismo. Talvez essa subjetividade defina não só a sua carreira, mas o que é a arte.
Artigos relacionados