*por Vítor Antunes
Uma estética colorida, intencionalmente kitsch e metalinguística. Assim revela-se “Fuzuê”, a próxima novela das sete, a substituta de “Vai na Fé“. A trama de Gustavo Reiz traz Zezeh Barbosa vivendo Gláucia Corneteira uma vendedora de bolinhos de tutu, que é fofoqueira, controladora e falso-moralista. No mesmo ritmo que a trama que atualmente encontra-se na reta final, a sucessora também terá um elenco preto. Além desta novela, a atriz poderá ser vista em “A Lua Me Disse“, de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa, exibida em 2005 e que estará no Globoplay. Recorrentemente são exibidos recortes do folhetim nas redes sociais, e em face da polêmica abordagem sobre questões étnicas. Tanto pela ótica negra como pela ótica indígena. No que tange à perspectiva afro, Zezeh relata que a abordagem advinda de sua personagem, Latoya, era uma crítica justamente às pessoas que negam a sua cor: “Eu mesma não admitiria que rissem de minha negritude. Em 2005, tudo ainda era muito carregado de preconceito. Whitney (Mary Sheyla) e Latoya elas chutam mesmo o pau da barraca e tacam fogo. Chamam um personagem negro por Asfalto, por exemplo. Eu tinha a consciência de que era uma crítica e defendi [Miguel Falabella, o autor] tão quanto foi possível”, argumenta.
Ainda na seara afro-afirmativa, Zezeh rememora as batalhas que a edificaram enquanto atriz negra. Na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP), ela era uma das únicas atrizes negras da classe. Este fato encorajou o seu professor a propor que ela interpretasse todas as personagens de empregada tanto da EAD como da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da mesma universidade. Segundo ele, essa era a única possibilidade que lhe caberia, “pois, caso contrário, eu não seria sequer avaliada. Isso na minha vida foi muito forte. Percebi, aos 20 anos, que teria um grande caminho a percorrer na luta contra o racismo. Por conta dessa determinação do meu professor, eu fiz protestos e passeatas, até que fui respeitada”. Ante à possibilidade de nem mesmo receber nota por recusar fazer um papel fixo nas duas instituições de ensino, Zezeh chegou a fazer algumas montagens sob esta diretriz, mas logo desistiu. “Foi algo desrespeitoso, desmerecedor”.
Eu acho um preconceito que tenham querido me aprisionar nisso. Desde muito cedo comecei a brigar por respeito, o que é algo básico. Após uma temporada na Europa com uma peça, na qual ganhamos muitos prêmios – eu e minha companhia de teatro – voltei gloriosa, porém odiada na escola. Meu professor falou que por ele eu não seria aprovada. Ele não admitiu a insubmissão – Zezeh Barbosa
NO FUZUÊ E ENTENDENDO-SE COM A LUA
Coincidentemente, as duas obras às quais Zezeh Barbosa estará estreando nos próximos dias têm uma estética muito semelhante: intencionalmente kitsch, sem vergonha se ser uma comédia típica das 19h e com todo o exagero e colorido do horário. No dia 31 é a vez da estreia de “A Lua Me Disse“, novela de 2005, nunca reprisada e que se passa numa região suburbana, o Beco da Baiuca, e tem como principal cenário um mercado, o “Frango Com Tudo Dentro“. Em “Fuzuê”, uma grande loja também centraliza a ação. Trata-se de um comércio de produtos populares que nomeia a trama. A novela de Gustavo Reiz estreia em 14 de agosto.
Ainda que popular – já que muitos lugares no Brasil passaram a se chamar de Beco da Baiuca por conta da novela de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa, a trama é cercada de polêmicas ante à agenda afirmativa. A personagem Índia (Bumba), não tinha nome e era chamada pelo título que se atribui à sua etnia. Whitney (Mary Sheyla) e Latoya (Zezeh Barbosa) negavam o fato de serem negras e eram ofensivas a si e a outras personagens da mesma cor.
Zezeh Barbosa conta-nos que “Miguel conversou conosco, tanto comigo como com Mary Sheyla. A meu ver, infelizmente, e por muito tempo, Falabella foi muito mal compreendido. Eu nunca diria que ele é racista, pelo contrário, ele é muito consciente. Miguel não abre mão de um elenco negro. Erraram muito com ele. Eu mesma conhecia gente que não dizia ser negra, identificava-se por “morena”, por exemplo”. Por anos, face ao apagamento do reconhecimento de pessoas autodeclaradamente pretas/negras, muitos intitulavam-se moreninhos, mulatos, café-com-leite, e até marrom bombom, conforme relata a pesquisadora Larissa Lima em artigo da para a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). “A Lua me Disse é uma novela, por vezes, politicamente incorreta, mas é bom mexer com as pessoas”, admitiu Miguel Falabella em 2005, à Folha.
Jamais pensaríamos em destruir o amor próprio de ninguém. Estávamos falando de duas mulheres ridículas – Whitney e Latoya – sem noção da própria raça e origem e que não se aceitavam. Usávamos, inclusive, termos que os próprios racistas usavam. De uns anos pra cá as coisas têm evoluído – Zezeh Barbosa
Ainda que a intenção dos autores e das atrizes tenha sido criticar um comportamento, o Ministério Público do Rio de Janeiro recomendou que as cenas da personagem Índia sendo desrespeitada fossem atenuadas. Algo reforçado por um coletivo de entidades defensoras dos direitos dos indígenas. O movimento negro também protestou. Anos mais tarde, com a série “O Sexo e as negas“, Miguel foi novamente alvo dos coletivos afro. Para Zezeh “a parceria com Miguel mudou minha vida, tanto a meu respeito como atriz, como na discussão que havia naquele momento. Só o fato de as personagens inventarem que seus nomes são Latoya e Whitney e não Anastácia e Jurema mostra que elas são bem loucas. Adorei fazê-las e isso me abriu muitas portas. Foi positivo para a minha carreira e para mim também”. Com Miguel, Zezeh deu vida à Condessa Deusa em “Aquele Beijo“. Uma personagem efetivamente rica e que morava em Paris.
Sobre “Fuzuê” , a novela vai ser muito alto astral e o clima camp vai estar presente: Carmen Miranda, abacaxis e bonecos de plástico se alinharão com brincadeiras de arremesso de lama e tortas-na-cara. “Para fazer essas referências às próprias novelas é preciso conhecer e amar o gênero”, diz, sobre a metalinguagem impressa em “Fuzuê”. Sobre a nova trama das 19h, Zezeh adianta que “o autor supreende-nos por conta da simplicidade. A equipe é aberta para discutir o trabalho e temos muito espaço”.
Na trama, Zezeh dará a vida à Gláucia Corneteira, uma vendedora de bolinho de tutu, que “dá uma desculpa para ficar na rua e controlar o bairro inteiro à base da fofoca. Ela se define como ex-futura-e-eterna representante da Associação dos Moradores do bairro. Além de ser defensora da moral e dos bons costumes, andar com roupas comportadíssimas, ser contra tudo e todos. Mas quando ninguém está olhando ela canta todos os homens da novela, dá uns beijinhos e apela para uma mão boba. É meio tarada e totalmente mentirosa. A arqui-inimiga dela é uma cantora de boate, a Maria Navalha (Olívia Araújo) que vive a vida do jeito que quer. Dela, Gláucia tem um recalque, pois inveja quem vive livremente”.
COR
O colorismo ou a pigmentocracia é um termo utilizado para designar a relação de poder definida pela cor da pele. Ou seja quanto mais claro, quanto mais branco, mais socialmente aceitável. A personagem de Olivia Araújo, por exemplo, seria vivida pela Gloria Pires. O que mostra que a racialização não foi determinante para a personagem Maria Navalha. Para Zezeh Barbosa, o fato de uma negra retinta, como Olívia, ter um papel equivalente ao de protagonista é algo infrequente e importante. “Talento e não tem cor. Torço para que isso não seja apenas um momento, um modismo. Espero que isso continue. Acho uma evolução boa mesmo, ainda que incipiente. É importante falar do colorismo. Sabemos todos que quanto mais perto da pele clara, mais fácil de se conseguir trabalho. É recorrente falarem “você não é exatamente o perfil de personagem que eu estou procurando. O colorismo se faz presente especialmente quando se fala de personagens protagonistas. Acho que isso cabe debate, mas que agora estamos num momento da entrega dos peixes”, diz, referenciando-se a uma maior participação de pretos na televisão.
As pessoas vistas como minorizadas – especialmente pretas e amarelas – eram usados por muito tempo na teledramaturgia como adequadas para abrir porta e segurar bandeja. Não viam nossa cara e era como se não se importassem com o que dizíamos – Zezeh Barbosa
Em um de seus novos trabalhos “Um Ano Inesquecível: Verão“, Zezeh vive uma baiana da Portela. Em sua opinião, “As escolas de samba são uma forma de aquilombamento. A gente se reconhece ali por que estamos com os nossos. Eu adoro ver aquilo, as pessoas chorando, emocionadas. Tem que ser preto para sentir isso. Acho que a escola de samba permite essa energia, essa renovação”.
Diante de uma vida cheia de lutas, o que faz a atriz olhar a vida com esperança, poesia sensibilidade? “Fui criada por minha avó, que era benzedeira. Quando ela morreu, eu tinha 22 anos. Ensinou-me ela a fazer tudo com amor. A força do amor é transformadora e eu realmente me acho uma pessoa muito feliz. Sou filha de um pai que era serralheiro e vendia sorvetes enquanto eu vendia verduras. Ele criou 16 filhos. Era um grande homem, que sempre chegava com doces, ainda que baratos, como forma de presentear os filhos. Ele emocionou-se quando viu haver uma preta na novela. Era a Ruth de Souza (1921-2019). Aquilo o emocionou tanto e a mim também que me motivou a ponto de pensar no quão importante é estimular o outro, e especialmente, as novas gerações. Elas não podem sofrer o que a minha geração sofreu”, finaliza.
Artigos relacionados