De volta à “Renascer”, Galba Gogoia reacende o debate sobre ser travesti e artista e como se sobrepôs ao preconceito


Elas voltaram! Galba Gogoia, Gabriela Loran e Bianca Della Fancy, personagens trans da novela “Renascer”, da Globo, retornam à trama das 21h, e, no mês do Orgulho LGBT, destacam a importância da representatividade. Galba Gogoia, que interpreta uma das amigas de Buba (Gabriela Medeiros), compartilha sua história de superação ao sair do sertão de Pernambuco aos 15 anos para estudar no Rio de Janeiro. A ruptura com o pai e a ajuda de amigos cariocas foram fundamentais para mudar sua trajetória. Identificando-se como travesti, Galba destaca a diferença entre travesti e trans e seu orgulho em ressignificar o termo. “Ser travesti é um lugar político e me orgulho das que vieram antes de mim”. Além da novela, Galba estrelará a série “5x Comédia” na Amazon e planeja novos projetos teatrais. Ela enfatiza a quebra de estereótipos em seus papéis e a luta contra a transfobia

*por Vítor Antunes

Até o passado recente, não era comum que travestis em novelas. Mais incomum ainda que vivessem personagens que não fossem hipersexualizados ou marginais. A primeira protagonista trans foi Cláudia Celeste (1952-2018), em “Olho por Olho“, da Manchete, em 1987. Sua personagem era, exatamente, uma prostituta. No mês do Orgulho LGBTI+ foi anunciado pela Globo o retorno à trama “Renascer“, das 21h na Globo, das personagens vividas por Galba Gogoia, Gabriela Loran e Bianca Della Fancy, que, na novela de Benedito Ruy Barbosa adaptada por Bruno Luperi, são amigas de Buba (Gabriela Medeiros). Elas estão cotadas de voltar, especialmente para as cenas de redenção de Humberto (Guilherme Fontes), o pai homofóbico da personagem de Gabriela Medeiros. Conviver com um pai homofóbico não é privilégio da personagem Buba. Pelo contrário, a própria Galba Gogoia, viveu algo parecido: “Vim morar no Rio com 15 anos. Hoje em dia, tenho consciência de que não estava conforme minha família acreditava. Tenho memórias do meu pai, que é preconceituoso. Eu e minha mãe temos uma relação próxima, mas meu pai me proibia de fazer teatro e eu só podia fazer escondida ou da igreja, que são coisas da minha infância.”

Em fevereiro, Galba foi vítima de transfobia ao usar o banheiro de um bar no Rio. O crime foi registrado na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), e o suspeito foi identificado.

Ela prossegue dizendo que aos 15 anos saiu do sertão de Pernambuco e veio morar no Rio de Janeiro, para estudar na Escola SESC, após haver concluído o Ensino Médio, conseguiu uma bolsa na PUC-Rio, no curso de cinema. Foi nesse período em que rompeu com o pai. “Ele descobriu que eu era uma pessoa LGBT, e disse que se eu permanecesse assim, ele pararia de me mandar dinheiro de pensão. Rompemos. Foi difícil e fiquei sem renda e sem poder voltar para Pernambuco se quisesse. Foi nessa época que entendi o poder de outras famílias. Meus amigos cariocas me ajudaram e acolheram, muitos universitários, professores do SESC que me ajudaram. Comecei a trabalhar”.

E foi assim que nasceu a persona Galba Gogóia que mais tarde a batizaria: o surgimento de uma drag – ou “de uma transformista tropicalista”. Dentre as identidades, Galba, tal como sua personagem, se identifica como travesti e não trans. Ela explica a diferença: “Basicamente, a diferença entre trans e travesti é de auto-identificação. O termo mulher trans surge a partir da ciência e da medicina e é muito usado. Travesti é uma palavra usada por países de línguas latinas. Dei por ressignificar”.

Ser travesti é um lugar político e me orgulho das que vieram antes de mim – Galba Gogoia

Além de “Renascer”, Galba poderá em breve ser vista numa serie cômica na Amazon. “A plataforma está divulgando para breve o lançamento da série “5X Comédia”. Eu estou no elenco dela na segunda temporada e cada episódio conta uma história e cada um é um universo. O episódio em que estou é protagonizado pela Fabiana Karla e a Majur e vai ao ar em agosto”. Além disso, ela quer fazer uma peça com Gabriela Loran, sua amiga de elenco da novela. O projeto ainda está em início de desenvolvimento”.

Galba Gogoiafaz “Renascer” e é voz militante da questão travesti (Foto: Divulgação)

 

EU SOU UMA FRUTA GOGOIA

Agreste como a fruta gogoia que nomeia a música de Gal Costa (1945-2022), Galba Gogoia surge dessa mistura de memória e admiração com Gal Costa e da doçura e amargor sertanejo. “”Me orgulho de ser do sertão de Pernambuco. Eu sou muito orgulhosa do meu estado, do São João e as melhores noites são da noite de São João, do samba de coco. Eu sou de uma cidade, Arcoverde, onde a cultura sempre foi forte. Eu tive muito contato e saudade e isso faz parte da minha vida sempre que posso, como a comida, assistir os filmes e volto para o Nordeste. E quando surfe no cenário a referência vem da diva. “Quando surge o boom da RuPaul e das drags, comecei a fazer uma drag tropicalista que não se intitulava drag, mas transformista, que virou a Galba Gogoia, em homenagem à Gal Costa”.

A certeza de Galba no próprio talento foi fundamental para ela vir para o Rio de Janeiro aos 15 anos. “Vi um anúncio de uma escola gratuita do SESC que estava selecionando alunos de Pernambuco para estudar no Rio. Quando mostravam um projeto de educação incrível na área que mais queria estudar. Eu tinha 14 anos e minha mãe não me ajudou nem a fazer a inscrição, porque ela tinha medo [que eu fosse embora]. Esses primeiros anos foram incríveis. Fiquei dos 15 aos 18, onde tive minha formação intelectual de ver o mundo e vi que precisava ficar no Rio para curtir o que acredito”.

Depois disso, aconteceu a ruptura com o pai que a obrigou a trabalhar. “Consegui um estágio que me permitia pagar apenas o aluguel. Depois, comecei a vender bolsas do Nordeste e fiz de tudo. Meus amigos me ajudavam e me estabelecer foi difícil. Mas minha vida artística começa em 2018 na série “BR Trans“, do Canal Brasil, momento em que eu já havia transicionado e através da Gabriela Loran, vi que tudo poderia dar certo”.

Galba Gogoia veio para o Rio ainda adolescente e venceu (Foto: Divulgação)

NOVAS “HELENAS”

Para Galba, é fundamental a abordagem plural que há sobre a transexualidade em “Renascer“: “Acho incrível que há 30 anos, na primeira versão, não havia essa personagem e hoje o autor coloca. Isso é a prova de que estamos avançando demais. Isso é muito legal e temos as amigas trans da Buba e eu nunca assisti isso numa novela. Eu nunca como roteirista consegui aprovar um núcleo trans. A minha personagem é mais desbocada e a da Gabi, mais conselheira. A Buba, mais romântica. No Twitter, dizem gostar que somos personagens divertidas e são felizes. Elas não são retratadas no deboche, não são hipersexualizadas, os figurinos são chiques e não extravagantes.”

Estamos podendo quebrar outros estereótipos e mudando o lugar-comum – Gaçba Gogoia

A artista relata que as pessoas na Internet costumam ser afáveis com ela e com as outras atrizes trans da novela. “Costumam sempre quando as nossas cenas vão ao ar, acho legal ver junto. E o Twitter ama quando a gente aparece, dizem que a gente traz alegria para o núcleo da Buba e um figurino elegantíssimo. Diziam que parecemos “Helenas do Manoel Carlos”. Também tem preconceito – e as pessoas não se envergonham agora – mas não é algo com o qual eu não esteja acostumada”. Conta-nos ela que recentemente postou um vídeo sobre encontros amorosos no qual criticava a hipersexualização do qual as pessoas trans são alvo e houve quem não gostasse. “Ficaram ofendidíssimos, talvez por se reconhecerem ali e me xingaramo, quando vem no meu perfil, eu respondo, não vou levar desaforo para casa.”

“Em quem você se inspira? Eu me inspiro na Fernanda Torres, e reconheço nela minha veia cômica. Ela constrói personagens do jeito dela e personalidade. Me referencio muito em outras atrizes trans como a Gabriela Loran, a Renata Carvalho e a Rogéria (1943-2017), que à sua época fez algo inimaginável. Ela e as atrizes de sua geração”. Tal como a chuva que “móia”, e o balanço do trem, ela veio para ficar. Ela é Gogoia.

Bianca Dellafancy, Gabriela Loran e Galba Gogoia (Foto: Divulgação)