De família de políticos, Luisa Arraes, atriz de ‘Cine Holliúdy’, quer país sem a fome e bolhas entre classes


A intérprete de Francisca é enfática sobre mudanças que deseja no país: “Não há problema mais urgente do que a fome. No meu mundo ideal, as escolas seriam todas públicas e pessoas de diferentes classes sociais conviveriam. Igual para a saúde, transporte…não há nada mais empobrecedor do que o isolamento”, pontua a neta de Miguel Arraes, preso e deposto do cargo de governador de Pernambuco, na ditadura militar, em 1964. Ela também está no filme “Transe”, fala sobre o protagonismo feminino e que foram concluídas as filmagens de “Grande Sertão Veredas”, onde ela e Caio Blat interpretam Riobaldo e Diadorim. Na vida real, os dois são casados, mas optaram por morarem em casas separadas.

* Por Carlos Lima Costa

Intérprete da Francisca de “Cine Holliúdy”, cuja segunda temporada termina nesta terça-feira, dia 8, Luisa Arraes pertence a tradicional família de políticos nordestinos. O avô Miguel Arraes (1916-2005), por exemplo, foi governador de Pernambuco por três mandatos, sendo que do primeiro foi destituído do cargo pela ditadura militar, em 1964, quando foi preso e posteriormente se manteve exilado, tendo sido incluído, em 2018, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Assim, fala com propriedade sobre temas urgentes que assolam o país, sobre as mudanças que deseja para o Brasil, em 2023. “Nesse país, não há problema mais urgente do que pessoas passando fome. A FOME, com letras maiúsculas. Primeiro, resolve-se a fome. Depois, podemos pensar no resto. No meu mundo ideal, as escolas seriam todas públicas e pessoas de diferentes classes sociais conviveriam sem bolhas. Igual para a saúde, transporte…não há nada mais empobrecedor para todos do que o isolamento”, enfatiza.

A atriz integra o filme “Transe”, que no último dia 22 foi atração da Mostra Internacional de São Paulo. Luisa, sua personagem, mostra atos do #Elenão, manifestação liderada por mulheres contrárias ao candidato Jair Bolsonaro em 2018. O longa-metragem foi realizado como uma tentativa de entender o Brasil. “Ele chega à conclusão de que nós, da esquerda, nos afastamos muito do Brasil. Tanto ao ponto de não entender como um político de extrema direita poderia ganhar a eleição. Isso está errado. É dever de um artista entender o seu país. É esta espécie de autocrítica que tentamos fazer com nosso filme. Mas não só isso, porque ainda acredito na resposta através da arte da singeleza e na transformação do amor e da família como pilar fundamental… então, acabo o filme com muitos sentimentos toda vez que o vejo”, comenta.

Antes da eleição presidencial deste ano, muitos brasileiros pediam a ditadura militar. Nos últimos anos, o Brasil conviveu com constantes ameaças de rompimento da democracia com apoio de parcela considerável da população. Neste mês de outubro, o dominical “Fantástico”, programa da Rede Globo, exibiu reportagem sobre a prisão de jovens acusados de neonazismo, um movimento que se faz presente em vários países. “Um país que não conta sua própria história é um perigo. Nossa relação mal resolvida com a ditadura mostrou sua cara desde 2016 quando o atual presidente exaltou um dos piores torturadores, Carlos Brilhante Ustra (1932-2015), da ditadura durante seu discurso no impeachment da Dilma (Rousseff). Nossos vizinhos na América Latina têm museus para contar a tragédia da ditadura, nós não. Achei que ele seria preso depois de sua fala, não foi. Hoje muitos dizem que Lula vai fazer uma ditadura comunista, a maioria não entende que ditadura é bem mais a cara de Bolsonaro. Há uma campanha grande de desinformação que se manteve nos últimos quatro anos. A única batalha contra isso é a educação”, assegura.

Luisa Arraes destaca protagonismo feminino e representatividade nordestina na série Cine Holliúdy (Foto: Catarina Ribeiro)

Recentemente, o Brasil também assistiu incrédulo o vídeo em que Roberto Jefferson proferiu duras palavras contra Cármen Lúcia, Ministra do Supremo Tribunal Federal, e a resistência dele à prisão atirando contra agentes da Polícia Federal, refletindo o machismo e a cultura do ódio estabelecida no país. Luisa acredita que para mudar esse quadro, vai ser necessário um longo processo de desconstrução. “Sim, sem dúvida. Caetano diz, no seu livro ‘Verdade Tropical’, que foi uma espécie de Bíblia para nós enquanto filmávamos “Transe” que os tropicalistas sempre acharam que os militares não tinham vindo de outro planeta, como parte da esquerda mais tradicional achava. Eles achavam que eles eram uma parte profunda do Brasil. Enquanto isso dava a eles um ar mais triste, dava também um embasamento maior sobre por onde lutar pelo país. Grande parte do povo brasileiro é machista, racista e classicista. Há que lutar sempre, sem perder a ternura jamais”, aponta.

PROTAGONISMO FEMININO E ENALTECIMENTO DO NORDESTE

Destaque de “Cine Holliúdy”, Luisa Arraes está radiante pela segunda temporada da série enaltecer o povo nordestino e pelo forte protagonismo feminino. “É muito legal ver um programa com essa forte representatividade feminina no humor, o que é bastante raro. O humor pode ser muito machista, colocando sempre a mulher no lugar de “a bonitinha”, mas não engraçada. Essa é uma batalha grande também de Patrícia Pedrosa, uma gênia da direção. Então queríamos muito sair desse lugar, porque Francisca, minha personagem, chega na cidade com uma história pregressa, opiniões, e aí Francis (Edmilson Filho) e ela podem ter um relacionamento onde dois indivíduos existem”, enfatiza e aplaude a iniciativa.

Com sorriso no rosto acrescenta que a única função dela não é ser namorada dele, nem vice-versa. “E vejo que é uma batalha grande também das maravilhosas atrizes que tenho ao meu lado no Cine, Solange (Teixeira) e Lolo (Heloísa Périssé), referências gigantes na minha vida.”

Luisa Arrase destaca protagonismo feminino e representatividade nordestina na série Cine Holliúdy (Foto: Catarina Ribeiro)

Diante desse foco na ficção, ela analisa a posição da mulher na sociedade atual e sobre seu empoderamento, se ela se deixa dobrar pelo machismo estrutural vigente. “Ele não faz mal apenas às mulheres, é ruim para todo mundo. Não gosto muito dessa palavra empoderada… tem uma frase na peça ‘Rasga Coração‘, do Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho – 1936-1974) que o personagem Lorde Bundinha diz: ‘Manguari, foge do poder.’ Mas sim, o feminismo me fundou e muda minha vida todos os dias. Mas tenho noção dos meus privilégios de mulher branca e não gosto de usar algo tão importante como a luta de igualdade entre homens e mulheres como uma forma de poder. Sonho com um futuro onde o gênero não importe tanto, somos muito mais do que essas classificações cheias de normas. Então, por um lado, luto pela representatividade, direitos das mulheres, por isso a dramaturgia é tão importante para mim. Bons personagens femininos contam uma história que ainda não é muito bem contada. Mas, por outro lado, sonho com um futuro que a gente questione mais o que é ‘ser mulher’. Tem muita regra nisso aí, inclusive poucas tem a ver comigo”, explica, rindo.

Luisa Arraes e Lorena Comparato, em Cine Holliúdy (Foto: Globo/João Miguel Junior)

Ela vibra também com as cenas com Lorena Comparato. “Lorena é uma grande parceira na minha vida. Sua loucura como atriz me transforma diariamente. Ela é incansável. Há MUITO método na sua loucura. Ela é uma estudiosa nata, trabalhar com ela é um grande prazer, uma troca que só aumenta”, enfatiza.

FOCO NO UNIVERSO NORDESTINO

Não é à toa que também festeja a outra forte característica da série, que mostra e enaltece o universo nordestino, o que foge a regra da grande maioria das produções televisivas, geralmente focadas entre Rio e São Paulo. Ela sente “orgulho imenso” de estar no projeto, afinal de contas, ela e os pais, o diretor Guel Arraes e a atriz Virgínia Cavendish, são pernambucanos, “Me sinto uma peixinha fora d’água desde pequena no Rio de Janeiro. Embora more aqui, minhas raízes, educação e noção de mundo vêm do Nordeste e isso faz uma grande diferença. Meu avô foi um grande político em Pernambuco. Eu estudava em escola particular no Rio, onde toda a equipe de limpeza conhecia meu avô e me abraçava chorando. Achava meus amigos metidos (risos), enfim, dividia a minha vida entre Pernambuco e Rio de Janeiro. Isso era impactante”, recorda.

É uma honra poder estar num programa que tenha nordestinos como protagonistas, também autores e diretores, é realmente o maior luxo que eu poderia ter – Luisa Arraes

PARCERIA AMOROSA E PROFISSIONAL COM CAIO BLAT

Há cinco anos, Luisa vive parceria amorosa com o ator Caio Blat, o Pajeú, de “Mar do Sertão“. Os dois moram em casas separadas, fogem do padrão de casamento tradicional da sociedade. E explica se considera esta como uma relação ideal para evitar os desgastes naturais do cotidiano. “Isso foi engraçado, porque viralizou recentemente e nós nunca falamos muito da nossa vida (risos). Mas, sim, é uma forma de preservar a individualidade de cada um para que a gente possa se surpreender com o outro ao invés de cair numa simbiose perigosa para o casal”, explica ela, que em agosto do próximo ano vai completar 30 anos.

Caio Blat e Luisa Arraes protagonizam um dos episódios da série “Amor e Sorte”, durante a pandemia da covid (Foto: Globo/João Miguel Junior)

Esta idade costuma ser emblemática para as mulheres. Então, ela nos conta como se encaminha para as três décadas: Serena, uma mulher extremamente bem resolvida, ou com algum tipo de pré crise dos 30? “Eu estou animadíssima! Já achei que ia ser este ano, minha irmã mais nova me lembrou que vai ser só ano que vem. Mesmo não sendo tão jovem, vivo muito entre pessoas mais velhas e todas me perguntam: ‘caramba Luisa, você ainda não tem 30 anos?”, diverte-se.

“Eu e o Caio nos conhecemos trabalhando e vivemos trabalhando juntos. O trabalho faz parte da nossa vida, do nosso lazer”, frisa Luisa (Foto: Catarina Ribeiro)

Com dois enteados, Antônio e Bento, ela conta que o desejo de ter filhos ainda não passou por sua cabeça. “Quem sabe um dia chega”, diz ela, que este ano concluiu as filmagens de “Grande Sertão Veredas”, onde ela e Caio interpretam Riobaldo e Diadorim, os protagonistas da história. “Nos conhecemos trabalhando e vivemos trabalhando juntos, o trabalho faz parte da nossa vida, do nosso lazer. É difícil alinhar a intimidade de casal com opiniões de trabalho, mas sinto que a cada ano que passa a gente se afina mais”, explica. O longa-metragem talvez estreie no primeiro semestre do ano que vem. E vê-los juntos no palco é uma possibilidade. Os dois planejam muitos espetáculos que os reúna em cena. “Eu não paro de pensar em projetos, mas resta esperar um governo que acredite na cultura como forma de educação e transformação da sociedade”, finaliza.