*por Vítor Antunes
Atriz notavelmente reconhecida por seus papéis cômicos, ainda que tenha transitado por outros estilos de atuação, Júlia Rabello integra o elenco do road movie “La Situación”, nova comédia dirigida por Tomás Portella com Natália Lage e Thati Lopes também como protagonistas. Em entrevista exclusiva, a atriz relembra a importância do esquete “Sobre a Mesa“, exibido há 10 anos no canal Porta dos Fundos, no YouTube, no qual sua personagem, uma dona de casa, falava todos os seus fetiches sexuais de uma só vez deixando o marido sem palavras. O vídeo, um dos de maior sucesso do “Porta“, foi, inclusive, refeito de forma comemorativa para celebrar os dez anos do bem sucedido canal.
Para a atriz, a personagem revela uma mudança de paradigma no lugar da mulher no humor. Por anos silenciada, objetificada ou vivendo sua sexualidade em dois extremos: Era hiperssexualizada ou assexualizada. Além disto, fazia parte do que era entendido como moças de bom comportamento aquelas que não falavam palavrão. “O vídeo redefine o papel da mulher no humor. E a mulher no humor é o reflexo da forma como é representada na cultura. É muito difícil sair dessa prateleira que somos colocadas, onde você é o seu corpo ou como ele aparenta”.
Na sociedade, cabe à mulher os bons costumes e fazer humor é rasgar um bocado de bons costumes – Júlia Rabello
Além do posicionamento em favor da mulher, Rabello fala sobre seus tempos de radioatriz do programa “Patrulha da Cidade“, jornalístico carioca que dava um tom popular aos acontecimentos policiais da capital fluminense. A despeito dos críticos do formato, a atriz salienta a importância do programa e seu aprendizado com ele. “Às vezes, a coisa beirava o quase surrealismo, diante do nível de gravidade de algumas situações. O humor evitava de fazer virar uma barra pesada”. As falas da atriz descortinam um problema no que tange à memória do rádio brasileiro. Não há grandes registros disponíveis sobre a passagem da atriz no jornalístico, nem mesmo sobre a “Patrulha da Cidade“, citada nesta reportagem, e que está no ar há 63 anos. “A relação com a nossa memória e com a nossa história sucede da mesma maneira que a nossa relação com a cultura”, aponta a atriz.
O QUE EU QUERO, MÁRIO ALBERTO?
Dez anos depois de haver vivido Odete, personagem do “Porta dos Fundos” que tornou clássica a expressão “O que eu quero, Mário Alberto?”, Julia Rabello analisa como o esquete de humor “Sobre a Mesa“, no qual Odete descreve detalhadamente os seus desejos sexuais mais intensos e fetichizados ao marido, foi importante para dar protagonismo ao desejo feminino. E não apenas isto, mas destaca uma outra vertente do humor: Aquele onde o recurso cômico está no desejo da mulher e não no fato de ela ser desejada.
“Tenho muito orgulho do esquete. Trata-se de um texto feminista. Pude entender o feminismo através dele, por mais que eu achasse saber muita coisa. O vídeo redefine o papel da mulher no humor. E a mulher no humor é o reflexo da forma como é representada na cultura. E a mulher é objetificada. É muito difícil sair dessa prateleira que a cultura nos coloca, onde você é o seu corpo ou como ele aparenta. Esquete coloca a mulher como protagonista do seu desejo e não como a desejada, objetificada. Quando ela faz o contrário do que se espera do papel feminino, é aí que mora o humor. Nós, mulheres, temos muito caminho pela frente, mas já demos muitos passos”.
Quem quer sentir como a mulher é na sociedade basta ver como ela é no humor. Este é um bom termômetro – Júlia Rabello
Sobre o contexto da época, e tamanha transgressão, Júlia chegou a acreditar que o esquete poderia levar à ruína o canal no YouTube, que vinha sendo incensado por seu humor mordaz: “Assim que foi para o ar, e foi o segundo vídeo que fiz para o Porta, eu achei que houvesse acabado com o canal. Era um texto ousado, num espaço que não havia, especialmente com aquela agressividade irônica e sexual. Quando lançou, eu achei que as pessoas não fossem gostar, também por ser um vídeo muito fechado em mim, de um teor forte nas palavras e que o fazia ainda mais intenso. E também por eu falar [aqueles fetiches sexuais] como se fosse uma receita de bolo, com muita tranquilidade. E, no entanto, foi um boom”, analisa.
Além da própria acolhida ao projeto e do talento das pessoas envolvidas, a atriz acredita que houve uma confluência de fatores que contribuiu para o sucesso do Porta. “É bem aquela ideia que há sobre a hora certa e o lugar certo. O projeto surgiu nessa virada digital, onde havia ali o YouTube, gente com vlogs, e entramos com a dramaturgia e foi esse boom. A internet também já estava pronta para receber um material como esse e as pessoas encontraram espaço na Internet daquele momento. O Porta juntou cabeças de pensamentos muito interessantes e cada um trouxe o seu quinhão”. O canal Porta dos Fundos é um dos maiores e com mais inscritos do YouTube. São quase 18 milhões. O último vídeo postado, em um dia angariou quase um milhão de visualizações.
Inclusive, a entrada de atriz no humorístico da internet serviu para revelar a ela de maneira ainda mais incisiva a verve para a comédia. “Quando eu entrei no ‘Porta’ eu não trabalhava com humor. Sempre ouvia de que eu tinha timing e senso de humor, mas eu tinha medo de investir no segmento, por ter todo respeito do mundo ao gênero. Do nada ele caiu no meu colo e as portas se abriram”.
Aos atores humoristas costuma ser perguntado se eles não pensam em investir em outros estilos de dramaturgia. O que, por vezes, revela um certo preconceito para com os atores do gênero. “As pessoas perguntam muito isso para quem faz humor, se não pensam em fazer outra coisa. A quem faz drama, não perguntam tanto. Normalmente, com exceção daqueles que trabalham só com humor, nós somos atores. Da mesma forma que eu fui pega pelo humor eu gostaria de fazer outras coisas drama, terror… Na escala comercial você é colocado em setores. É preciso alguém com cabeça aberta, ou que seja visionária, para escalar algum que não esta naquela gaveta onde convencionalmente ela é posta”, desabafa Júlia”.
Julia Rabello é uma presença episódica nas novelas. Em “A Regra do Jogo” viveu a lésbica Úrsula, em sua primeira participação nas tramas. A atriz lamenta que a personagem tenha perdido o destaque na trama de João Emanuel Carneiro, possivelmente em razão da grande onda de homofobia motivada pela antecessora no horário, “Babilônia”. “A novela veio na sequência da trama onde Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg eram casal. “Naquela em que trabalhei, éramos um par eu e a Giselle Batista e eu estava muito animada com a personagem e com a proposta, mas naquela época, o Brasil estava voltando a ser conservador e os caminhos que aquela história podia tomar não foram muito adiante em razão da polêmica da trama que a antecedeu”.
Após esta novela, Rabello esteve em “Rock Story“. Em 2019, foi lançada na Netflix a série “Ninguém tá Olhando“, que, no ano seguinte, em plena pandemia, recebeu o Emmy de Melhor Série de Comédia. “Tenho muito carinho por essa série, que é especial um produto brasileiro e criativo. É um trabalho interessante porque tem a nossa cara, é brasileira e tem um humor pop e contemporâneo. Minha personagem pedia um humor rápido e também exigia recursos dramáticos. Um desafio técnico”, afirma.
PARA QUEM TEM FRACO, UM PROGRAMA FORTE…
Julia, nos anos 2000 era radioatriz da “Patrulha da Cidade“, um dos mais populares programas do rádio carioca, cujo slogan está acima citado. Desde 1960 no ar, o radiofônico é um dos únicos, talvez o único do gênero, e uma das maiores audiências da Rádio Tupi carioca desde então. Trata-se de um jornal policial, onde as notícias, na maior parte das vezes bárbaras ou trágicas são reportadas de forma satírica ou humorística. A “Patrulha” inicialmente chamava-se “A Cidade Contra o Crime“, e recebeu o título atual por meio de Oduvaldo Cozzi (1915 – 1978) , ainda nos 60’s. Do seu primeiro ano até o de 2000, foi conduzido por Juarez Getirana, o Gegê (1937-2000). Júlia entra numa das reformulações do jornalístico, quando era conduzido por Coelho Lima, radialista, hoje aposentado. Ainda que o radioteatro esteja quase em desuso, a atriz afirma que haver trabalhado nesse meio de comunicação fez muita diferença em seu fazer como artista. “No radio-teatro você coloca tudo na voz. É preciso ter um grande domínio vocal, ir pelo ritmo, timing, respiração. E é engraçado desenvolver essa técnica toda pela palavra e não pelo corpo, já que estamos num estúdio. Muito dessa geração de rádio e TV deveu-se ao Teatro de Revista e há outras coisas, tanto ou mais que foram usadas lá, e das quais lançamos mão até hoje”.
Uma das atrizes das quais Rabello se reporta com gratidão é Cordélia Santos (1931-2016). “Aprendi muito com ela. É muito prazeroso ouvir esses artistas mais veteranos e experientes”. A radialista citada por Rabello estava na Tupi desde 1950, na função de radioatriz. Sobre o jornalístico policial, Julia relata que “A Patrulha é um fenômeno. Eu cobria as férias das radioatrizes. No programa havia quatro radioatores de longa data, dentre os quais a Cordélia. Apesar de a minha família ouvir muito rádio eu não fui criada com ele. Só trabalhando na Tupi é que fui me dar conta do tamanho da “Patrulha”, confessa.
O noticioso, inclusive, costuma receber críticas tanto de advogados como de alguns outros comunicadores por tratar a violência de forma jocosa. “Às vezes a coisa beirava o quase surrealismo, diante do nível de gravidade de algumas situações. O humor evitava de fazer virar uma barra pesada e o radioteatro nos dava muitas ferramentas”. As falas de Júlia revelam, inclusive um dado importante: Há muito poucos registros acessíveis sobre a História do Rádio, especialmente o carioca. Mesmo em programas de sucesso como este, que ela participou. O que revela uma grande dificuldade do Brasil no que tange à sua própria memória. Não há registro recente do radialista Coelho Lima, acima citado, ainda que tenha se aposentado dos microfones. A memória do rádio acaba sendo a memória dos que o fizeram e que ainda estão vivos.
Julia aponta que “Na Tupi, antes da “Patrulha”, havia um programa de debates de temas da atualidade e circulavam os comunicadores influentes. A emissora ficava na Rua do Livramento, no prédio dos Diários Associados”, relata. Eis aí mais uma marca do descaso brasileiro para com a memória. O prédio ao qual referencia-se Júlia é um dos primeiros projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer (1907-2012). Erigido em 1949, o prédio pertence à chamada “fase racionalista” do arquiteto. Em 2016, os Diários Associados, organismo controlador da Tupi, venderam o edifício à SPE Porto Maravilha Offices. Quando começaram os escândalos da Lava-Jato, as obras foram paralisadas e o imóvel, tombado pelo IPHAN (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional), revestido por cobogós, foi depredado e hoje está em situação de abandono. “A relação com a nossa memória e com a nossa história sucede da mesma maneira que a nossa relação com a cultura”, finaliza.
Artigos relacionados