Ele se destacou nas telinhas brasileiras na pele do escravo Saviano, na novela das 23h ‘’Liberdade Liberdade’’, exibida na Rede Globo em 2016. Mas foi em ‘’Pega Pega’’ como o empresário Dom que o ator David Junior realmente caiu no gosto do povo, o que tornou o personagem um dos maiores trabalhos de sua carreira até então. ‘’Foi um desafio como ator e, às vezes, eu pensava: ‘’Será que dou conta?’’. O resultado foi positivo no final. Eu posso dizer que eu tive sucesso em fazer esse personagem e terminar dessa maneira: com o público gostando e se identificando. Foi muito bom’’, conta o ator que teve a experiência de gravar pela primeira vez entre 16 a 18 cenas por dia. Agora, David se prepara para viver outro escravo, dessa vez o Menelau, na próxima novela das 19h, ‘’O Tempo Não Para’’, escrita por Mário Teixeira.
‘’O Menelau é diferente. Eu já tinha feito um escravo antes, que foi o Mário quem escreveu lindamente também. Só que as dores dos dois e o mote são diferentes. O Menelau é mais duro enquanto o Saviano era mais amoroso, sabe? Ele está disposto a tudo porque já passou por tanta coisa que tudo o que vier ele encara de frente e sem medo. Ele não tem medo de nada, nem da morte. Ele é mais frio também, o que é um desafio pra mim, porque eu sou muito sorriso aberto. Então, está sendo bom viver o oposto de mim’’, diz o ator que na história foi resgatado por um senhor. Norteada pela trajetória da família Sabino, a novela vai traçar uma viagem pelo tempo que se inicia em 1886 e termina em 2018. Tudo começa quando Dom Sabino (Edson Celulari), junto ao seus familiares e escravos, faz uma viagem de navio e sofre um acidente ao se chocar contra um iceberg, de modo que fica congelado e só acorda 100 anos depois na cidade de São Paulo.
Com o gancho dos 130 anos da abolição da escravatura, celebrados em maio, o autor estabelece uma comparação entre as épocas a fim de mostrar como a sociedade ainda carrega vestígios desse período, de modo que o negro ainda é vítima de racismo diário e da imposição da inferioridade social. ‘’O Menelau vive em uma sociedade na qual a maioria dos negros continua sendo de subsidência e subemprego. Tudo vai ser diferente e chocante. Acho que não só para ele como para todo mundo’’, afirma. Para o ator, é de extrema importância que este assunto, que está cada vez mais em voga, seja retratado na teledramaturgia devido ao seu poder de alcance e transformação. ‘’Eu acho importante falarmos sobre este assunto, porque as pessoas têm que começar a aprender a ouvir, a dialogar, a estar disponível para pensar no que elas podem fazer para evoluir e quebrar os paradigmas e preconceitos. A televisão é um canal comunicador que serve exatamente para colocar a sociedade nesse lugar de reflexão. Essa influência que a mídia tem, seja negativa ou positiva, é interessante para questão que está sendo levantada’’, declara.
O choque cultural não vai ser a única preocupação de Menelau na trama. Fiel ao senhor, personagem de Celulari, o jovem escravo, reconhecido pela força e quietude, vive uma relação de veneração com o senhor, o que intensifica a desconfiança de que Dom, na verdade, é o seu pai. Apesar de estar tão no escuro quantos os telespectadores, David Junior acredita que a reação de Menelau ao descobrir toda a verdade não vai ser uma das melhores. ‘’Eu acho que ele vai ficar bem chateado por saber que passou por tudo isso sendo filho de quem ele é. De início, vai ser chocante, sempre é. Para uma pessoa que viveu uma vida de escravidão e depois uma vida de servidão para o próprio pai, essa situação deve bater de forma bem esquisita’’, conta. No entanto, na vida, nem tudo é oito e oitenta e é exatamente a complexidade dos relacionamentos humanos que talvez permita que os dois se entendam no decorrer dos capítulos. ‘’É uma história de vida, não dá para ignorar todos os sentimentos que você construiu durante um tempo por conta de erro. A relação dos dois é muito bonita, porque ele resgatou o Menelau no amor e na cumplicidade e eu acho que por isso eles tem tudo para dar certo lá na frente’’, reflete.
No cinema, ao lado de Adriana Esteves e Bianca Bin, o ator também vive um personagem de personalidade forte e peculiar no filme ‘’Canastra Suja’’: um jovem pobre e ambicioso chamado Tatu. ‘’Ele é um cara polêmico, mas eu acredito que ele seja um sobrevivente, sabe? É aquela pessoa que faz algo porque acredita que aquilo é o melhor pra vida dele, ele não mede esforços para conquistar o que quer e segue a vida sem prejudicar ninguém’’, conta. Dirigida por Caio Sóh, a obra explora a rotina do casal Batista (Marco Ricca) e Maria (Adriana Esteves), que a princípio parece muito feliz, mas, na verdade, está vivendo um inferno dentro de casa. Ele, alcoólatra. Ela, adúltera por se relacionar com Tatu, namorado de sua filha mais velha Emília (Bianca Bin). ‘’É uma situação esquisita, mas é possível”, diz.
Em cartaz desde o fim de junho, o filme recebeu críticas positivas por retratar o humano na sua forma mais crua, explorando as facetas que são consideradas negativas e escondidas por trás de aparências. Para o ator, é essencial que haja esse tipo de abordagem para quebrar com o paradigma do indivíduo perfeito perpetuado pelas redes sociais. ‘’Nós vivemos uma hipocrisia diariamente, vivemos uma era de redes sociais, onde a pessoa posta que está rindo quando na verdade está depressiva. A pessoa mente a felicidade e a ostentação com o corpo, tenta se auto-afirmar e mostrar para o outro que ela é superior o tempo inteiro. Então, desnudar o humano e mostrar que todos têm um lado ruim é fundamental. O Canastra mostra isso de todos os personagens: o lado humano e a conduta duvidosa, um desvio de caráter. Isso faz parte do ser humano, não tem como ser 100% bom o tempo inteiro’’, comenta.
Embora tenha sido sucesso entre os críticos de plantão, ‘’Canastra Suja’’ não foi tão bem recebido assim pelos organizadores do Festival do Rio, que será realizado em outubro, exatamente pela força do personagem de David Junior. ‘’O filme não foi aprovado no festival, porque, de acordo com eles, tinha um cunho preconceituoso por causa do Tatu. Eu não vejo dessa forma de jeito nenhum, exatamente porque vejo ele como personagem e não um personagem negro. É um integrante da história que estava contando algo’’, relembra. O ator ainda completou dizendo que situações como essa podem prejudicar a luta pela inclusão de artistas negros nas produções. ‘’Como era um negro, as pessoas achavam que seria preconceito e isso é perigoso demais, porque amanhã um diretor como o Caio pode achar um problema em colocar um ator de cor e deixar de dar trabalho para a gente por causa disso’’, lamenta o ator.
Leia também: Fabrício Boliveira desabafa: ”Neguei trabalhos que feriam o que acredito”, declara
A questão da ausência de representatividade de negros na televisão e na arte no geral tornou-se ainda mais atual quando ocorreu, recentemente, a polêmica com relação à falta de atores negros na novela das 21h, ‘’O Segundo Sol’’ se passa em um estado onde 86% da população é negra, a Bahia. Segundo uma pesquisa divulgada em 2016 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa), os atores negros ocupam apenas 15% dos papéis no cinema brasileiro. Embora tenha interpretado personagens de grande destaque que retratavam uma outra realidade desse povo nas novelas que atuou, entrando para o time de nomes como Lázaro Ramos, Zulu e o próprio Fabrício Boliveira, e acredite que há uma leve mudança na grande mídia com relação ao assunto devido a uma demanda social, David entende que a luta está longe de ser vencida. ‘’Falar que estamos tendo oportunidade, ok, mas ainda somos muito poucos. Ainda há muito espaço para nós ocuparmos, para mostrarmos a cara do Brasil’’, declara. O ator ainda completou dizendo que há outra questão que os 15% precisam enfrentar: o estereótipo. ‘’Tem um personagem maravilhoso que está fora do estereótipo, mas ainda assim vem apresentando a condição do negro na sociedade de alguma forma. O Dom, por exemplo, era rico porque ele tinha uma mãe branca. Beleza, estamos em um lugar diferente, fora um do estereótipo, mas Dom teve a oportunidade de ser rico porque ele foi ajudado, a vertente de que ele tinha potencial para isso não foi contada e esse discurso de desculpa que precisa ser mudado. Ele foi escrito lindamente e eu amei, mas essas oportunidades de mostrar o negro como personagem e não um personagem negro é o que falta, até para servir de inspiração para a próxima geração.’’
Essa ausência de representatividade na grande mídia, que há alguns anos era berrante, foi um divisor de águas na juventude do ator de 32 anos. Na época do colégio, David precisou raspar o cabelo pois, por não ter nenhuma referência de cabelos afros em um período no qual boybands americanas formadas apenas por homens brancos, como ‘’Backstreet Boys’’, faziam sucessos com seus penteados, não se sentia bonito. Por essas e outras que o ator bate tanto nesta tecla e hoje, apesar dos números ainda serem baixos, os poucos personagens que conseguem trazer um pouco de identidade para a arte brasileira carregam um grande peso social. ‘’Quando eu vejo um garotinho com cabelo parecido com o do Dom, que tem essa referência, eu me orgulho muito porque já é um sinal de mudança. Não dá mais para aturar esse preconceito de que o que vem do negro é ruim, e todas essas questões que estamos condicionados a acreditar. Se eu vejo um garoto na rua com aquele estereótipo de bandido, eu faço questão de olhar no olho dele. Ele pode até me assaltar, mas pelo menos eu mudei esse conceito dentro de mim porque ele pode ser um estudante, um trabalhador, sabe? É uma mudança diária e eu procuro propagar isso na sociedade’’, conta.
Com um currículo que carrega grandes personagens importantes não só para a teledramaturgia como também para a sociedade, é difícil imaginar que David Junior nunca havia pensado em seguir a carreira artística. Por incrível que pareça, tudo aconteceu ao acaso, quando estava indo fazer mais um trabalho de modelo. Como diz David, toda a sua trajetória como ator pode ser resumida em uma única palavra: serendipidade, que significa descoberta afortunada. ‘’Me convidaram para fazer um trabalho na peça ‘’A Vinda da Família Real’’ que a gente apresentou na casa da Lily Marinho em 2008. Eu fazia um dos amantes da Carlota Joaquina e no dia da apresentação ela deu com o leque na minha bunda e eu olhei para trás e dei uma piscadinha para ela. Todo mundo adorou e começou a rir. Depois nos apresentamos em outros lugares e eu fui me apaixonando por tudo isso e ficava na coxia observando. Até que um dia um professor me perguntou se eu queria estudar teatro e me deu uma bolsa de 100% para qualquer lugar. Foi um acaso, não foi algo que eu sonhava desde sempre. eu apenas tropecei na arte e me apaixonei por ela’’, relembra o ator que na época dividia o seu tempo entre Nova Iguaçu, onde morava e trabalhava como corretor de banco, e Botafogo, onde estudava teatro até 23h.
Como todo artista, não foi fácil chegar aonde ele chegou, ainda mais como ator negro. Além da questão financeira, o ator precisou lidar com a desvalorização do seu trabalho devido à cor da sua pele em comparação aos artistas brancos, que muitas vezes nem era os mais talentosos ou corretos para o papel. ‘’Até quando as coisas aconteciam, eu batia muitas vezes na trave. Tive que fazer teste e ouvir coisas do tipo ‘’Pô, mas você não tem cara de preto favelado’’ e eu falada: ‘’Você acha que não existe loiro de olho claro na favela? Como eu não tenho cara de favelado?’’. Outras situações também que você compete com seus amigos negros e no final colocam um branco pelo quádruplo do preço que estavam te oferecendo, que na verdade desde o início já não queria pagar. É aquela questão da carne mais barata: nosso cachê é sempre mais baixo e se a gente for reclamar eles colocam um branco um dão um valor maior porque eles merecem’’, conta o ator que até hoje enfrenta esse tipo de obstáculo.
Aos poucos David Junior se firma cada vez mais como artista brasileiro e não há empecilhos que o façam desistir de uma das suas maiores certezas profissionais: a exploração o desconhecido. Como ator, ele quer viver o diferente e assim contar outras histórias. ‘’Eu já me conheço, eu quero conhecer o Menelau, o Dom, o Saviano. Quero ter a oportunidade única de viver outras vidas, que são diferentes da minha. Quem não gostaria disso, né? Na arte, a gente tem esse poder e é maravilhoso. Se está distante de mim, eu sempre vou me interessar’’, diz. Está tão confiante da escolha que fez que David já sabe até o que vai fazer assim que a novela, que ainda nem foi lançada, terminar: retornar para a sua primeira casa. ‘’Eu sempre faço pesquisas de texto para teatro e já estou procurando algum para entrar com ele em cartaz. Eu quero um texto que me chame atenção e mexa comigo, com o público. Eu quero qualquer coisa que faça incomodar’’, conta o ator, que também não descarta a possibilidade de fazer cinema novamente
A ideia de entrar de cara em outra produção logo após o fim da gravação de ‘’O Tempo Não Para’’ não está relacionada só com o amor que David sente pelas artes. É impossível ignorar o momento sombrio que a cultura brasileira, principalmente o teatro, sofre atualmente, ainda mais quando o assunto é patrocínio e incentivo. E é levando esse cenário em consideração que o ator vai aproveitar a repercussão do novo projeto para lançar o próximo. ‘’Como a gente fica em evidência com a novela, nós usamos a imagem para chamar o público para o teatro porque é muito importante. Tem muito teatro fechando no Rio, no Brasil e quanto mais nós levarmos público pro teatro acho que menos isso acontece’’, reflete David que, mesmo sem nunca ter produzido uma peça, percebe pelo trabalho dos amigos a dificuldade de conseguir aprovação de leis de incentivo, como a Lei Rouanet.
No meio de todos esses projetos artísticos, David Júnior assume na vida real o papel de marido da engenheira Camila Coimbra há sete anos – relações que ele passou a valorizar ainda mais após o acidente que sofreu no fim do ano passado ao dirigir uma moto a 30km e quebrar o pé em seis lugares. Apaixonado pela mãe, Lídia Maria, o ator faz questão de sempre paparicá-la. No aniversário de 62 anos da sua rainha – como ele a chama -, ele a presenteou com algo que ela nunca havia ganhado em toda a vida: uma bicicleta. ‘’Agora eu tenho a oportunidade de fazer isso, então pensei que seria um presente bacana. Eu ensinei ela a andar, porque eu sou ciclista. Mas ela amou e já estou imaginando ir para a Lagoa andar de bicicleta com a minha mãe. Que sonho’’, conta. Por enquanto, David pode relaxar pois, medos à parte, a experiência foi um sucesso. ‘’Ela é sagaz. Eu acho que peguei essa ideia de esporte dela. Ela foi andando e não caiu nenhuma vez, ela só não foi melhor do que eu porque sou muito bom, né?’’, brinca.
Ex-morador orgulhoso de Nova Iguaçu, o ator não deixou o sucesso e as regalias que o acompanham lhe afastar da vida que sempre aconteceu, lá na Baixada. Afinal, para ele, a vida da fama é uma mentira e a Baixada sempre será a sua verdadeira identidade. ‘’Se você pegar uma pessoa que me conheceu hoje pelo meio artístico, ela vai conhecer o David artista. Ela não conhece o Juninho, não sabe da minha história. Não posso dizer que não vai virar minha amiga depois, mas a minha essência mesmo, aonde eu me renovo, é em Nova Iguaçu, onde tem quem me conhece mesmo’’, afirma. Se o David artista já é incrível, imagina o Juninho!
Artigos relacionados