* Por Flávio Di Cola
Comédia romântica? Fábula filosófica? Road movie de auto-descoberta? Tragicomédia sobre sonhos perdidos? A dificuldade em rotular o último filme do diretor, roteirista e produtor Daniel Burman “O mistério da felicidade” (El misterio de a felicidad, 2014) – que integra o grupo de títulos da Première Latina da 16ª edição do Festival do Rio – é um sintoma das ricas sugestões temáticas que se escondem por trás de um projeto cinematográfico que optou pela clareza e pela desafetação narrativa a fim de conduzir pelas mãos qualquer tipo de público para uma reflexão sobre a finalidade da vida, sem peso ou lamúrias. Enfim, um filme que – ao final de tudo – saúda a vida.
O filme começa retraçando a relação do solteirão Santiago – vivido por Guillermo Francella numa composição que nunca perde a doçura do olhar diante de cada golpe que recebe – com Eugenio (Fabián Arenillas), amigos e sócios de longa data de uma próspera loja de eletrodomésticos de Buenos Aires. Suas vidas são aparentemente simétricas e complementares, até o dia em que Eugenio desaparece completamente sem deixar traços. A repentina ruptura dessa associação e dessa camaradagem tão masculinas é complicada ainda mais com a entrada em cena de Laura (Ines Estévez), mulher de Eugenio que – sabendo que fora inapelavelmente abandonada – empreende ao lado do amigo do marido uma espécie de inventário dessas três vidas em comum.
Ao revolverem documentos, pistas e lembranças descobrem aquilo que sempre permanecera em baixo dos respectivos narizes: Eugenio só estivera presente “de corpo” na vida conjugal e na relação com Santiago, pois no seu íntimo sempre viajara para muito, muito longe, acalentando o dia em que sairia em busca da felicidade genuína, atendendo a uma espécie de “última chamada” no outono da vida. E essa sensação de felicidade plena Eugenio já sentira num flash, décadas atrás, numa viagem a uma paradisíaca praia brasileira. Santiago e Laura partem, então, numa viagem por ônibus em busca de Eugenio no Brasil para se defrontarem – no final – com o inevitável: o antigo Eugenio não existe mais – já havia desvendado o mistério da “sua” felicidade e tomara um caminho sem volta. O filme acaba com o ex-sócio e a ex-mulher meio desorientados, vagando pela praia – lembrando remotamente os finais dos dramas existenciais de Antonioni: será que eles serão capazes de encontrar seus próprios caminhos? Poderá ser um caminho a dois, já que o fantasma de Eugenio desapareceu na luz ofuscante da sua própria felicidade? Será que Santiago e Laura saberão o que fazer com as descobertas trazidas por essa viagem?
Sim, é um filme sobre perdas, mas também sobre descobertas que só se tornam possíveis quando a rotina é violentamente interrompida e os personagens são privados abruptamente de suas frágeis muletas: emprego, casamento, vida social, progresso material e conforto. Santiago e, principalmente, Laura encarnam essa dolorosa passagem da ignorância agarrada a falsos rituais e ilusões, para a consciência de si mesmos, através do desapontamento e da dor. Na entrevista coletiva ocorrida ontem no Armazém da Utopia – sede do Festival do Rio na zona portuária carioca – a atriz de teatro, TV e cinema Ines Estévez confessou: “Em 2006 eu havia decidido abandonar a carreira de atriz pois ela não me satisfazia. Depois de ter recusado vários convites de voltar ao cinema, acabei me entusiasmando pelo roteiro de Burman. A possibilidade de ajudar a transmitir toda a profundidade e a positividade contida nessa história de uma forma leve e sutilmente cômica, não muito comum no cinema argentino, me fez recobrar o entusiasmo pela minha profissão”.
Talvez essa pegada tão simples quanto essencial de “O mistério da felicidade” explique o sucesso estrondoso que o filme obteve em seu país desde a estréia em janeiro, tornando-se – de longe – o campeão de bilheteria da última temporada na Argentina. É verdade que público e crítica sentiram, inicialmente, falta da exploração das intrigas intestinas das famílias judaicas de classe média que marca a filmografia de Daniel Burman. Sucessos internacionais como “O abraço partido” (El abrazo partido, 2004), “As leis de família” (Derecho de família, 2006), “Ninho vazio” (El nido vacio, 2008) ou “Dois irmãos” (Dos hermanos, 2010) fizeram com que Burman fosse facilmente etiquetado como “o Woody Allen argentino”, comparação que ele enfaticamente rejeita, embora admita que o diretor nova-iorquino seja uma das suas mais queridas referências. No caso de “O mistério da felicidade” Burman afirma que “a família ainda está lá, mas na forma particular com que Santiago, Eugenio e Laura se uniram. Não é uma família tradicional, é verdade, mas ainda assim, uma família”.
“O mistério da felicidade”, financiado inteiramente com recursos privados, é o primeiro fruto de um projeto que prevê ainda mais dois longas-metragens produzidos pela carioca Total Entertainment de Walkiria Barbosa (“Se eu fosse você” 1 e 2, “Divã” e “Assalto ao trem pagador”) em parceria com a empresa cinematográfica de Daniel Burman, incluindo a continuação do hit “O abraço partido”. Uma promessa de que talvez Brasil e Argentina encontrem nas telas também um caminho comum de felicidade?
Serviço:
“O mistério da felicidade” (El misterio de la felicidad), de Daniel Burman,
Argentina/Brasil, 2014. Estreia nacional: 27 de novembro de 2014.
Próximas exibições dentro da “Première Latina” do Festival do Rio 2014:
Dia 01/10: Cinépolis Lagoon 1: 15h e 19h15m
Dia 08/10: Roxy 3: 16h40
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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