*Por Brunna Condini
“Operária dos meus ofícios’. É assim que Dani Ornellas se define em um espaço curto de biografia no Instagram. A definição é super reduzida mesmo, porque a multiplicidade da atriz é algo incrível. Ela atua com afinco nas atividades em que se propõe. Gravando a próxima novela “Nos tempos do Imperador“, às 18h, na TV Globo, que deve estrear em agosto, em um papel de destaque, como a líder espiritual Rainha Cândida, casada com Dom Olu, Rei da Pequena Africa – comunidade no Rio de Janeiro que reúne os negros alforriados ou que conquistaram a sua própria liberdade –, Dani ainda encontra fôlego para os cinco filmes que participa no segundo semestre.
Achou muito? Então, se prepara porque tem mais. Ela finaliza o documentário sobre a atriz, amiga e mentora Ruth de Souza (1921-2019) e ainda dá conta, praticamente sozinha, “mas aceitando apoiadores”, de uma horta comunitária que cultiva em Santa Teresa, bairro onde mora. “É importante estar trabalhando, produzindo neste momento tão difícil que vivemos, com a arte sendo tão perseguida, como sempre foi, mas agora com vários agravantes políticos que desejam diluí-la. Têm muitos artistas sucumbindo, precisando de acolhimento. Tenho conseguido fazer trabalhos ininterruptos, agradeço. Também tenho me cuidado muito para poder cuidar dos outros”, afirma a atriz, que este ano celebra 24 anos de carreira.
Entre os filmes nos quais poderemos conferir a ‘potência camaleônica’ de Dani, estão ‘O Prisioneiro da Liberdade’, de Jeferson De, sobre a vida Luís Gama, e o primeiro longa de Lázaro Ramos, o ‘Medida Provisória’. Além disso, a atriz também dirige e produz ‘Diálogos com Ruth de Souza’, ao lado de Juliana Vicente. Mas é na trama de Alessandro Marson e Thereza Falcão para a TV, que a atriz tem investido a maior parte do seu tempo. “A Cândida chega em um momento de representação feminina que por muito tempo os livros de história tentaram apagar. Ela e seu marido Dom Olu (Hoji Fortuna) são recebidos com honras pelo imperador (Selton Mello). Acho que é a primeira vez que a TV brasileira mostra uma família real negra em uma novela. É a hora de positivamos a nossa história”.
E completa: “Tivemos muitos apagamentos das nossas mulheres pretas, como Tereza de Benguela, uma importante líder quilombola. Ou como a Luísa Mahin, mãe do Luís Gama. Na atualidade, a atriz Léa Garcia e a própria Ruth de Souza também sofreram apagamento. Na mídia, esse apagamento acontece há anos, através de alguns autores, diretores, que nos colocam no lugar do não ser. Nossos personagens costumam vir do nada para lugar nenhum. Sem família, história. Nessa trama é diferente. Sou muito grata ao Vinicius Coimbra (diretor da nova das 18h), que me chamou para trabalhar com ele pela segunda vez (a primeira foi em ‘Liberdade, Liberdade‘) e viver essa rainha. A maior alegria que tenho é saber que, mesmo a história principal sendo sobre Dom Pedro II, é oferecida a possibilidade de nesse momento de tanta dor que vivemos, eu poder ser referência para uma criança. Ou até para alguém mais velho poder olhar para suas raízes”.
A escolha tem força
Nascida no Corte 8, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, Dani recorda que a TV em casa estava sempre ligada e diz que esse foi seu primeiro contato com a interpretação. “Eu me trancava no banheiro, ainda menina, para imitar na frente do espelho o que assistia. Minha mãe ficava louca comigo por ficar tanto tempo lá dentro, não entendia (risos). Mais tarde, um primo meu ficou amigo do Fernando Torres (1953-2008), marido da Fernanda Montenegro e vivia sempre no meio do teatro. Foi ele que me levou para visitar a Escola de Teatro Martins Pena”, lembra.
“Quando entrei naquele universo, de repente tudo fez sentido para mim. Mas ainda era um sonho distante e eu tinha 14 anos. Guardei aquilo, como guardava só para mim as brincadeiras de ‘ser atriz’ no banheiro. Quando estava com 17, uma amiga disse que faria a inscrição no Tablado. Chegando lá, não tive dúvidas de que era aquilo que queria fazer na vida. Vi a Maria Clara Machado dando uma aula e me arrepiei toda, tinha me encontrado. Saí e liguei do orelhão para minha mãe, Rita Margarida, e ela me disse: “Minha filha, você sabe que não vai ser fácil. Sou professora, moramos na Baixada Fluminense, mas se é isso que você quer mesmo, vamos fazer”.
Apesar de todo apoio da mãe – que antes de se tornar professora de história e geografia, havia sustentando a família como faxineira, e quando morreu fazia doutorado –, Dani revela que o caminho não foi fácil. “Chegou um momento em que a gente não tinha mais dinheiro. Quando comecei a fazer teatro não tinha nem Linha Vermelha. Eram duas horas para ir e duas para voltar. Além disso, foi ficando perigoso. Minha mãe pediu para eu sair da escola de teatro, mas eu resolvi sair de casa. Tinha 18 anos, botei a mochila nas costas e nunca mais voltei. Já morei na casa de um diretor de fotografia em Santa Teresa, uma casa enorme. Ele estava sempre fora e me deixou ficar. Também trabalhava nos bares no bairro para fazer algum dinheiro. Ganhei uma bolsa no Tablado para poder continuar estudando e minhas professoras na época, me deixaram ficar na casa delas enquanto isso”.
A artista revela ainda, que teve outras ‘professoras’ que foram fundamentais e a apoiaram neste percurso. “Escolhi ser atriz e sempre tive gente que acreditou em mim. Outra pessoa que me adotou quando perdi minha mãe foi a Ruth de Souza. Ela dizia que era a filha que ela não gerou. Ruth sempre me disse para não esmorecer, mesmo se não viessem as protagonistas, que eu tinha que pegar cada trabalho e transformar no protagonista daquela obra, foi assim que construí minha carreira”, compartilha Dani, emocionada. “A Zezé Motta foi minha madrinha no cinema. Ela me conheceu no teatro e me indicou para o teste do meu primeiro filme ‘Cruz e Souza, o poeta do desterro”, em 1998. Uma coisa sempre me levou à outra. As pessoas que conheci no cinema, me levaram para a minha primeira novela, ‘A Padroeira’, em 2001″.
“Racismo não é piada e não é admissível”
Infelizmente, a discriminação ainda é pauta em suas entrevistas, no entanto ela salienta que essa é uma mazela que deve ter a atenção e o envolvimento de toda a sociedade. “Ultimamente tenho pedido, quando me perguntam sobre o racismo, que também perguntem aos brancos: como o racismo nos atinge? Não são só os pretos que precisam pensar e falar sobre isso. Nunca vi uma artista branca ser perguntada: qual é o seu comportamento diante do racismo? Pensar na sua parcela de contribuição para que o racismo não se perpetue no país, no mundo, é responsabilidade de todos. Claro que eu tenho muita coisa para falar sobre isso, mas todos precisam refletir. Não são só os pretos que têm que falar sobre racismo. Hoje até acho que tenho mais humor e compaixão para explicar algumas coisas. Como por exemplo, que se eu reajo à uma atitude racista, violenta, ainda ganho o rótulo da ‘mulher preta raivosa’, e que isso é uma forma de descredibilizar”.
Dani não assiste realities, mas não está alheia às discussões em torno do BBB21, como no episódio em que o participante João Luiz expôs em rede nacional o seu descontentamento com a atitude racista do colega Rodolffo sobre seu cabelo, que foi comparado à uma peruca de ‘homem das cavernas’ que compunha uma fantasia. “É preciso entender que isso foi construído. Já nos habituamos a fazer uma maldade com alguém e dizer que foi ‘brincadeira’. Ora, se tem alguém sofrendo, não é brincadeira”, observa.
“Tenho um filho de 10 anos, o Moreno. Faço questão de ensinar a ele o que é brincadeira e o que é assédio moral. Infelizmente, isso que esse participante no BBB fez com o outro, se perpetuou como piada. E não é, porque é ofensivo. Você está falando do cabelo de alguém que está se orgulhando de ser. A Lélia Gonzalez diz que a primeira coisa que nós pretos perdemos, é o nosso nome, porque arranjam logo um apelido como ‘macaco’, ‘negão’, ‘mulata’. Isso é uma forma de apagar quem você é. E quando você é destituído também do seu direito de beleza, como do orgulho do cabelo, é terrível. E outra coisa, não é a primeira vez que isso acontece em um Big Brother. Tenho amigos que já participaram como o Rodrigo França, que dirige a minha peça (o espetáculo ‘Macbeth Preto’, que deve estrear no segundo semestre); a Juliana Alves, a Vanessa Pascale, que saíram de lá com questionamentos por várias razões. Agora é a primeira vez neste reality que alguém se manifestou dessa forma aberta sobre uma atitude racista. E se não fosse assim, temos as redes, então se eles não se posicionassem, poderiam até perder audiência. É importante que entendam que não dá mais para fazer piada e esperar silêncio do outro lado. Isso é uma forma até de educar a população. Dizer que não tem intenção? Ok, todo mundo erra, mas é um erro de 400 anos, não dá mais. Racismo não é piada e não é admissível”.
Questão de respeito
Praticante do candomblé, Dani acredita que a onda de retrocesso que assola o país estimula o fundamentalismo religioso. “Fazer a Cândida neste momento me energiza, me empodera. Ela tem esse lugar da espiritualidade ancestral. E traz uma responsabilidade grande, porque sabemos, que infelizmente a intolerância cresce. Se vou fazer um trabalho que envolve uma religião de matriz africana, que é a minha, tenho uma responsabilidade dobrada. Até para conscientizar as pessoas da importância do respeito. Minha religião é a natureza: é o vento, a água da cachoeira, o fogo. É preciso desmistificar e respeitar”, afirma. “A personagem, fora trazer essa força desse feminino preto que foi posto na base da pirâmide, no esquecimento, ainda me dá a oportunidade de representar neste trabalho, com muito carinho, uma religião que é tão desrespeitada no Brasil”.
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