*Com Maria Eugênia Gonçalves
Toda prévia para o Oscar possui algum carro-chefe que sai à frente na corrida da mais desejada estatueta. Há anos em que a competição é fortemente acirrada e as previsões ficam ainda mais empolgantes que o habitual, como ocorreu na cerimônia do ano anterior entre o trio “Gravidade” (“Gravity”, de Alfonso Cuarón, Melhor Diretor), “Trapaça” (“American Hustle”, do pupilo dos votantes David O. Russell) e o vencedor de Melhor Filme, o polêmico e triste relato da escravidão nos Estados Unidos em “12 Anos de Escravidão” (“12 Years a Slave”, de Steve McQueen). Neste 2015, embora ainda seja uma incógnita o nome que estará escrito dentro do envelope mais aguardado da noite do dia 22 de fevereiro (afinal, zebras não são impossíveis), um longa-metragem já desponta como o queridinho para os bolões de apostas, por somar um repertório considerável de vitórias nas mais influentes premiações ao redor do globo:“Boyhood – da Infância à Juventude”, o elogiado épico clássico rodado durante 12 anos pelo diretor americano Richard Linklater, que não é somente o Número 1 na lista do presidente Obama, como também a grande aposta para o prêmio principal da icônica festa da sétima arte.
A sinopse é simples: o filme acompanha o crescimento de Mason Jr (o novato Ellar Coltrane) e de sua irmã, Samantha (a filha de Linklater, Lorelai) como o próprio subtítulo nacional sugere: da infância ao comecinho da idade adulta. Durante aproximadamente três horas de projeção, o público se torna voyeur de momentos significantes para a formação da personalidade do protagonista, advindo de um lar incomum para os exigentes padrões tradicionais da família americana, uma vez que a mãe Olivia (a concorrente mais forte na categoria de Melhor Atriz coadjuvante, Patricia Arquette) vive separada do pai, Mason Sr. (Ethan Hawke, também nomeado). Resumido desta forma, “Boyhood” poderia passar a ideia de uma obra com enredo formulado, realizada na intenção de atrair os olhares dos votantes da Academia. Entretanto, a história subverte as expectativas já que, por trás das lentes, está escondida a visão de um diretor cujo trunfo diferencial é a retratação eloquente dos relacionamentos e comportamento humanos.
Richard Linklater, a peça chave do quebra-cabeça, já é nome de peso em Hollywood há algum tempo. Após dois filmes de menor escala comercial e anos aprimorando o estilo cinematográfico com curtas, o diretor ganhou o olhar e o coração da crítica e do público geral com a comédia stoner “Jovens, Loucos e Rebeldes” (“Dazed and Confused”, 1993). O já clássico coming-of-age, além de responsável por alavancar sua carreira mundialmente, foi o pontapé na revelação de grandes nomes atuais, como Milla Jovovich, Ben Affleck e o recém-premiado Matthew McConaughey. Dois anos seguintes ao lançamento do terceiro trabalho, o cineasta deu início ao bromance com um dos maiores galanteadores de corações adolescentes dos anos 1990 e que, em seguida, tornou-se figurinha carimbada de suas obras.
Dos 17 filmes comandados por Linklater, Ethan Hawke está presente em oito. A parceria implacável começou ao lado da adorável francesa Julie Delpy na recriação poética do amor à primeira vista no apaixonante “Antes do Amanhecer” (“Before Sunrise”, 1995), primeira parte de uma sequência que durou quase 20 anos para chegar ao fim. Considerada o Santo Graal de sua carreira, graças à química palpável entre os protagonistas, aos diálogos inspirados e aos retratos de encanto das cidades exploradas, a trilogia “Antes” estabeleceu o realizador como artista cultuado e, em meados de 2002, logo após a estreia de outra união ainda inédita no Brasil (“Tape”), a dupla texana deu as mãos novamente para engatar as primeiras fases da gravação de “Boyhood”.
O que difere esta relação criador-criatura, tão comum no cenário artístico, é o fato de possuir aqui afinidades importantes a respeito das lembranças de suas respectivas criações. Para ambos, a ausência da figura paterna no lar serviu como inspiração na delineação do roteiro do conto sobre a transição humana e ainda abriu margem para a participação dos demais atores na condução da narrativa, incluindo a caracterização da personagem de Patricia Arquette, que foi inspirada na própria mãe datriz. Tal detalhe intimista ajuda a estabelecer com afinco um dos maiores motivos pelo qual “Boyhood” trata-se uma experiência inesquecível das telonas.
Em cena, não existe um grande conflito, um clímax estrondoso ou uma inesperada reviravolta. As dificuldades encontradas pela mãe solteira na criação dos dois filhos e os conselhos proferidos pelo patriarca durante a jornada do garoto dos 6 aos 18 anos são, fundamentalmente, pautadas por situações cotidianas, intrínsecas ao desenvolvimento de qualquer ser humano. Não há também recursos comuns do cinema, como quilos de maquiagem ou dosagens exageradas de efeitos especiais, já que neste caso, o envelhecimento dos atores ocorre de forma gradual e natural, fruto das filmangens em ordem cronológica no período de uma década.
Apostando também em detalhes ricos para exibir as mudanças de época, Linklater abre mão do uso da cronometragem dos anos vividos em tela e opta por referências culturais populares, que vão da febre causada pelo lançamento dos livros do bruxinho Harry Potter, passando pelos primeiros modelos de iPods até às acirradas disputas das eleições presidenciais americanas de quatro anos atrás. Esse método próximo e sútil, mostra-se eficaz ao acabar despertando empatia no espectador por evocar sensações nostálgicas.
Outro grande acerto do cineasta e sua equipe é o uso de uma deliciosa trilha sonora contando com grandes expoentes da música alternativa do novo milênio, como Cat Power e The Flamings Lips, até a escolhas mais mainstream, como Coldplay (que surge logo na abertura) e o sucesso “Oops!… I Did It Again”, de Britney Spears. Embalando a trajetória de Mason Jr, a história ainda encontra seu quase-gêmeo musical com a participação de uma canção do último disco do Arcade Fire, “The Suburbs”, vencedor do Grammy em 2011 e que, ao longo de 16 músicas, discorre liricamente sobre o crescimento e o retorno à terra natal.
“Deep Blue”, do Arcade Fire, é a décima segunda canção do terceiro disco da banda canadense,“The Suburbs”
Sendo assim, em um ano de qualidade exemplar sobre derrotas e recomeços (“Birdman”), avanços científicos e seus desdobramentos (“A Teoria de Tudo”;”O Jogo da Imitação”), histórias com teor político (“Selma”;“Sniper Americano”) e os já vistos como queridinhos cult (“Whisplash – Em Busca da Perfeição”;“O Grande Hotel Budaspete”), uma narrativa singela, poética e realista, de esforços técnicos admiráveis, torna-se merecidamente favorito na corrida da estatueta de Melhor Filme do ano por permitir que reconheçamos ali, naquele garotinho, nós mesmos.
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