*Por Allex Colontonio
“Whitney morreu com o coração partido”. A frase impactante abre o premiado – e por pouco não embargado pela Justiça – documentário “Whitney: Can I be me” (Inglaterra/EUA, 2017), dos diretores Nick Broomfield e Rudi Dolezal. Um ano depois, com autorização do espólio da cantora norte-americana, Kevin Macdonald, vencedor do Oscar por “One day in September” (EUA, 2009), subiu a carga emocional em “Whitney” (EUA, 2018), que arrebatou elogios de público e de crítica ao documentar um retrato ainda mais sofrido da estrela atormentada por inúmeros fantasmas, que começavam com o abuso sexual na infância e culminaram afogados em álcool e drogas, passando por sua implacável autocrítica. “O demônio sou eu mesma”, declarou em entrevista à apresentadora Diane Sawyer, em 2002, ao admitir o vício publicamente. Entre meia-dúzia de docs caça-níqueis feitos para a tevê e dois longas duros de entubar – “Whitney”, de 2014, dirigido por Angela Bassett e estrelado pela descendente de brasileiros Yaya DaCosta; e “Beauty” (EUA, 2022), com direção de Andrew Dosunmu, descaradamente inspirado em Houston sem mencionar Houston, dessa vez parecia que a cantora mais premiada de todos os tempos ganharia uma cinebiografia à altura de sua grandeza. Bateu na trave!
Nesta quinta-feira aterrissou nos cinemas de todo o país, pela Sony Pictures, a superprodução “I Wanna Dance With Somebody – a História de Whitney Houston”, com direção de Kasi Lemmons e roteiro de Anthony McCarten, e atuações brilhantes de Naomi Ackie no papel principal e de Stanley Tucci vivendo o seu mentor, Clive Davis.
Detentora de títulos tão inalcançáveis quanto as notas que saíam da sua garganta em salto olímpico – ela derrubou o recorde dos Beatles ao emplacar sete hits consecutivos em primeiro lugar nas paradas, além de deter o título de artista feminina mais premiada de todos os tempos –, a cantora, que foi encontrada morta na banheira de uma suíte do hotel Beverly Hilton, em Los Angeles, no dia 12 de fevereiro de 2012, aos 48 anos, é retratada com excesso de licença poética, algumas dúzias de erros cronológicos e “passadas de pano” para certos vilões.
Não era preciso apelar para a ficção: acompanhada feito um reality show em tempo real, a vida de Whitney continha drama suficiente para superar qualquer enredo fatalista, sem passar pelo clichê das grandes divas negras americanas – tipo o drama da menina pobre que apanha na infância, passa fome e descobre o talento cantando na igreja. Exceto pela gênese no coral da New Baptist Church em New Jersey, sua cidade, Whitney nasceu, cresceu e viveu entre grandes estrelas. Filha de Cissy Houston, cantora famosa na era da Disco Music e uma das mais importantes do Gospel (com direito a Grammy na prateleira), afilhada de ninguém menos que Aretha Franklin e prima de Dee Dee Warwick (estrela do soul) e de sua irmã Dionne Warwick (uma das maiores vocalistas do mundo), foi carregada no colo por Elvis Presley, para quem a mãe fazia backing vocal no ápice do estrelato. Estudou em tradicional colégio particular, morava numa casa com piscina (onde a mãe recebia Roberta Flack, Chaka Khan, Patti Labelle, Gladys Knight, Luther Vandross e Stevie Wonder para o chá) e foi disputada por gigantes da indústria aos 18 anos, quando já era modelo profissional (Whitney foi a primeira negra a estampar a capa da revista Seventeen). Quem comprou o passe foi Clive Davis, diretor artístico que a catapultaria ao sucesso global no álbum de estreia de maior êxito de que se tem notícia.
Interpretado por Tucci em atuação impressionante, Clive, aliás, é o produtor por trás do filme, o que talvez explique seu protagonismo e o absolva de algumas negligências. Um dos homens mais poderosos do showbusiness, ao longo das décadas, ele descobriu nomes como Barry Manilow e Carlos Santana. Além de Whitney, Davis também foi o responsável pelo surgimento de outra popstar que morreu ainda mais jovem, em circunstâncias parecidas: Janis Joplin. Ex-assessora de Clive, a então jornalista Myra Friedman, autora do best-seller sobre a roqueira, “Enterrada Viva” (1973), descreve o empresário como alguém obcecado pelo estrelato e excessivamente duro com seus artistas. O que se vê no filme, entretanto, é uma Whitney rebelde, bem diferente daquela que dizia “amém” para tudo o que o manager delegava – é só observar uma conversa filmada entre os dois no making of de “The Greatest Hits”, em 2000, que Whitney lançou antes de assinar o contrato mais caro até então – 100 milhões de dólares, superado apenas pelo que a britânica Adele carimbou recentemente com a Sony (117 milhões de euros).
Apesar da excelência dos figurinos, o filme ignora sumariamente o passado de modelo (e a própria beleza de Whitney, namoradinha da América), ao apelar para um make caricatural, que em alguns momentos lembra um episódio do Ru Paul Drag Race e por pouco não compromete a atuação brilhante de Naomi, que segura a peteca com classe.
Talvez por questões de direitos de uso de imagem, Bobby Brown, ex-marido e principal algoz de Whitney, é retratado mais como um sujeito omisso do que como o marido invejoso, violento e abusivo – papel este que o roteiro joga mais nas costas do pai, o agente que desviou rios de dinheiro da maior vendedora de discos da América. Cissy Houston, a mãe disciplinadora que esculpiu Whitney à sua imagem e semelhança e que tinha p-a-v-o-r do romance da caçula com a assistente Robyn Crawford, desaparece ao longo da trama, para só ressurgir quando despacha a filha, com força policial, para o rehab.
McCarten, roteirista do fantástico Bohemian Rhapsody, cinebiografia de Freddie Mercury (vocalista da banda Queen, que rendeu o Oscar de melhor ator a Rami Malek em 2019), repete a estrutura costurando a história com grandes apresentações musicais (e Lemmons se encarregou de reproduzi-los com pompa e circunstância em cenas nababescas, como quando Whitney cantou o Hino Nacional Americano no SuperBowl de 1991 ou nos bastidores dos clipes que chegaram ao topo da MTV). Mas se perde numa trama aguada que ignora a morte trágica de sua filha, Bobbi Kristina; pula um dos episódios mais bizarros da história das gravadoras (o fato da festa pré-Grammy, promovida por Clive Davis, ter sido mantida no mesmo dia e local da morte de sua artista mais rentável, com o corpo ainda à espera da remoção, quatro andares acima) e fracassa na construção da personagem e na enorme insegurança que ajudou a destruir Houston. “É irônico que a maior cantora do mundo não se considerasse boa o bastante”, disse Kevin Costner, que brigou para ter a estrela como Rachel Marron em “The Bodyguard” (EUA, 1992), não por acaso, a trilha sonora mais bem-sucedida do Cinema, só para citar outro recorde de Miss Houston.
Às lágrimas, Costner concluiu, no funeral de Whitney, quase onze anos atrás: “Acho que a primeira coisa que Deus vai lhe dizer ao se encontrar com ele agora é: você foi boa o bastante”. Pelo menos sob esse aspecto, “I Wanna Dance With Somebody” é mais do que eficaz. Com ou sem uma pré-opinião, você provavelmente vai sair da sessão com a certeza de que se trata, de fato, de uma das maiores cantoras que já existiram. Com um pouco mais de fé, talvez também concorde com o maestro Quincy Jones, que disse: “Se Deus tivesse uma voz, seria a de Whitney Houston”.
*Allex Colontonio é publisher da revista independente Pop-se e diretor de conteúdo da revista Forbes Life Design
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