O time feminino das atrizes brasileiras é o grande destaque da edição 2016 do Festival de Cinema de Gramado. Depois de Sonia Braga e Andreia Horta arrebatarem o coração da simpática cidade da Serra Gaúcha com seus respectivos longa-metragens, chegou a vez de Carolina Dieckmann brilhar com aquela que já pode ser considerada uma de suas melhores atuações até aqui. Atuações de uma carreira que começou lá em 1993, na novela global “Sex Appeal” e se estende até hoje com personagens marcantes que entraram para a história da nossa teledramaturgia. Hoje, protagonista do thriller de suspense “O Silêncio do Céu”, a loura dá vida a Diana, uma mulher que sofre um crime brutal de estupro dentro de sua própria casa, mas decide manter a história em segredo para o marido, Mário (ator argentino Leonardo Sbaraglia), que presencia toda a ação, mas também prefere se calar em respeito à mulher. O silêncio entre o casal funciona como erva daninha deteriorando dia após dia essa relação. A dobradinha entre os protagonistas e o olhar delicado do diretor Marco Dutra, marcam uma produção que envolve drama psicológico e perturba o espectador com personagens que vão muito além das rasas definições de mocinhos e vilões.
Para a atriz, é importante que o tema da violência à mulher e a forma como lidar com isso possa ser apresentado no filme com o intuito de pautar discussões. “O que sempre me chamou muita atenção desde o roteiro foi justamente o silêncio dela diante do que acontecia. Os motivos que faziam ela se calar sempre me intrigaram muito. Questionar esse silêncio e o quanto ele pode ser destruidor, foi sem dúvida o que me instigou nesse trabalho”, avaliou ela. “Acho importante e gosto muito quando conseguimos sair da tela e chegar à sociedade em forma de levantamento de discussão mesmo. Não cabe a mim julgar a maneira que uma pessoa vai se comportar diante de uma situação de violência. Isso é muito pessoal, né? Mas a gente sabe que quando decide não colocar para fora, por algum motivo, seja qual for, não entramos na estatística e aquilo se torna muito maior. Se não vai à delegacia, não tem como aquela pessoa ser procurada. Então tem uma série de coisas que acontecem a partir do momento em que você decide falar sobre isso ou não”, analisou Dieckmann.
Em uma atuação contida, a bela ainda deu conta de encarnar as nuances de sua personagem, expressando suas angústias e julgamentos mais pelo olhar do que propriamente pelas palavras. O que rendeu grande repercussão do trabalho da atriz. “A maneira como a Diana lida e se comporta com a agressão que sofreu é extremamente inquietante. Você nunca sabe exatamente o que ela está sentindo e o que quer passar. Para mim, como atriz, foi uma personagem muito gostosa de fazer, um grande desafio e muito bom de passear por suas emoções”, contou. O drama, que é uma co-produção entre Brasil e Uruguai, foi rodado no país vizinho, em Montevidéu, e, portanto, é falado basicamente todo em espanhol. Para a atriz, essa aventura trouxe experiências que vão muito além da atuação.
“Foi extremamente difícil, porque eu falava muito pouco e quando você estuda um texto na sua língua você constrói todo um cenário de possibilidades para fazer as sensações ganharem sentido. Eu adorei fazer, filmar em outra língua e em outro país. Eu fiz aulas de espanhol totalmente focadas no roteiro. Foram apenas quatro semanas de estudo. Mas conhecer um pouco dos processos deles, de como eles trabalham. E o Leonardo Sbaraglia é uma estrela do cinema mundial, e poder ver de perto como ele trabalha e se coloca na profissão, poder conversar, poder aprender com ele foi muito legal”, elogiou a atriz. “A gente sente na língua-mãe, sabe? O desafio foi buscar sentido num idioma que eu conhecia pouco”, revelou.
Acostumada a viver grandes mocinhas em novelas da Rede Globo, Carolina é desafiada ao ser posta em um outro lugar nas gravações do longa. Durante toda a narrativa, não se sabe ao certo o que se passa na cabeça de Diana, mas fato é que a carga dramática da protagonista exigiu muita dedicação da atriz. “Eu de fato contei muito com a sorte de ter esse papel de heroína-romântica na televisão, que tem me proporcionado convites para personagens que têm uma curva dramática bem interessantes. E acho que eu forcei isso. Eu tenho muito interesse pelo drama, pela profundidade e pela naturalidade. Os filmes que eu fiz, apesar de uma forma esporádica, é o reflexo desse meu interesse em um outro lugar. Tudo o que eu fiz de alguma maneira foi necessário para mim. E foi o que aconteceu no ‘O Silêncio do Céu’, que me da uma possibilidade dramática muito mais profunda e intensa do que estou acostumada a fazer”, avaliou.
Apesar de rodado em Montevidéu e falado quase todo o tempo em espanhol, o filme conta com um elenco multinacional, que inclui a uruguaia Mirella Pascual, do filme “Whisky” (2014), o argentino Chino Darín, filho do astro Ricardo Darín, e a paulistana Paula Cohen. De acordo com o produtor Rodrigo Teixeira, o trabalho foi rodado totalmente com dinheiro brasileiro. “Foi uma época em que a gente não pegou um câmbio muito favorável, mas os recursos do nosso longa foram totalmente nacionais”, destacou.
No entanto, toda essa mistura latina de “O Silêncio do Céu” reúne justamente as características de internacionalização pretendidas pelo festival, que vem buscando estreitar os laços com a América Latina e, desde 2012, tem a argentina Eva Piwowarski entre seus três curadores. O roteiro estava pronto desde 2010, mas ficou engavetado por alguns anos, e segundo o produtor Rodrigo, é inspirado no romance “Era el Cielo”, do argentino Sergio Bizzio. “A ideia inicial também era ter gravado em São Paulo. Mas assim se tornou uma oportunidade de integração latina, só a gente que é isolado, os outros países se conectam mais. E eles têm muito mais interesse em nós do que nós neles”, afirmou Teixeira.
Com uma bela montagem, o longa está repleto de imagens sombrias e muito bem filmadas, introduzindo uma série de símbolos que tornam a relação da dupla ainda mais complexa. Uma bela narração em off também traduz as fobias e inseguranças de cada um dos personagens. Com uma conclusão de grande impacto, o filme deixou os espectadores de Gramado colados à cadeira um bom tempo após o fim da sessão. Não seria uma surpresa se a produção fosse recompensada com os principais prêmios do festival. Já que concorre ao Kikito nas categorias de Melhor Filme e Melhor Atriz em Papel Principal.
No enredo, após a chocante cena do estupro vivenciada pelo casal – cada um em sua perspectiva, o silêncio que toma conta da dupla ao longo dos dias se transforma, pouco a pouco, também em uma forma de violência entre as relações humanas, muitas vezes escondida na omissão, na incomunicabilidade e no medo de se expor ao outro. Mario quer que Diana conte o que houve, já que a mulher não notou a presença dele durante o estupro, mas ela só repete inúmeras vezes que “está tudo bem”. Ao mesmo tempo, toma vários banhos por dia, para se limpar do abuso sexual, e começa a ter pesadelos recorrentes.
O diretor Marco Dutra acrescentou que a cena de estupro que abre o filme, e se repete na sequência, sob outros pontos de vista, foi uma das mais difíceis que já dirigiu. “Fizemos storyboard e discutimos tudo em detalhes para que tudo fosse o menos doloroso possível, mas ainda assim foi difícil”, admitiu o cineasta, de 36 anos. “Abordamos esse tema de forma muito séria e dedicada, é um assunto duro, não é fácil falar sobre esse tipo de trauma. Aí entram o silêncio, a incomunicabilidade, a impossibilidade de colocar essa questão em diálogos”, destacou ele, que tem concentrado suas obras no universo doméstico da classe média já que, anteriormente, vem de trabalhos como “Quando Eu Era Vivo” e “Trabalhar Cansa”.
“Aprendi a ver cinema assistindo a filmes de gênero. Quando eu era criança, ia na locadora e adorava ver os filmes divididos em prateleiras: suspense, terror, ficção científica. Aquilo não era redutor para mim, era uma forma de classificar os filmes que eu queria ver ou não naquele dia. Quando se faz suspense, é inevitável usar a gramática estabelecida por Hitchcock”, avaliou. A produção “O Silêncio do Céu” chega aos cinemas brasileiros em 22 de setembro e depois será apresentado em outros países. “A gente fez questão de estrear esse filme no Brasil”, declarou o cineasta.
Agora, voltando a falar sobre o poder das mulher em Gramado, Carlina Dieckmann aproveitou para frisar o olhar afiado para as artes das atrizes de solo verde e amarelo. “É muito gostoso ver nós mulheres se destacando cada vez mais no nosso cinema. Eu inda não tive a oportunidade de assisti ‘Aquarius’ e ‘Elis’, mas estou louca para ver. As atrizes brasileiras têm de fato uma carga dramática e uma coisa de comoção que quando se abrem caminhos para elas a coisa realmente acontece”, completou.
Na noite de abertura do evento, Sônia Braga recebeu o Troféu Oscarito na noite de início do Festival de Cinema, quando foi exibido o filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho. O longa, no entanto, está fora da competição oficial. Já na noite seguinte, Tony Ramos foi homenageado em uma cerimônia emocionante. O ator, que tem mais de 50 anos de carreira e 128 personagens no currículo, recebeu o Troféu Cidade de Gramado. E nesta terça-feira, apesar de não comparecer ao evento por precauções médicas e ser representado por uma de suas filhas, o cineasta José Mojica Marins, mais conhecido como Zé do Caixão, recebeu o Eduardo Abelin, que é entregue como reconhecimento a diretores, produtores e técnicos pelo trabalho desenvolvido em prol do cinema brasileiro.
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