Coautora de ‘Tieta’, Ana Maria Moretzsohn fala do sucesso da trama e diz que não voltaria a escrever novela na TV aberta


A reprise de “Tieta” alcançou picos de 19 pontos de audiência, superando até programas como o “Big Brother Brasil”. Mesmo quase 40 anos após sua estreia, a novela reafirma sua força atemporal mesmo com temas considerados polêmicos hoje. Ana, que atualmente se dedica a projetos para streaming e aulas de roteiro, destaca a liberdade criativa da época e critica as imposições temáticas da TV contemporânea. Isso se deve, em grande parte, ao que ela atribui como sendo uma necessidade forçada de incluir debates sociais no universo dos personagens, que, segundo ela, não vivem essas questões de forma natural. “Graças a Deus, não estou escrevendo esse tipo de novela. Eu acho que isso é uma coisa que impede a criatividade. As novelas que fazem sucesso são as que você pode falar de tudo, mas de uma maneira que não chateia ninguém. Essa coisa obrigatória de ter uma postura, de ter uma bandeira para defender, não sei o quê, isso é muito chato!”

*por Vítor Antunes

Quando foi anunciada a reprise de “Tieta”, muito se questionou sobre como seria a recepção da novela pelo público atual. A forma de contar a história é outra, o tempo das cenas é diferente e a qualidade de imagem também mudou. Além disso, a novela é politicamente incorretíssima para os dias de hoje. No entanto é um sucesso de audiência. Na última semana, “Tieta” chegou a alcançar 19 pontos de pico, uma audiência maior que a do “Big Brother Brasil”. Inclusive, a novela oitentista chegou a elevar em 4 pontos a audiência da faixa. No Ano Novo, “Tieta” ultrapassou a média de “Mania de Você“, a novela das 21h. A trama também tem gerado grande repercussão nas redes sociais. Quem também que celebra o êxito da reprise é uma das autoras da novela, Ana Maria Moretzsohn, que escreveu a história ao lado de Ricardo Linhares e Aguinaldo Silva. “Acho o máximo o sucesso no Vale a Pena Ver de Novo. É realmente impressionante, todo mundo está adorando. O mais engraçado é que, se você assistir aos capítulos, não tem nada de sensacional acontecendo. É apenas o dia a dia daquela cidadezinha do interior, entre Sergipe e a Bahia”. Ainda em janeiro, a Globo fez um anúncio para destacar o sucesso que continua com grande alcance — mesmo tendo quase 40 anos. A busca sobre a novela aumentou em 25% no Google Trens – segundo O Globo – e chegou a marcar 23 pontos no Rio.

É um tipo de novela que eu gosto de escrever porque há proposta, não com aquele negócio social que você é obrigado a fazer, mas que tem entrelinhas. Tem que se falar das lutas sociais, dos preconceitos… – Ana Maria Moretzsohn

Sobre fazer uma novela contemporânea na TV aberta, Ana não tem interesse. Isso se deve, em grande parte, ao que ela atribui como sendo uma necessidade forçada de incluir debates sociais no universo dos personagens, que, segundo ela, não vivem essas questões de forma natural. “Graças a Deus, não estou escrevendo esse tipo de novela. Eu acho que isso é uma coisa que impede a criatividade. As novelas que fazem sucesso são as que você pode falar de tudo, mas de uma maneira que não chateia ninguém. Essa coisa obrigatória de ter uma postura, de ter uma bandeira para defender, não sei o quê, isso é muito chato! Acho que o lugar certo é o cinema e o teatro. As pessoas querem chegar em casa e ver algo para refrescar a cabeça. Se for para ver tudo que você passa no jornal todo dia, é uma chateação. Eu sou completamente contra, mas tem quem faça. Graças a Deus, eu não preciso fazer mais, não faria e não tenho pretensão de voltar à TV aberta”, diz. Ana é autora de novelas como “Esplendor“, “Lua Cheia de Amor” e “Estrela Guia” e está com um projeto para uma novela curta para o streaming, bem como segue com as aulas de roteiro, ministradas online.

 

Betty Faria está de volta em Tieta e Globo precisa lidar com polêmicas da trama exibindo a novela às 17h

Betty Faria está na reprise de ‘Tieta’, que tem feito sucesso absoluto às 17h mesmo com temas polêmicos

REGRESSAR É REUNIR DOIS LADOS

Quando “Tieta” começou, a protagonista ainda não havia aparecido. Tanto a atriz quanto uma das autoras estavam envolvidas em outra trama, “O Salvador da Pátria“. Ana Maria estava escrevendo os capítulos finais da novela assinada por Lauro César Muniz — na qual ela era uma das colaboradoras —, enquanto Betty Faria vivia Marina Sintra. Por isso, a entrada da atriz só foi possível no capítulo 15. Curiosamente, as cenas de Marina eram escritas justamente por Moretzsohn, que comentou ter trabalhado quase simultaneamente em “Tieta” e “O Salvador da Pátria“.

“Chego em “Salvador da Pátria” a convite de Daniel Filho, que me chamou quando eu estava terminando de escrever “Bambolê” (1987). Ele me convidou porque diziam que a novela estava muito masculina. Acabei entrando e dando um tom mais romântico para atrair as mulheres. Troquei muitas ideias com Lauro César Muniz, o autor titular. Eu escrevia durante a semana e, às sextas, ia ao Rio levar os capítulos para a Globo. Uma das minhas funções era incrementar o romance entre a personagem de Betty Faria (Marina) e a de José Wilker (João)”. Por essa razão, a entrada de Tieta na novela que leva seu nome foi adiada. “A gente não sente falta da Tieta no começo da novela porque todo mundo fala dela o tempo todo. É como se ela já estivesse ali”.

Luciana Braga e Ary Fontoura em cena da novela ‘Tieta’, em 1989

Uma novela com três autores, “Tieta” tinha uma dinâmica própria. “Havia uma reunião periódica onde discutíamos todos os caminhos dos personagens. O Aguinaldo Silva gravava as reuniões para se lembrar de tudo depois. Ele fazia seis escaletas — resumos equivalentes a capítulos —, e cada um de nós escrevia dois episódios. Não havia divisão de núcleos; escrevíamos os capítulos inteiros. E o curioso é que nenhum de nós sabia com clareza quem havia escrito o quê, tamanha era a harmonia na escrita”.

Muitas cenas românticas também eram de Ana Maria. “Embora eu não seja uma mulher tão derramada, eu me coloco no lugar dela, com sofrimento maior. Tem uma cena de quase suicídio da Leonora (Lídia Brondi), em que ela entra no mar para se matar. Eu sofri, eu chorava. Foi um verdadeiro massacre. Acho que foi a única cena de suicídio que escrevi na vida. Foi muito duro, muito duro. A gente fica com os personagens à flor da pele”.

Tieta (Betty Faria) demorou para aparecer na trama. A atriz – e a autora – estavam na novela antecessora do horário, “O Salvador da Pátria” (Foto: Divulgação/Globo)

A autora não considera “Tieta” uma novela pesada. Para ela, a produção tem carisma junto às crianças e jovens, além de tratar temas controversos de forma compreensível para os adultos. “A história do coronel com as meninas — quando ele finge ensiná-las a ler para assediá-las — não é compreendida pelas crianças, mas pelos adultos, sim. Tem um quê de fábula e de farsesco na novela. As coisas mais sérias são abordadas de forma leve, como numa brincadeira. Mesmo o romance da tia com o sobrinho ninguém questionou. Pelo contrário. Conheço muitas pessoas que estão revendo a novela, inclusive amigas da minha idade. Todo mundo adora, rola de rir, torce pelo casal. É uma novela muito leve, ainda que toque em assuntos densos”.

Sobre como começou a escrever, Ana Maria relembra: “Sempre quis e sempre escrevi. Quando eu era garota no Colégio Santa Úrsula, escrevia novelinhas de amor em cadernos que passavam pela sala inteira. Era um folhetim tradicional. Meu primeiro projeto para a TV foi ‘Caso Verdade‘, que vendi para a Globo. Depois fiz minha primeira novela com o Walter Negrão, ‘Direito de Amar’. E aí não parei mais. Era o que eu queria na vida: televisão e novela”. Atualmente, ela prefere projetos menores. “Eu gosto de novelas curtas, porque enfrentar uma barra de 190 capítulos não dá mais. Tem muita gente nova para fazer isso”. Ana também refuta notícias de que tenha sofrido assédio na Globo. “Pelo contrário, eu era muito bem tratada na casa”.

Sobre a pouca presença feminina nas novelas, Ana explica que se trata de um problema histórico: “Sempre houve uma relação um pouco distanciada da TV com as mulheres. Quando entrei na Globo, havia pouquíssimas mulheres. Se você pensar bem, tudo começou com Glória Magadan e Ivani Ribeiro“. Ela conclui falando sobre as aulas online de roteiro: “Agora, eu acho maravilhoso dar aula online. Pode-se fazer perguntas, temos debates, e eu mantenho um grupo no WhatsApp com meus alunos. Ficamos o tempo todo falando sobre novelas do passado e do presente. É uma troca incrível, que começou na pandemia e eu adorei. Muitos dos meus alunos já escreveram sinopses e são muito talentosos. Tenho dois projetos com alunos e adoro isso”.

Como diz a música tema da protagonista, “regressar é reunir dois lados”. E “Tieta” faz isso, unindo o ontem e o hoje. Com sua trama politicamente incorreta para os padrões atuais, desafia o tempo e prova que a essência de uma boa história é atemporal. Na simplicidade de uma cidadezinha entre Sergipe e a Bahia, seus personagens e conflitos vibram tanto quanto antes, evocando risos, lágrimas e reflexões. Para Ana Maria Moretzsohn, a mágica não está apenas no que se conta, mas em como se conta — nas entrelinhas que deixam espaço para o público mergulhar e interpretar. Mais do que uma reprise, o sucesso de “Tieta” é um lembrete de que as grandes narrativas não envelhecem: elas apenas encontram novos olhares para encantá-las.