Claudia Di Moura e o racismo: ‘Agora, que não dá mais para açoitar corpos, muitos ainda atingem nossa integridade’


A atriz estará na série “Sob Pressão”, a partir do próximo dia 16 e retorna às novelas em “Cara e Coragem”, trama das 19 horas, da Globo. A história ainda nem começou a ser gravada e já a preenche de alegria. “Marta, minha personagem, é uma mulher que está no topo da pirâmide, uma empresária poderosa que tem voz de comando. Isso é bacana. É a gente provando que isso é possível. A maior expectativa em relação a essa volta a uma novela é em torno desse papel que tira a mulher negra do lugar cristalizado no audiovisual que é o da subserviente e a coloca em posição de comando. Agora, estão dando um pouco de atenção as nossas narrativas, apesar do tema não ser esse. Não se fala de raça. Mas é importante. Mostra que é possível nós pretos termos grandes papéis na televisão. Personagens negros podem sim ser complexos e fundamentais em uma novela, espetáculo de teatro ou no cinema”, pontua

Claudia Di Moura retorna à TV em participação no Sob Pressão e, em 2022, na novela Cara e Coragem (Foto: Priscila Jammal)

Claudia Di Moura retorna à TV em participação no Sob Pressão e, em 2022, na novela Cara e Coragem (Foto: Priscila Jammal)

* Por Carlos Lima Costa

Em 2022, quatro anos depois de conquistar o Brasil interpretando Zefa, em Segundo Sol, sua estreia nas novelas, após mais de três décadas de carreira, a atriz Claudia Di Moura vai retornar a um folhetim, em Cara e Coragem, trama das sete, desempenhando papel com forte conotação emblemática para ela. “Eu saio daquela personagem que representava uma parcela negligenciada, que é a mulher preta, sempre na base da pirâmide, para a Marta, uma mulher que está no topo da pirâmide, empresária poderosa que tem voz de comando. É a gente provando que isso é possível. A maior expectativa em relação a essa volta a uma novela é em torno desse papel que tira a mulher negra do lugar cristalizado no audiovisual que é o da subserviente e a coloca em posição de comando. Isso é uma inspiração para mim e creio que também para 56% da população preta desse país, porque é comum ver o preto, em geral, segurando a bandeja. Agora, estão dando um pouco de atenção as nossas narrativas, apesar do tema não ser esse”, enfatiza.

E prossegue em sua elucubração sobre a trama cujas preparações começam em dezembro e que tem estreia prevista para maio. “A Marta é rica, dona de uma siderúrgica, uma mulher que ascendeu. Não se fala de raça. Mas é importante, porque mostra que é possível nós, pretos, termos grandes papéis na televisão. Personagens negros podem sim ser complexos e fundamentais em uma novela, espetáculo de teatro ou no cinema”, reflete.

Claudia, então, relata as mudanças que ocorreram em sua vida com a fama, após se destacar em Segundo Sol. “Basicamente, mudou a visibilidade e, agora, tenho contrato longo na Rede Globo. Passei a ser figura pública e não sabia que era tão difícil, porque você já não tem mais controle sobre tudo que é a sua vida, precisa pensar duas, três vezes até para avançar nas discussões, se posicionar, afinal você passa a ser um formador de opinião nacional. Na época, tive que sair da minha cidade, mas na sequência veio a pandemia, em que a gente se viu obrigada a se reinventar, ficar em casa, ver um outro tipo de linguagem surgindo”, explica.

Em tempos de polarização e de tantos preconceitos, ela, então, se posiciona e analisa as dificuldades que permearam a construção de sua trajetória enquanto mulher preta diante de sociedade brasileira patriarcal. “O racismo não é uma questão nossa. A gente sabe que esse debate tem que ser do branco. É o branco que precisa desconstruir essa estrutura, é papel dele. Nem gosto de falar desse tema, porque nem o conheço. Eu sofro esse tema. Minha terra natal, Salvador, a cidade mais preta fora da África, foi colonizada por homens perversos e essa suposta inferioridade que eles viam nas pessoas pretas continua lá. Mas quando me entendi artista, comecei a ver que precisava acreditar no que estava falando e criar a minha estrutura. Por isso, além de atriz, sou produtora da maioria dos trabalhos que fiz. É uma carga violenta em cima de uma mulher preta, nordestina, em uma cidade onde as políticas públicas estão muito aquém. Então, sempre foi muito violento estar em cena, porque tinha que fazer esses vários papéis”, explica em longo desabafo.

"Personagens negros podem sim ser complexos e fundamentais em uma novela, espetáculo de teatro ou no cinema”, ressalta Claudia (Foto: Matheus Boaventura)

“Personagens negros podem sim ser complexos e fundamentais em uma novela, espetáculo de teatro ou no cinema”, ressalta Claudia (Foto: Matheus Boaventura)

Em sua trajetória artística, Claudia, de 56 anos, traz como referências nomes como Léa Garcia, Ruth de Souza (1921-2019), Zezé Motta e Viola Davis. “São tantas que abriram as portas e pavimentaram esse chão para eu estar aqui. O que clamamos não é só a representatividade, é a proporcionalidade. Tem que ser 50, 50%. Por exemplo, Cara e Coragem, é uma novela feminina. Também fico feliz, porque a gente esquece um pouco o patriarcado. Não que ele tenha desaparecido, mas está aí uma luz no fim do túnel. É uma novela escrita por mulher (Cláudia Souto), dirigida por mulher (Natália Grimberg) e com protagonistas fortes mulheres (Paolla Oliveira…)”, explica ela, que também reverencia nomes das novas gerações de artistas como Jéssica Ellen e Taís Araújo, que viverá filha de sua personagem na trama das 7.

Entre um trabalho e outro, para ter também uma estabilidade financeira que o teatro não lhe dava, ela inaugurou a confecção Claudia Moura Rouparia, há 17 anos. “Fiz isso também para poder lapidar a minha arte, para poder dizer não quando tinha que ser dito, então, sempre lutei com vistas para o futuro. Eu somava meus esforços e dizia ‘preciso ter plano A, B e C. O ‘não’ bem dito é o ‘sim’ que está vindo lá na frente”, observa ela, estilista do empreendimento.

Viúva há dez anos, ela é mãe de Iasmin e Ana Vitória. “Ainda não tenho netos de sangue e fico babando pelos netos dos outros. Agora, Fabíula (Nascimento) está grávida de gêmeos, são meus netos emprestados, porque ela e o Emílio (Dantas) formam um casal que eu amo. E sei que eles me adotaram como mãe e avó dos meninos. Agora, tenho uma filha casada. Casou e veio com combo, tenho um casal de netos gêmeos, de quatro anos. Somos mulheres superlativas, grandes, transbordamos amor, afetos, palpites. Minhas filhas são o recheio do meu bolo”, frisa.

"O que clamamos não é só a representatividade, é a proporcionalidade", explica Claudia (Foto: Matheus Boaventura)

“O que clamamos não é só a representatividade, é a proporcionalidade”, explica Claudia (Foto: Matheus Boaventura)

Em tempos de pandemia, ela e as filhas se resguardaram e não tiveram Covid. Claudia continua morando na Bahia. Normalmente se dividia entre Porto Seguro e Salvador, onde não tem ido desde o início do isolamento social. E refez a vida afetiva. “Em algumas sociedades a mulher viúva é asilada. Existe aquela ideia da preservação do luto, aquela cobrança. Eu sou filha de militar, mas refiz sim. Conheci outras pessoas, outros amores. Eu sou uma mulher par, não sou uma mulher ímpar. Eu gosto de andar de dois, de ter sempre um pé para tocar, gosto que meu pé encoste no pé de alguém quando vou dormir e quando acordo. Esse pezinho tá na ativa viu. Tenho um namorado jovem que é da minha área e está tudo certo”, conta, às gargalhadas, sem mais detalhes.

Antes da novela, no próximo dia 16, Claudia vai surgir na telinha fazendo participação como dona Maria, na atual temporada da série Sob Pressão. “Dona Maria traduz a essência do povo brasileiro, o equilíbrio entre a dor e a batalha. Ela é uma matrona, uma explosão de esperança, a mãe preta do Brasil, porque é aquela mãe que se despede dos seus filhos tragados pela violência, pelo sistema, pela brutalidade da polícia que dizima a juventude negra. Ela tem esse repositório infinito de fé e de esperança, então, acaba contaminando a todos no hospital e vai contaminar com certeza o espectador com a história dessa avó que vê o único neto ser baleado para salvar a vida dela. Isso é muito próximo do nosso povo, da comunidade periférica”, adianta.

Claudia ficou realizada com esse trabalho. “O Sob Pressão trata de temas tão relevantes para a sociedade. Fiquei feliz quando fui convidada, porque é um universo tão realista e artisticamente interessante. Acho que, hoje, é o produto mais potente da Globo. Estou muito feliz, porque sempre assisti e tive vontade de estar fazendo esse trabalho, principalmente com esse elenco majestoso e pelo amor que eu tenho pelo Andrucha (Waddington), um maestro brilhante. E chegando lá, fui superacolhida. Aquilo lá é uma família amorosa. Eu trago dessa jornada uma das experiências mais importantes da minha carreira, vai estar estampada em mim por toda a minha vida. O Julio Andrade, que é uma aula que nunca acaba, me acolheu de uma forma muito absurda e a química com a dona Maria é um negócio”, ressalta ela, que no momento, está no Maranhão rodando o filme, Arcanos, protagonizado por Lilia Cabral.

"Eu sou uma mulher par, não sou ímpar. Eu gosto de ter sempre um pé para o meu pé encostar quando vou dormir e quando acordo. Esse pezinho tá na ativa viu. Tenho um namorado jovem", conta Claudia (Foto: Priscila Jammal)

“Eu sou uma mulher par, não sou ímpar. Eu gosto de ter sempre um pé para o meu pé encostar quando vou dormir e quando acordo. Esse pezinho tá na ativa viu. Tenho um namorado jovem”, conta Claudia (Foto: Priscila Jammal)

“Ela é generosa, incrível, tem uma potência absurda. Interpretamos irmãs de sangue. Não é uma adoção. Mostramos que biologicamente é possível. Ninguém conta essas histórias, porque isso não normatizou ainda. Na minha família, por exemplo, tenho irmãs louras, sobrinhas dos olhos azuis. O primeiro casamento de minha mãe foi com um italiano, então, biologicamente é possível. As pessoas só não querem pegar nas suas canetas para falar sobre isso, porque nesse momento você está dando protagonismo ao preto. É estrutural. O filme é um resgate, fala de amor, esperança e sobretudo de família”, diz ela, que nesse período longe da televisão, foi escalada para uma novela e para uma série, mas os dois projetos acabaram não sendo realizados por conta da pandemia. Com mais de vinte filmes no currículo, ela aguarda para este ano ainda a estreia do longa-metragem Terapia da Vingança.

Claudia ainda não consegue imaginar um dia que o racismo seja um fato do passado. “É porque essa reestruturação é política. Para se ter uma reconstrução de uma nova sociedade que atenda a todos é preciso que o branco abra a mão dos seus privilégios. E privilégio e poder ninguém quer perder. Eu acredito em um avanço, mas isso vai demorar. Ver o branco usar sua caneta a favor de uma causa é um florescer de esperança muito grande, mas não posso confiar que isso vai acontecer”, analisa.

E fala sobre Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, investigado pelo Ministério Público do Trabalho por denúncias de assédio moral na instituição, conforme relatado pelo programa Fantástico. “É um capitão do mato, um homem que aprendeu a reproduzir e tem necessidade da legitimação do branco para poder ser aceito nos lugares que ele acha que precisa ocupar. É muito mais complicado do que se imagina. Não dá para acreditar que isso vai mudar para os meus netos. Agora, chega de mostrar somente as nossas dores. A gente sofreu muito, mas a gente lutou também. A gente morria com dignidade, resistindo. Está na hora de contar a história que a escola nunca contou. Por que não falam do Zumbi dos Palmares (1655-1695), da Dandara dos Palmares, de tantos outros líderes que morreram resistindo. Está sempre tendo que ter um grilhão no pescoço, um açoite e quando não açoitam mais os nossos corpos, que agora não dá mais, tentam açoitar a nossa integridade e dignidade”, aponta.