Clara Choveaux relembra experiência em Cannes e papel de transexual


Filha de mãe mineira e pai francês, Clara Choveaux conquistou a fama ao protagonizar o longa-metragem ‘’Tiresia’’, do cineasta Bertrand Bonello, na pele de um transexual brasileiro, personagem que lhe rendeu indicação ao festival de Cannes em 2003.

Transexual. Dançarina de ballet. Ninfomaníaca Punk. Esses são alguns personagens que fazem parte da longa carreira nacional e internacional da atriz franco-brasileira Clara Choveaux, mostrando a sua versatilidade artística. Diferentes entre si, todos os trabalhos encontram um ponto em comum na vida da atriz: o desafio, que para ela é a melhor parte da profissão. ‘’Eu procuro desafios, sempre. Tudo o que eu não sei fazer me interessa, porque o lugar comum é o lugar de acomodação, então quando realmente me escapa do entendimento eu fico bem excitada’’, conta.

Clara Choveaux em cena como Maria. (Foto: Felipe Fittipaldi)

Depois de ter interpretado a dançarina Maria na ficção científica de Pedro Sodré, ‘’Rio Mumbai’’, lançado em maio deste ano, Clara mergulhou de cabeça na história da russa Hannah no filme ‘’Luz nos Trópicos’’, que deve ser lançado daqui a um ano, marcando mais uma parceria com a cineasta Paula Gaitán. Na trama, que conta a trajetória da expedição russa Langsdorff pelas terras de Mato Grosso por meio dos diários de bordo, Choveaux vive a esposa do chefe da trupe Georg Heirich von Langsdorff. Para ser Hannah, a atriz teve de ter aulas de natação e superar a barreira da língua ao aprender russo. No entanto, todos os esforços valeram a pena quando Clara se viu no meio da natureza brasileira do Pantanal. ‘’Contracenei com jacarés, por exemplo. Foi super bacana e radical no sentido de estar bem exposta a natureza, que é bem forte e impactante. É um santuário ecológico mesmo’’, diz a atriz que tem mais três projetos a caminho este ano.

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Apesar de se enxergar como artista de cinema, Clara Choveaux está sempre expandindo os seus horizontes. Em 2016, a atriz participou da série da HBO ‘’Psi’’, que aborda a vida pessoal e profissional de um psicólogo, como a personagem Clementine, seu segundo trabalho com a atriz Claudia Ohana.‘’Foi uma experiência muito boa porque fazer série é uma coisa entre cinema e televisão. É muito volume de trabalho como a televisão, mas tem a qualidade artística e estética do cinema. Fiquei bem feliz’’, conta. E ela não quer parar por aí. Como todo artista, Clara reconhece a força das telenovelas e, claro, se surgisse um personagem desafiador ela não pensaria duas vezes. ‘’Eu tenho muito respeito por atores de novela, eu acho que é um veículo maravilhoso no Brasil porque alcança muita gente. Tenho muito respeito e admiração por essa plataforma, tenho muita vontade. Uma hora acontece, só tem que ter uma sincronia astral das coisas ornarem’’, brinca.

Clara protagoniza “Um Dia Vermelho Na Vida de Uma Dama de Alma Vermelha”, primeiro filme dirigido pela Claudia Ohana e a primeira parceria entre as duas atrizes.

Já no teatro, apesar de estar apenas há oito anos, Clara Choveaux se responsabiliza por produzir o por muitas vezes esquecido teatro de rua. Integrante do Instituto do Ator, localizado no centro do Rio de Janeiro, Clara realiza a peça ‘’Demônios’’, inspirada no livro do sueco Doistoievski, que trata sobre niilismo, em comemoração dos 10 anos do instituto, e participa do grupo de estudo do diretor polonês Jerzy Grotowski toda sexta-feira, no qual atores de diferentes idades se reúnem para realizar leituras de textos gratuitas e coordenadas por Celina Sodré, que trabalhou com a atriz durante a produção de ‘’Rio Mumbai’’. Para Choveaux, esse tipo de iniciativa é necessária para que a cultura continue se fortalecendo. ‘’Temos que colocar luz nisso porque é algo acessível. Nós fazemos peças praticamente de graça, é só querer ir e chegar. É muito bacana ter esses espaços assim no Brasil e no Rio, principalmente, porque podemos ter acesso à cultura, reflexão e ao questionamento de forma gratuita. Por isso temos que continuar fazendo’’, afirma a atriz que admite sentir mais adrenalina no teatro do no cinema.

Na visão da atriz, os obstáculos presentes no desenvolvimento da cultura no país representam a castração da liberdade artística, aumentando ainda mais a necessidade de se criar projetos como os do Instituto do Ator, capazes de fazer os indivíduos pensarem. ‘’A arte sempre vai ser uma forma de resistência. Na arte, nós temos outros pontos de vista. Talvez, ela não mude necessariamente, mas ela pode impactar, pode dar a oportunidade de julgar mais a fim de ficar mais atento às questões. A cultura é fundamental e temos que lutar para ter liberdade nos projetos. Todas essas polêmicas têm sido castradoras’’, desabafa. Com mais de 18 produções para o cinema francês, Clara Choveaux, que se mudou para a França em 2000 para ficar com o pai já falecido, acredita que o Brasil pode aprender muito com a forma como a qual os franceses consomem e produzem arte, principalmente a cinematográfica. ‘’O brasileiro vê futebol e o francês vê filme. As pessoas lá comentam de filme na padaria, sabe? Eles consomem muito o seu próprio cinema, isso é uma coisa que eu acho que falta no Brasil. Nós precisamos consumir o nosso cinema para podermos produzir mais. Enquanto eles produzem 356 longas por ano, acho que produzimos apenas 50. Isso é muito pouco, nós temos muita história para contar’’, diz.

Embora honre o seu lado brasileiro, tanto pessoal quanto profissional, foi na França que a carreira de Clara deslanchou. Após um jantar com o cineasta Bertrand Bonello, a atriz foi convidada para estrelar o longa-metragem ‘’Tiresia’’, no qual interpretou um transexual brasileiro que ao ser sequestrado sofre com a ausência de hormônios. Lançado em 2003, o filme é um dos seus maiores trabalhos e ofereceu a repercussão necessária para ela se firmar na indústria cinematográfica e teatro, onde interpretou Tiradentes em 2015, até os dias de hoje. ‘’Ele me deu fôlego para muito tempo de carreira. É muito bom quando isso acontece, porque fazer cinema autoral é muito mais díficil do que o comercial. Eu estou nesse lugar de filme independente, que são obras incompreendidas no seu tempo, que só serão entendidas mais para frente quando estamos velhinhas caquéticas’’, afirma. Como Tiresia, a atriz precisou lidar com o choque de se ver vestida de homem tanto fisicamente quanto emocionalmente. ‘’O meu corpo virou uma escultura no filme. Eu tive que usar barba, uma prótese peniana no meu corpo que me impedia de fazer xixi por horas, por exemplo. Se ver transformada desse jeito exige muita generosidade e humildade porque não é fácil e eu tive a impressão de que eu peguei uma corda e saltei do precipício sem paraquedas’’, conta a atriz que, apesar de ter tido inclusive pesadelos por conta da transformação que sofreu, ficou bem contente com o trabalho que devido a relevância do tema é discutido até hoje.

Um dos pontos levantados com relação à temática na arte é da representatividade da comunidade trans. Ainda contemporâneo, o filme trouxe à tona a realidade que muitos transexuais enfrentam e isso o tornou revolucionário no seu tempo. Contudo, caso fosse lançado hoje, a temática se tornaria segundo plano e o que estaria realmente em voga seria: por quê não é um ator transexual contando essa história? Apesar de compartilhar do pensamento da liberdade artística do ator, a atriz compreende que, considerando o contexto atual – no qual o Brasil lidera a lista dos países que mais assassinam transexuais -, ela talvez não seria chamada para interpretar uma das suas maiores personagens. E tudo bem. ‘’Eu acho que não seria convidada aqui no Brasil. Na Europa, eu acho que teria outro contexto porque a questão está mais bem resolvida, mas aqui temos muita coisa para conquistar ainda, existe muitos lugares de fricção. Eu sou da opinião de que ator pode fazer tudo. Afinal, na época de Shakespeare, os homens faziam de tudo, então por quê no século 20 não poderia ser assim também? Mas entendo que há questões delicadas a serem resolvidas e se elas existem é porque são necessárias’’, declara.

No entanto, em 2003 os tempos eram outros e o sucesso de críticas foi tanto que Clara Choveaux conquistou um lugar na história de um dos maiores festivais de cinema do mundo, o de Cannes, onde concorreu ao lado da australiana Nicole Kidman na categoria de Melhor Atriz em 2003 pelo personagem. Para ela, mesmo quinze anos depois, a experiência beira o surreal. ‘’Cannes foi uma experiência bem legal, é um festival muito importante no mundo e ele oferece uma visibilidade gigantesca. É surreal e bem curioso ficar ao lado de uma atriz que vem de Hollywood, que tem acesso a um cinema que é tão potente no mundo. Eu fiquei bem prosa’’, brinca. Apesar de ter perdido o título para a canadense Marie-Joséé Croze, Clara só saiu no lucro. Além da visibilidade, a atriz aproveitou para tietar Kidman do jeito que deu. ‘’Nós tivemos o contato de estar no mesmo hotel, que era o Carlton. Estivemos juntas em alguns jantares, mas nossas conversas eram superficiais, uma coisa mais de ‘’oi’’, relembra. Mas isso não foi suficiente para Clara perder as esperanças de uma parceria entre as duas: ‘’Vamos jogar pro universo essa ideia’’.

Conduzidas pela presidente do júri, Cate Blanchett, 82 mulheres protestaram na escadaria do Festival de Cannes este ano. (Foto: Reprodução)

Como uma artista que não só esteve presente em Cannes como também indicada, mesmo que tenha sido há 15 anos, Clara entende a importância do festival não só no âmbito cinematográfico como também social. Com a repercussão da luta das mulheres de Hollywood com relação às denúncias de abuso sexual e disparidade salarial, Cannes transformou-se neste ano em uma plataforma de denúncia. Com Cate Blanchett como presidente do júri, que comandou o protesto realizado por 82 atrizes nas escadarias do evento, o festival se comprometeu em promover a igualdade de gênero nas suas categorias, refletindo uma transformação necessária junto ao atual contexto social feminista. ‘’Eu acho ela uma atriz incrível e fico muito feliz que esse espaço esteja sendo alcançado nesse momento que estamos meio contemporânea uma da outra. Lá, é o lugar para protestar pelo fato de ser uma vitrine para o mundo’’, afirma. Fã assumida de Blanchett, Clara também enxerga no trabalho da australiana a chance de expansão da arte do cinema independente, do qual faz parte desde o início da carreira. ‘’Ela é muito engajada, é uma atriz que pensa. Ela tem um lugar no cinema que é muito interessante porque ela é ativa, está fomentando cultura em várias instâncias. Ela tem o teatro dela na Austrália, ela faz cinema de autor, ela não fica só no mainstream, sabe? Ela trabalha com a vanguarda, com um tipo de cinema que abre espaço para novas reflexões, que é um tipo de percurso do qual eu completamente sou fã e concordo’’, completa.

Com 43 anos, Clara Choveaux sempre soube que seu caminho seria pelo mundo das artes. Após se formar em ballet clássico, Clara investiu na carreira de atriz e foi estudar teatro em São Paulo, que não terminou pois decidiu ir morar na França para estar próxima ao pai. Como a maioria dos artistas, alcançar a fama não foi fácil e nesse meio tempo até o encontro com o cineasta Bonello, a atriz trabalhou como babá, garçonete e até mesmo porteira. Enquanto para alguns a experiência possa ser tudo menos prazerosa, para ela foi a chance de amadurecer e pesquisar para se tornar uma artista melhor. ‘’Não foi difícil, é algo que faz parte da vida. Foi um trabalho que possibilita a gente fazer o que ama. A arte não é um ofício para qualquer um e quando a gente resiste é porque ama mesmo. Todas essas experiências foram ótimas porque para o ator tudo pode ser útil o tempo inteiro, porque nós trabalhamos com esse material que é o humano. Então, eu estou estudando o tempo inteiro’’, diz.  Filha de uma mineira com um francês, Clara nasceu no Paraguai e logo depois se mudou para Manaus. Assim como os outros trabalhos, essa mistura cultura foi essencial para a sua formação artística. ‘’Quanto mais a gente viaja, mais ampliamos o globo ocular e menos julgamos. Foi fundamental eu ter ter morado em tantos outros países, ter visto outras cidades e modos de viver.  Foi muito rico e de sacola em sacola eu fui rodando o mundo’’, brinca.

Hoje, 15 anos depois do seu primeiro grande trabalho, Clara Choveaux se firmou na cidade maravilhosa desde 2008 a fim de continuar sendo o que sempre quis ser: artista. Mais madura, Clara quer continuar estudando ao lado de pessoas que admira, como a amiga e diretora Celina Sodré, e lutando cada vez mais para construir um catálogo cultural no Brasil enquanto transforma-se como mulher: ‘’Eu era uma meninota, agora eu sou uma mulher e daqui a pouco eu serei um mulherão!’’