Cineasta Carol Benjamin remexe nas feridas que a ditadura brasileira deixou


Documentário “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, disponível de graça no GloboPlay até a próxima quinta, dia 19 de novembro, mostra como a ditadura marcou três gerações de uma mesma família

*Por Simone Gondim

Em uma época na qual não faltam defensores do revisionismo histórico, o documentário “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, da diretora Carol Benjamin, é ainda mais necessário. Partindo das dores e dos silêncios de sua própria família, ela remexe nas feridas que a ditadura militar deixou. Filha de César Benjamin, ativista preso ilegalmente nos anos 1970, neta de Iramaya Benjamin, fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia – CBA, e sobrinha de Cid Benjamin, que também foi preso, torturado e exilado por razões políticas, Carol se baseia nas cartas da avó e nos escritos do pai para tentar preencher as lacunas de um dos períodos mais tristes da história do país.

A jornada começa em Estocolmo, na Suécia, cidade na qual César e Cid moraram durante o exílio. Ao visitar Marianne Eyre, integrante da Anistia Internacional que acabou se tornando amiga de Iramaya, Carol conhece o lado mais frágil de sua avó – em diversas cartas enviadas para a sueca, além da mãe que batalhou para ver o filho mais novo fora da cadeia, está a mulher que foi mudando e se redescobrindo com o passar dos anos. Com a diretora, o público vai juntando os pedaços dessa história, com uma das falas de Marianne ecoando na cabeça: “Não somos um só. Somos muitos”.

Iramaya discursa em cena do documentário “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” (Foto: Ricardo Azoury/Divulgação)

Infelizmente, as duas figuras centrais de “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” não dão depoimentos exclusivos para o filme. Iramaya Benjamin, que sempre conversou com os netos sobre a época da ditadura, morreu em 2012. Já César, chamado pela filha de “caixa preta”, uma vez que preferiu trancar o passado dentro de si, não quis falar. Restou à diretora usar imagens de arquivo, com destaque para vídeos da avó em diferentes ocasiões e as emocionantes palavras do pai na Comissão da Verdade, bem como raras imagens dele assim que chegou a Estocolmo – um dos momentos mais belos do documentário é o reencontro de Cid e César no aeroporto sueco.

Outra lacuna que permanece é o papel do avô de Carol, o coronel do Exército Ney Benjamin, nesse período difícil da vida dos filhos. Mencionado discretamente algumas vezes, sabemos que ele acompanhou o filho caçula na viagem a Estocolmo, mas se recusou a ir a Salvador com a mulher quando os dois souberam que César havia sido preso na Bahia. Nas cartas a Marianne, Iramaya fala da crise no casamento. E Carol diz que se surpreendeu com os relatos dos tios Cid e Leo sobre o avô, mas não entra em detalhes. Só resta ao público a curiosidade e a sensação de que foi deixada uma ponta solta na história.

César Benjamin encontra o irmão Cid, a então cunhada Isolde Sommer e a sobrinha Ana ao chegar a Estocolmo (Foto: Divulgação)

Na parte visual, o documentário também tem uma falha: a diretora exagera no uso de imagens poéticas, como a das águas do mar e as que são, aparentemente, filmadas em 16mm, mostrando uma prisão no Brasil, em preto e branco, e a Estocolmo depois dos anos 2000, em cores. Como nem todas são acompanhadas da narração da própria cineasta, fica a impressão de que a ausência de palavras poderia remeter ao silêncio de muitos quando se fala no período da ditadura. Independentemente da intenção de Carol Benjamin, abusaram do recurso.

Ainda assim, “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” é um belo filme, que ajuda a não esquecer o que foi a ditadura. Mesmo que alguns insistam em negar ou minimizar a repressão, como faz um dos torturadores citados no documentário, não dá para apagar os rastros de sangue e morte deixados pelo golpe de 1964.

Até a próxima quinta-feira, 19 de novembro, “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” pode ser visto gratuitamente no serviço de streaming GloboPlay. O filme tem produção de Carol Benjamin, Leandra Leal e Rita Toledo, além de coprodução de João Moreira Salles, Eliane Ferreira, Maria Carlota Bruno e Pablo Iraola.

O longa-metragem conquistou a menção especial do júri na 32ª edição do IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o maior evento do mundo dedicado ao gênero, bem como a Menção Honrosa no Festival É Tudo Verdade 2020, o prêmio de Melhor Documentário no 8º Indian Cine Film Festival e o prêmio do público do Inffinito Film Festival, nos Estados Unidos.