Sublime é a melhor definição para “Cinderela” (Cinderella, 2015), a live action da Disney que atualiza o clássico desenho animado de 1950, com estreia prevista no Brasil para quinta-feira (26/3). E, antes que algum possível detrator, metido a frequentar cinematecas e a endeusar somente restritas produções iranianas torça o nariz e se apresse em adjetivar o longa-metragem de Kenneth Branagh com palavras nada carinhosas, é preciso antes de mais nada compreender que se trata de um conto de fadas que segue à risca um daqueles mitos que não precisam ser decodificados por corolários de cinéfilos esnobes, mas que existe para ser degustado enquanto superprodução para as massas. E nesse aspecto o filme cumpre plenamente sua função, e muito bem, diga-se de passagem.
Branagh faz pelos contos de fadas aquilo que seus antecessores não conseguiram em “Alice no País da Maravilhas” (Alice in Wonderland, de Tim Burton, 2010) e “Malévola” (Maleficent, de Robert Stromberg, 2014), todos do mesmo estúdio. Enquanto estes dois cineastas procuraram imprimir suas digitais naquilo que não se mexe, subvertendo enredos e até impregnando vilões como a bruxa de “A Bela Adormecida” com dúbia personalidade a fim de lhe adicionar insuspeita humanidade – pecado mortal em se tratando do maniqueísmo explícito, mas educativo, dos fairy tales –, o diretor britânico vai ao pé da letra sem medo de ser literal. E é aí que está o seu maior acerto.
Em “Cinderela”, ele recria esse gênero mantendo o mesmo olhar livre de preconceitos que usou para realizar um filme de super-herói, “Thor” (idem, Marvel Studios, 2011), respeitando sua essência e oferecendo ao público exatamente o menu-degustação que se espera de uma produção desse tipo. E assim ele consegue até ser autoral, mesmo a serviço de quem o contratou.
E, se em “Thor” o diretor consegue adicionar tintas shakespearianas no subtexto da trama dos deuses nórdicos – pintando e bordando justo aí, onde tem domínio pleno –, agora ele percebe com sagacidade todas as possíveis nuances que fizeram da história escrita por Charles Perrault em 1697 (baseada num conto italiano chamado “La gatta cenerentola” , na tradução “A gata borralheira”) uma das mais populares fábulas de todos os tempos, que ganhou versão dos Irmãos Grimm mais de cem anos depois, quando a literatura romântica recém-surgida reavivou o interesse por este estilo de narrativa. É compreendendo aquilo de que fala cronologicamente “Cinderela” e situando a ação no Século XIX (como no desenho original da Disney) que Branagh dá um passo adiante e se permite ser criador, conferindo leitura que poderia até ser óbvia, se visível sob tantas camadas da sedutora fantasia que o enredo encerra, do mito da plebeia que se torna princesinha.
Dessa forma, ele resgata o que os contos de fada têm de melhor, imprimindo aquele ar perverso contido nesse tipo de história, sem precisar abdicar daquela água com açúcar que foi acrescentada posteriormente por Walt Disney. O resultado é um só: o longa é capaz de agradar tanto aos fãs xiítas do cartoon quanto a nova geração de espectadores que espera encontrar em carne e osso a supremacia visual que define a assinatura do estúdio, devidamente repaginada pelos mais modernos efeitos especiais através de um genuíno espetáculo da era digital, tudo amplificado pelo ritmo arrebatador das realizações contemporâneas, repletas de frenéticos movimentos de câmera e edição ágil.
Trailer oficial (Divulgação)
Além desse profundo respeito a todas as simbologias inseridas nessa narrativa enquanto sincero produto da cultura pop, a grande sacação de Branagh é revelar ao público que por trás do mito da Cinderela existe a consagração dos conceitos iluministas de filósofos como Voltaire, Rousseau e Montesquieu, gente que sedimentou as bases que levariam a monarquia absolutista europeia a nocaute.
Ao refogar “Cinderela” no tempero sociológico que ajudou a consolidá-la como avassalador sucesso nestes últimos trezentos e poucos anos, Branagh dá o tiro certeiro que precisava ser dado nesta releitura. De que forma? Bem, lá no fundo, quando se torna princesa a filha de burguês transformada em serviçal pela sua madrasta, o enredo vai de encontro àqueles anseios pós-barrocos, com a protagonista representando o suprassumo daquilo que os iluministas se encarregaram de difundir por décadas. Ou seja, ao transpor os degraus da rígida divisão de classes sociais rumo à realeza, a mocinha é essencialmente uma figura que representa em uma obra de cunho popular as ideias encerradas na tríade liberté-fraternité-egalité.
Traduzindo: não importa se você é ou não bem nascida, a você é permitido galgar os patamares da projeção social, mesmo não tendo nascido em berço esplêndido. Este pensamento, sem dúvida, é um avanço que só foi possível de acontecer a partir das profundas transformações que irromperam no século XVIII, culminando na Queda da Bastilha.
Branagh deixa isso claro na oposição feita ao casal de mocinhos, tanto pela Madrasta Má, para quem a posse de uma propriedade já não significa mais proteção contra a penúria, quanto na presença de um ardiloso grão-duque (Stellan Skargard) preocupado em promover um casamento de conveniência entre o príncipe e uma nobre de outro reino, a fim de tirar proveito de alianças que reforcem o poderio político daquele lugar.
É nessa hora que o cineasta arrasa mais uma vez, quando contextualiza essa nova relação entre amor e matrimônio – uma novidade trazida pelas brisas do movimento romântico que surgiu no alvorecer do século XIX. Sim, hoje isso pode até parecer banal, mas unir o mais poderoso dos sentimentos à instituição do casamento talvez tenha sido uma das mais revolucionárias consequências da Revolução Francesa, e é muito possivelmente por isso também que “Cinderela” se constituiu como mito de forma avassaladora.
Artesão da melhor qualidade, o diretor se cercou de um dos mais talentosos designers de produção do cinema atual, Dante Ferretti, para conceber o visual do longa-metragem, e tudo o que se imagina das duas cenas mais emblemáticas do enredo – o baile e aquilo que acontece após as doze badaladas, com a carruagem se revertendo à abóbora – é alcançado com espetaculosidade. Pura magia de Fada Madrinha, justo aquilo que o público quer encontrar.
No mais a mais, Branagh ainda escalou Sandy Powell – que junto com Colleen Atwood e Milena Canonero compõe a santíssima trindade das costume designers mulheres na cinematografia atual – para desenhar o figurino. Outra flecha no alvo. O diretor extrai dela o mesmo que conseguiu fazer com Alexandra Byrne em “Thor”, vertendo para a realidade tridimensional algo que antes só seria possível em nanquim e aquarela.
Para fechar, o elenco manda bem e é impossível tirar o olhar de Lily James (a Lady Rose McClare de “Downton Abbey”), impecável no papel-título a ponto de fazer frente à Cate Blanchett, deliciosamente perversa como deveria ser sua madrasta. Completando o casting, Richard Madden tem o physique du rôle perfeito para um príncipe Disney, assim como dão conta do recado Sophie McShera (outro talento saído de “Downton Abbey”, a assistente de cozinha Daisy, agora na pele da divertida Drisela) e Holliday Grainger (Anastasia). E, como contrapontos do estilo de vida campesino ao cosmopolitismo que avança pelo século XIX, Ben Chaplin e Hailey Atwell contribuem positivamente como os pais de Ella.
Para completar, o diretor ainda lança mão do seu ator-talismã, Derek Jacobi, para interpretar o rei. Todos funcionam. Pena que Helena Bonham Carter exagere nos trejeitos da sua Fada Madrinha. Acostumada a participar da produções de Tim Burton, ela esquece que agora está no maravilhoso mundo da Disney e passa do ponto na estranheza, quando deveria explorar o porto seguro que a personagem representa.
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