Christian Malheiros, de “Sintonia” da Netflix, questiona racismo estrutural e o lugar do negro nos favela-movies


Indicado a um prêmio internacional, Christian Malheiros fala sobre como foi a sua experiência em concorrer à mesma premiação que Joaquin Phoenix no Oscar dos filmes Independentes, em 2018. Ator também aborda sobre outro projeto no qual fora indicado, o Platino Awards, por “Sete Prisioneiros”, que trata a questão da escravidão contemporânea. Descendente de uma família de migrantes nordestinos, o ator reconhece que seus familiares passaram por uma experiência semelhante face à falta de empregos formais. Malheiros celebra o fato de ter saído da Zona Noroeste da cidade de Santos, região menos abastada da cidade portuária, e haver conquistado indicações e nomeações importantes na arte

*por Vítor Antunes

Christian Malheiros, nascido em Santos, litoral paulista, é cria de um projeto social que levou teatro pra quebrada. Co-protagonista da quarta temporada da série “Sintonia”, na qual vive um traficante, Christian questiona a recorrência na escalação de pessoas pretas para papéis deste tipo, ainda que reconheça a importância daquele que interpreta.

Além de “Sintonia”, Malheiros integra o elenco de “Biônicos”, filme que dá protagonismo às pessoas que convivem com a deficiência física. O longa, uma ficção científica, transforma-os em super-heróis quando lhes são implantadas próteses superpoderosas. De acordo com o entendimento de Christian, é importante “falarmos sobre pessoas que são colocadas à margem da sociedade e conseguirmos colocar luz sobre elas”. Outro projeto do ator, “Sete Prisioneiros”, trata sobre as formas de trabalho análogas à escravidão. Ante a dureza de flagrar-se diante da exploração do homem pelo homem, o artista percebeu que sua família, de migrantes nordestinos, também fora explorada por subempregos.

Christian Malheiros. Ator foi indicado a prêmios por trabalhos no streaming e representa a potência da favela (Foto: Helena Wolfenson)

RETIRANDO O PENSAMENTO DA ENTRADA DE SERVIÇO

Neste ano, “Sintonia” terá uma nova temporada, a quarta. Segundo o ator, este bloco da série foi gravado no fim do ano passado. “O público está esperando pelo retorno do projeto. A série tem boa recepção e uma legião de fãs que não a perdem por nada. Há quem tenha começado a vê-la agora e que são muito receptivas ao produto. A cada temporada conquistamos um público novo, que não é daquela realidade e tá aí o grande potencial desse trabalho, pois a cada vez ele rompe mais bolhas e está presente em várias classes sociais”.

Em “Sintonia”, Christian vive um traficante. Tem sido problematizado junto à comunidade preta o fato de os negros estarem fazendo apenas os “favela-movies” ou papéis como bandidos. Para o ator, esta escalação frequente é “uma realidade. A gente acaba sendo condicionado a papéis deste tipo. É uma luta que nós do movimento preto e artistas afro temos que levantar e que é apenas a ponta do iceberg. Se direcionarmos a lente para trás, nos bastidores, a gente vai se dar conta de que quem está pensando esse produto não é preto. Não há negros em algum cargo na TV ou streaming. Há poucas pessoas que enxergam esse dado. O nosso acesso a isso é muito restrito. As pessoas que escrevem ou produzem não entendem nada sobre as nossas histórias e as nossas narrativas e acabam colocando a gente no mesmo lugar”, afirma.

Temos que quebrar esses paradigmas e chegar nos espaços com outros projetos. Eu quero ter a liberdade em saber quem está nos projetos de audiovisual e saber quem está fazendo e desenvolvendo e, não sendo pretas, poder destacar que a abordagem é errada ou rasa – Christian Malheiros

E ele prossegue: “Eu sempre falo com as pessoas próximas de que a gente tem que se incomodar, falar, levantar a tese sim. Ainda que na série eu interprete um bandido, Nando não é estereotipado, sanguinário que sai matando geral. Ele tem medo, é um ser humano, tem fragilidades”, pondera.

Em “Sintonia”, Christian Malheiros vive Nando, um rapaz que se envolvem com o narcotráfico (Foto: Helena Yoshioka/Netflix)

Há, na série, atores como Hugo Leonardo e Leonardo Campos, que trabalham na montagem a fim de ter a pena reduzida. Ambos compõem o grupo de teatro “Do Lado de Cá“, da Penitenciária Desembargador Adriano Marreyto, em Guarulhos (SP), que objetiva ressocializar os homens detidos. Quanto ao fato de haver pretos sendo recorrentemente escalados para os favela-movies, Christian diz que “O racismo estrutural entende que só podemos fazer aquilo que vivemos. Isso cabe uma discussão ampla. Eu, por exemplo, sou de Santos, uma cidade que é mais branca, conservadora e que tem, também, um teatro amador forte na periferia. Trata-se do mesmo preconceito que fez com que as pessoas confundam Zezé Motta com a Zezeh Barbosa ou a Beyoncé com a Viola Davis“. Partindo desta premissa, o ator rompe a perspectiva do ator-preto-que-faz-teatro-na-favela? “Creio que essa transição da favela para o mundo chega a mim com uma consciência mais clara hoje. Nunca enxerguei o meu papel social no teatro e no cinema. Eu não me via. Depois é que eu fui entender e me dedicar também a isso, mas eu acho que essa ruptura surge quando eu decido ir para São Paulo e me dou conta de que estou conquistando um lugar legal, ganhando dinheiro com isso”.

Penso que é possível romper esse status sem precisar sair do lugar onde a pessoa mora. Ter, necessariamente, que sair é muito cruel. Você perde o vínculo com suas raízes. Meu sonho é o de que alguém consiga fazer arte na sua cidade, esgotar esse trabalho na sua região e leva-lo para outras capitais e estados – Christian Malheiros

Em razão do seu bom desempenho na série, houve quem achasse que Christian Malheiros estava em regime semi-aberto: “racismo estrutural” (Foto: Helena Wolfenson)

ARTE NEGRA EM CONTRA ATAQUE

Além de “Sintonia”, sucesso da Netflix, Christian Malheiros está em outra produção da plataforma, Biônicos”. O filme parte de uma premissa arrojada: Falar sobre acessibilidade e tecnologia. “O longa trata sobre um mundo onde o tecnológico está tão avançado que os atletas paraolímpicos são a sensação do momento e que transformam-se em super-heróis por conta de uma prótese biônica. É um projeto que vai inaugurar uma nova fase do cinema brasileiro. Agora estou recebendo novos convites de trabalho e é algo que me deixa muito feliz, a diversidade nas histórias, de cada projeto que foge do eixo Rio-São Paulo. Aparecem outras cidades, outras realidades como o interior paulista, o Nordeste, o Sul do Brasil, ou um tesmpo distópico. São projetos diversificados e boas histórias”. O longa de Afonso Poyart, ainda sem previsão de estreia, conta com o próprio Malheiros, além de Bruno Gagliasso e Danton Mello.

O ator está bastante animado com “Biônicos” : “Na minha opinião, o cinema, quer ele o independente ou o comercial, tem uma função social e a gente não pode abandonar isso. Temos o poder de trazer a público questões que a gente não consegue debater no dia a dia, questões sociais que, vez por outra são esquecidas. O cinema age como ferramenta de transformação, de reflexão, o que é muito importante. No audiovisual, há uma sede de se retratar o Brasil e olho isso de uma forma positiva, esse reerguimento pós-bolsonarista, tanto no cinema, especialmente no independente, como na arte no Brasil.

Christian Malheiros. Ator estará em filme que dá protagonismo a atletas paralímpicos (Foto: Helena Wolfenson)

O RACISMO MASCARADO PELA FALSA ABOLIÇÃO

Logo em um dos seus primeiros papéis relevantes no cinema, em Sócrates, Christian Malheiros foi indicado a um prêmio internacional, o “Independent Spirit“, um dos mais importantes no cinema independente.  Concorreu com Joaquin Phoenix e Ethan Hawke, sendo este último o vencedor da premiação. O ator diz que sequer conhecia tal honraria. “Eu nem conhecia esse prêmio. Quando fui indicado, mandaram-me uma matéria e havia uma foto minha. Achei que era sobre o filme e não sobre mim. Só depois é que fui me dar conta desta indicação. Guardo o fato de haver sido nomeado a esse prêmio com carinho, já que disputei com pessoas que foram indicadas ao Oscar. Foi uma grata surpresa”, diz. Ele também foi indicado, e venceu, o Prêmio APCA de Melhor Ator pelo mesmo longa.

Uma outra indicação recente a prêmio foi o Platino Awards, por conta de “Sete prisioneiros”. Neste filme, dirigido por Alexandre Moratto, Malheiros divide a cena com Rodrigo Santoro. O longa discute os trabalhos análogos à escravidão, tão presentes e discutidos contemporaneamente. Para este contexto, o ator nomeia como sendo um “escravidão em regime gourmet”. Para ele, “Tocar nesse assunto é algo complicado, ouvir as histórias é algo difícil, muito dolorido. Trata-se de uma economia que movimenta mais de 40 milhões de reais por ano e há conivência de vários segmentos da sociedade – desde o político ao consumidor”.

O embasamento para este personagem “é uma marca que nunca vai sair de mim. Tive muito tempo para preparação deste papel, e especialmente, a oportunidade de defende-lo a todo custo e leva-lo às últimas consequências”, diz. Segundo destaca, “há um projeto de silenciamento na escravidão que faz com que, modernamente, haja pessoas que não acreditem não haver nada semelhante. É algo invisibilizado pela sociedade. Tem gente que acredita não existir nada semelhante no Brasil, quando é profundamente existente em lugares como São Paulo, no Brás, onde há gente que trabalha em condições subumanas para receber valores módicos para uma roupa a preços populares. Não há metrópole que não tenha isso. É algo que remonta a um projeto enraizado, que nasce da usurpação, da aniquilação dos povos originários que trazem um novo povo para habitar o país escraviza-los na terra de destino.”. Isso reitera a exploração iniciada em um Brasil de 1500″.

Christian Malheiros em “7 Prisioneiros”. Trabalhos análogos à escravidão (Foto: Divulgação/Netflix)

Geralmente esses trabalhos análogos à escravidão, especialmente em São Paulo, acabam sendo destinados a pessoas desassistidas, especialmente latinas – venezuelanos bolivianos e peruanos – assim como a nordestinos em êxodo. Pessoas como os pais de Christian. “Depois que eu comecei a ter consciência e a sentir que aquilo é subumano, degradante e aquilo que eu lhes ouvia falar era errado em tal ponto, isso trouxe luz para esse assunto. Meus pais viviam isso e, para alertar os meus e a mim sobre esse sentimento que existia, mas eu não o entendia. Só compreendi depois de haver feito esse trabalho”. Segundo o TST – Tribunal superior do Trabalho – nos últimos cinco anos foram 10.482 processos voltados à questão do trabalho análogo à escravidão no Brasil. e os números subiram 41% entre os anos de 2020 e 2021. Ainda segundo este Instituto, desde 1995, pelo menos 57 mil trabalhadores foram resgatados no Brasil sob estas condições.

No momento em que o carnaval se avizinha, oportunamente, todas as frases que abrem cada trecho desta reportagem fazem referência ao samba enredo da Beija-Flor de Nilópolis, vice-campeão dos desfiles de 2022. Segundo a agremiação nilopolitana cantou no ano passado, para entender o Brasil “era necessário empretecer o pensamento”. A África, tradicionalmente, dá voz às mulheres. Trata-se de uma tradição matriarcal. Quando perguntado sobre com quem gostaria de contracenar em razão de admirar, Christian não titubeou e disse: “Minha mãe”. “Não existe ninguém que eu admire mais que ela. Eu gosto de muitas pessoas do trabalho, mas admiração, especialmente eu só tenho a ela, à história dela. No geral, um artista só é um bom artista quando é uma grande pessoa e ela fez de tudo para que eu fosse essa boa pessoa. Não existe um artista sem humanidade e é isso que ela me ensinou. Aprendo muito com as pessoas, mas ela me ensinou o fundamental: humanidade. Por isso queria que ela estivesse em cena comigo, para falar sobre esse sentimento que vai além de uma habilidade de falar o texto, mas pela intimidade que há no silêncio do olhar”, poetiza.

Maria Célia, a mãe de Chistian Malheiros, acompanhando-o numa das suas gravações (Foto: Reprodução/Instagram

Em face de haver experienciado essa vivência difícil e haver passado por dificuldades e reveses para dar conta da família, Dona Maria Célia compõe boa parte do ator. Metade do amor que ele possui, foi-lhe dado por ela. Que salvou sua alma da vida e fez sorrir o seu eu. Esse rapaz, fruta madura que foi colhida no pé, recebeu prêmios do mundo, e da mãe, o encanto. Além da certeza que, ser artista é, antes de tudo, um ato de afeto.