*Por Vítor Antunes
Na série “Jogo de Corrupção”, da Amazon Prime, Caroline Abras faz uma personagem importante: a alemã Lena Dassler, uma das herdeiras da Adidas, que em um ambiente profundamente machista e corrompido, consegue se estabelecer junto dos homens. Além deste projeto, a paulista estará em “Vale dos Esquecidos”, série da HBO MAX, que entrará nas plataformas da gigante americana hoje, dia 25, e contará com 10 episódios de 45 minutos que serão divulgados semanalmente. A série, um dos primeiros projetos da empresa no gênero thriller, também marca o investimento em um segmento raro em produções do audiovisual brasileiro, mais costumeiramente voltado às comédias e dramas. É o que ratifica a protagonista da série: “A gente nota que é algo novo na casa, ainda que já tenhamos visto projetos de terror, horror e suspense no audiovisual, mas nas plataformas é uma novidade. Nos acostumamos com o hiper-realismo nas séries, tantos nos dramas como em projetos de humor, mas no suspense tudo é novidade”.
FUTEBOL, CORRUPÇÃO E MACHISMO
“Jogo de Corrupção” tem previsão de estreia para dezembro, pouco tempo depois do torneio internacional. A série argentina foi gravada no Uruguai ainda durante a pandemia de Covid “seguindo todos os protocolos sanitários”, conforme destacado pela atriz. O país campeão da Copa de 1950 foi escolhido em razão de ser o único lugar que estava aberto para as filmagens naquele momento. Carol conta-nos que o grande diferencial da série é o fato de ela relatar paara o grande público “o universo de corrupção na FIFA e as relações de poder existentes lá”. A série, que não objetiva ser um documentário, tem um tom “bem pontiagudo”, segundo Carol.
Ela apresenta sua personagem, Lena Dassler, como “a herdeira da Adidas. Dentro desse universo masculino do futebol, tenta despontar e ter algum nível de parceria com João Havelange (Albano Jerônimo). A partir de algum momento ela percebe que pode usar o irmão para conseguir estas façanhas comerciais e que através dele pode chegar ao Havelange e fazer dele seu parceiro”. A segunda temporada da série, que terá na atriz um dos seus personagens principais, retratará os acordos pouco convencionais presentes na Federação Internacional de Futebol durante a gestão do brasileiro João Havelange (1916-2016).
A entrada de Dassler neste universo, que é essencialmente masculino, sinaliza sua personalidade disruptiva, numa fase em que ainda não havia o protagonismo feminino no business, especialmente no esportivo: “Lena entra em um universo masculinizado sem no entanto se masculinizar. Mostra-se com muita naturalidade o fato de ser uma mulher trabalhando com futebol e negócios num mundo essencialmente composto por homens”.
E prossegue: “Para nós, mulheres é fundamental que a gente seja vista nas telas, ocupando cargos e posições de poder. É preciso que se naturalize esse olhar. A Lena, bem como algumas outras personagens que interpreto, são mulheres à frente do seu tempo, corajosas, embativas, questionadoras e que graças a isso de destacam na realidade que lhes foi imposta e se apropriam disso”.
‘VALE DOS ESQUECIDOS’, UM FOLK-HORROR BRASILEIRO
O gênero suspense e horror, que não é muito tradicional em produções brasileiras, terá um de seus primeiros grandes projetos no streaming. Trata-se de uma série brasileira “Vale dos Esquecidos”, produzida pela HBO no Brasil. Inclusive, alguns veículos especializados classificam a série como “folk horror”, um segmento do gênero terror, onde as histórias de passam tem como pano de fundo cultos bizarros. Uma revolução não apenas para a gigante do segmento mas para a atriz que interpreta a sua protagonista, Ana. Carol diz que este trabalho foi “muito interessante, porque o gênero faz muita diferença na forma em que a gente vai construir essa narrativa, sobre como os atores vão atuar, como essa câmera vai funcionar, quais movimentos serão utilizados ou como se dará a direção de arte. Trata-se de uma outra linguagem”, disse.
A especificidade do gênero foi um desafio para a atriz: “O realismo deixa a gente num lugar menos flat de camadas, a contrário deste trabalho, que me fez aprofundar a composição. Em “Vale dos Esquecidos” são muitos atores e personagens e para cada um deles a Ana se mostra de uma maneira”. Trata-se de uma “personagem de várias facetas”, sob a ótica de sua intérprete. Segundo ela, a mulher “apresenta-se como uma guia que vai levar jovens para a Serra do Mar, porém, depois de os haver conquistado apresenta-se como uma caçadora e leva-os para o Vale Serena”, local onde há o tal culto misterioso. Carol Abras segue dizendo que “neste lugar, Ana tem outra temperatura, outra qualidade. E isso vai influenciar definitivamente na relação dela com os outros personagens, já que ela se apresentou de uma maneira diferente para eles”, antecipa.
A série foi gravada no distrito de Paranapiacaba, em Santo André, ABC paulista. A locação não poderia ser mais adequada, pois que o distrito é densamente ocupado por uma névoa. De modo que o nome provisório da série chegou a ser esse, inclusive “A Névoa”. O fato de a série exigir uma locação especial remonta às origens profissionais de Abras, que diz preferir este tipo de produção audiovisual “de locação, de guerrilha”. É o que relembra: “Eu comecei no cinema de guerrilha com o José Eduardo Belmonte quando ele ainda era um iniciante. O cinema de guerrilha é um cinema vivo e ativo no qual eu fui forjada; onde jogamos, improvisamos e temos, necessariamente que articular com tudo o que está em volta. Eu só fui entrar em estúdio muito tempo depois. Este gênero de cinema é uma estrutura que abarcava tudo e todos de maneira orgânica. Depois ,fui abrindo para outra possibilidades de expressão e multiplicidade.
O cinema representa a nossa identidade, resgata e produz a nossa memória para as gerações futuras entenderem esse recorte de tempo – Caroline Abras
AGORA É QUE SÃO ELAS
Todas as personagens de destaque da atriz, em “O Mecanismo”, em “Jogo de Corrupção” e em “Vale dos Esquecidos” são mulheres fortes. Cada uma à sua maneira. E esse protagonismo feminino é valorizado pela atriz. Ela diz ser um momento importante este, onde “a cultura e a arte acompanham o que existe na sociedade. Se há um ruído social isso vai estar presente na arte de uma certa maneira. Tudo vai passar por ali. Nesse momento em que as mulheres exercem seu protagonismo na sociedade isso está impresso na tela, no teatro e no audiovisual”.
A atrista destaca também uma mudança de posicionamento social das mulheres numa sociedade patriarcal: “É algo sintomático não há mais tempo pra o patriarcado e para a mulher num lugar submisso. A gente está movimentando essa estrutura. Nós, enquanto mulheres múltiplas, não podemos admitir os retrocessos e os reforços às falas antigas sobre o espaço que a mulher deve ocupar. Há um movimento pela diversidade que não admite barreira possível. É bom ver candidaturas femininas, de pessoas LGBTQIAPN+ e pessoas que são consideradas minorias e que estão conquistando lugares ainda que de maneira sutil. Esses movimentos são estruturais e isso deve seguir acontecendo, motivados principalmente pelo viés da educação”.
Soube de um encontro de meninas de 17 a 20 anos que se disponibilizaram em entender qual o lugar delas nesse universo. Empoderando-as a gente consegue alcançar lugares que nos foram negados historicamente. Dando-lhes coragem e rebeldia a gente faz com que elas não se calem diante do que nos é imposto – Caroline Abras
Carol Abras trabalhou em “Paraíso“, de 2009, além de “Tempos Modernos“, esquecida trama de 2010. Em “Avenida Brasil”, escandaloso sucesso de 2012, Carol Abras viveu Begônia, irmã de Nina (Débora Falabella). Dependente de drogas e uma mulher confusa, Begônia exigiu da atriz um estudo profundo sobre a vida de dependentes químicos, e estimulou a atriz a procurar grupos de apoio como os Narcóticos Anônimos. “Eu sempre procuro começar um projeto da maneira mais pura possível, tentando entender esse personagem, o que o move, de que maneira ele pode caber no meu corpo”. A complexidade de Begônia trouxe o desafio “de entender a beleza de se estudar a mente humana e comportamento. É bonito, interessante e profundo”.
A atriz ressalta a importância de ver mulheres em papéis protagonistas e/ou relevantes nas artes: “Eu acho que essas personagens que fiz e gosto, acho importante que elas sejam trazidas às telas e que possam encorajar as garotas a escutar a própria rebeldia. Nós, mulheres, fomos ensinadas a “não-ser”. A não deixar revelar a nossa força, a nossa intuição. Mas a gente não pode temer a nossa força e rebeldia. Não podemos deixar de saber dizer não, quando necessário, ou a demonstrar a nossa insatisfação, por exemplo. Temos que ser guardiãs das nossas histórias e agentes ativas das nossas narrativas. E estas pessoas que interpreto dizem muito isso”.
Uma caçadora rebelde, a empresária responsável de uma marca que vai fazer business com os maiores nomes da FIFA, bem como uma delegada da Polícia Federal. São mulheres afirmativas numa sociedade patriarcalista. Afinal, o senso comum define – numa afirmativa consolidada por Simone de Beauvoir (1908-1986) – que “Homem” é entendido como ser humano, ao passo que mulher apenas como “fêmea”. Quando a mulher se comporta como “ser humano” dizem que “imita o homem”. Quando na verdade o que elas querem é ser o que são. Em vez do desafio no qual esta frase costuma ser aplicada, eis aí uma constatação. O mundo é delas. Em todos os espaços possíveis, agora é que são elas.
No cinema, ela estrelou ainda longas premiados, como “Se nada mais der certo” (2008), de José Eduardo Belmonte, pelo qual recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio e também nos internacionais Los Angeles Brazilian Film Festival e Toronto Film Festival. Antes disso, Caroline já acumulava prêmios de melhor atriz do Festival de Gramado por suas atuações nos curtas- metragens “Alguma coisa assim” (2006) e o “Perto de qualquer lugar” (2007). Em 2017, interpretou Cristina no longa “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Gamarano Barbosa, que estreou na Semaine de la Critique do Festival de Cannes. Por sua atuação, foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Com mais de 15 filmes em seu currículo, Caroline ainda protagonizou produções como “Alguma Coisa Assim”, de Mariana Bastos e Esmir Filho, e “Rodantes”, de Leandro HBL.
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