*Por Ana Clara Xavier
A coletiva de impressa do filme “A Glória e a Graça” começou com um suspiro de alívio de todos os participantes do longa. Depois de nove anos trabalhando no projeto, o elenco, enfim, vai poder apresentar este trabalho pronto, já que o filme, que estreia no dia 30 de março, chega cheio de expectativas. A narrativa gira em torno de uma família moderna de classe média que possui muitos problemas. A personagem de Sandra Corveloni, Graça, descobre que tem um aneurisma no cérebro. Por isso, resolve reencontrar seu irmão, que não via há mais de quinze anos, e pedir para cuidar de seus dois filhos. Luiz Carlos agora se chama Glória, intrepratada por Carolina Ferraz, uma transexual bem-sucedida dona de um restaurante em Santa Teresa. Carolina, aliás, se emociona ao relembrar tudo que passou até chegar aqui. “Entre Rio de Janeiro e São Paulo, eu colhi 62 depoimentos de transexuais. Teve uma hora que eram tantas informações que eu tive de parar, inclusive por que o filme estava se mostrando difícil em ser realizado. Cheguei a ir a campo duas noites em São Paulo montada de travesti. Naqueles dias, eu percebi que é uma vida bastante dura. Ainda há muita invisibilidade”, conta.
A travesti Majorie Marchi, que inclusive fez uma participação especial no filme como garçonete, ajudou muito a produção no momento de construir a Glória. “Nos indicava livros ou pessoas que deveríamos conhecer. Falecida em 2016, Marjorie era uma pessoa muito bem resolvida. Ela sabia quem era. Além disso, possuía várias características paradoxais dentro de si mesma. Era forte e sensível. E eu percebi que outros travestis também eram assim. Ela era quase como uma heroína pós-moderna”, conta o roteirista Mikael Albuquerque.
Em seu quarto filme como diretor, Flávio Tambellini explicou que foi muito difícil levantar recursos porque a palavra ‘travesti’ afastava investidores. “Até há cinco, seis anos, a palavra travesti era meio proibida. Não se falava abertamente como acontece hoje em dia. Eu nunca tive problema com nenhuma instituição religiosa, por exemplo. Se tiver, vai ser agora com o filme lançado. Mas tivemos uma longa jornada de captação e isso aconteceu por preconceito. No longa, há um personagem transexual, mas a trama principal são as relações da família moderna. Mas a simples presença de tal elemento já criava um problema na hora de conseguir recursos”, explica Flávio, antes de ser complementado por Mikael. “Nunca quis colocar o preconceito no centro da trama. Queria mostrar que ser travesti é algo tão normal que não devemos falar apenas disso. Claro que há um momento que mostramos as dificuldades de ser transexual, até mesmo para ser real. Porque, infelizmente, é isso que acontece”, comenta Mikael.
Para ajudar no processo de construção do personagem, Carolina Ferraz usou uma prótese bucal e teve aulas para engrossar a voz. Ela conta que queria fugir da caricatura que assistimos no cinema, dando voz a uma alma e a um ser humano. “Muitos travestis estão às margens da sociedade e acabam se prostituindo. Mas no filme, a Glória é de classe média, tem um restaurante”, explica o diretor Flávio. Durante a caracterização, foi preciso transformar Carolina em um homem para que depois voltasse a ser mulher. “Eu acho que, como atriz, esse é o meu melhor trabalho. E acho que, como diretor, é o mais completo do Flávio”, afirma Carolina.
Para Mikael, a personagem transexual foi criado com pedaços de cada pessoa que contribuiu com o filme. “Eu acho que tinha algo meu na Glória. Minha irmã tem dois filhos também. Pensei em o que aconteceria numa situação como esta do filme. Eu cresci cercado de mulheres fortes. Minha mãe e minha avó. Houve muita colaboração da Carolina Ferraz e do Flávio. Essa personagem é uma espécie de Frankenstein”, brinca o roteirista.
O filme foi rodado em menos de quatro semanas e teve os direitos autorais do roteiro comprados por Carolina. A produção, de acordo com os envolvidos, tentou escalar um transexual para o papel principal, mas acabou não encontrando e, assim, Carolina acabou ganhando o papel principal. “É bom que ela atue como Glória para dar uma força ao personagem. Não é qualquer atriz que se arrisca assim”, comenta o diretor Flávio.
Se o personagem principal ficou com uma mulher cis, “A Glória e a Graça” é a estreia da transexual Carol Marra nas telonas. Para a atriz, a atuação de Carolina não deslegitima o movimento LGBT. “Eu adoraria poder fazer um papel de um homem, de uma mulher ou de uma árvore. Mas sempre cai o de uma trans. Eu adoraria viver histórias diferentes da minha, emprestar o meu corpo para uma outra pessoa”, explica. Carolina, logo ali ao lado, destacou a importância e o talento de Carol durante a produção. “Não entendo por que a Carol não pode interpretar uma mocinha na novela das oito. Existem tantos homossexuais atuando como galãs. O dia que houver uma equiparidade vai existir a liberdade artística. Os artistas não devem ter sexo, devem estar livres para interpretar qualquer coisa. Eu como mulher cis, por exemplo, tenho uma atitude física muito masculina. Sento de perna aberta, coço a bunda. Não tenho muito problema com isso. A Carol é uma lady. Eu não sou um quinto da mulher que a Carol é. Ela é linda, os cabelos estão sempre arrumados. Eu preciso aprender com ela”, defende Carolina Ferraz.
Ao abordar o preconceito, a personagem de Sandra, Graça, representa a família do transexual ao relutar em abraçar a nova vida de Glória. “O filme mostra a redenção da Graça. Ela tenta entender o mundo à volta dela. Assim como a irmã”, conta Mikael. A atriz conta que mesmo sendo um filme dramático, a felicidade em estar realizando o longa reinava no set. “Para mim não é só mais um filme. É o resultado de uma caminhada, de uma história de amizade. E de desejo de contar essa trama. Acho que esse foi o melhor set que eu tive a oportunidade de trabalhar. A gente se olhava e era só flechadas de amor”, conta Sandra, emocionada.
Sandra se inspirou na sua irmã mais velha no momento da criação do personagem. “Não perdi meus pais quando pequena. Mas eles trabalhavam muito, então a minha irmã ajudou a me criar. Em uma época da minha vida, achava até que era minha mãe. Ela era sete anos mais velha que eu. Então, eu entendi o que era ser irmã mais velha, quando fiz o filme”, explica.
O filme começa com o diagnóstico de um aneurisma. Para a produção chegar a esta enfermidade não foi fácil. “Eu pesquisei muito sobre doenças terminais. A Graça mudou de quadro clínico várias vezes. Já teve câncer e outros problemas até decidirmos pelo aneurisma. Não queria uma doença que fosse degenerativa. Queria algo que ela pudesse estar lúcida o filme todo, porque a trama já possuía um debate tão profundo e completo que eu não queria perder esse foco”, explica o roteirista. “Mikael me deixava doida. Foi muita pesquisa. E a cada momento minha personagem morria por alguma coisa diferente”, brinca Sandra.
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