*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes
Todo mundo sabe que a “pessoa” Woody Allen está à procura do sentido da vida há exatamente 79 anos (ele nasceu em 1935). Enquanto não acha, o “diretor” Woody Allen continua nos brindando com uma sucessão de filmes cada vez mais divertidos e – paradoxalmente – mais amargos também. Após tê-lo visto pessoalmente entrando para a coletiva de imprensa no Palácio dos Festivais, aqui em Cannes, nesta sexta-feira à tarde com um passinho curto e a postura recurva, para depois ser sabatinado com as perguntas de sempre, pode-se até arriscar o vaticínio de que a sua aproximação com a velhice e morte ainda vai render outros filmes e cada vez mais embebidos pela filosofia pessimista do dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), por exemplo.
Neste sentido, a personagem do professor Abe Lucas, filósofo niilista e taciturno (Joaquin Phoenix) que vai dar um curso de – pasmem! – “estratégias éticas” numa pequena universidade do interior, representa aquela parte do próprio Woody Allen que está há décadas lendo e relendo as propostas dos grandes pensadores que ainda possam produzir alguma faísca que justifique – mesmo que miseravelmente – as nossas existências. Aliás, como professor de “estratégias”, Abe Lucas, antes de chegar ao ficcional Braylin College, já havia tentado de tudo para se manter motivado a viver: atuar como voluntário em situações de tragédia humana extrema, como as da guerra do Iraque ou a New Orleans pós-furacão Katrina, muita bebida e drogas, sexo livre com alunas ou inebriar-se com a vaidade intelectual trazida por livros publicados.
Mas nada disso adiantou. Bonitão excêntrico e melancólico, Lucas logo provoca certo furor entre o ridículo staff da universidade e as alunas. Dessa legião de fãs, o roteiro de Allen faz emergir duas figuras que – simbolicamente – opõem-se sob o ponto de vista “ético”. De um lado, a predadora e desfrutável professora de química Rita (Parker Posey, magnífica) que seduz o desanimado professor com a sutileza de uma “Mae West cortejando Cary Grant”, como comparou o crítico Scott Foundas do Variety, ou num clima de patética frustração que lembra a Martha de Elizabeth Taylor em “Quem tem medo de Virginia Woolf?” (Who’s afraid of Virginia Woolf?, 1966), de acordo com Graham Fuller da revista Screen.
Do outro lado, encontramos a linda e inteligente aluna Jill (Emma Stone, radiante, queridinha mais recente do cineasta), uma sílfide romântica que acredita poder “salvar” o mestre através do “amor”. As cenas de cama seguidas de “discussões de relação” (as abomináveis DRs), típicas do universo de Woody Allen, são conduzidas pelo diretor com a sua ironia de costume, mas aqui perturbadas por uma presença extra: a nada disfarçada barriguinha de chope de Joaquin Phoenix que – afinal – acaba ajudando na caracterização do decadente, misantropo e frustrado personagem vivido pelo ator.
Confira abaixo o trailer oficial (Divulgação)
Nesta altura do filme, Woody Allen introduz uma reviravolta completa lançando mão de dois artifícios de roteiro tipicamente hitchcockianos: o acaso como fator decisivo na vida e o desmonte tenso e minucioso de um “crime perfeito”. Dentro da perigosa linha do “relativismo moral” da filosofia sartriana que poderia justificar os meios através dos fins, o professor Lucas encontra, finalmente, uma poderosa razão para voltar viver a vida e justificar a sua existência: assassinar sem deixar pistas um juiz cuja atuação indecorosa num caso de separação estaria separando uma pobre mãe dos seus filhos. Estes – assim como o próprio juiz – são completos estranhos ao professor. Mas conhecê-los ou não pouco importa, pois o “crime” visa eliminar o “mal” para se chegar ao “bem”, alinhando finalmente a teoria filosófica à vida cotidiana, como Abe Lucas sempre almejou.
Paramos por aqui a fim de não sermos taxados como spoilers, mas podemos revelar que Woody Allen leva a trama a um final habilmente urdido em que as idéias éticas, morais e filosóficas desenvolvidas no espaço do filme acabam por se defrontar na busca de uma síntese, dando-se ainda ao luxo de prestar uma inesperada homenagem ao final do clássico de “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), obra-prima suprema do mestre dos mestres, Alfred Hitchcock.
“Irrational man” tem sido comparado pela crítica especializada presente em Cannes a outras grandes obras de Woody Allen que lograram misturar com fineza e humor questões ético-morais que fundamentam a vida do homem contemporâneo com a eterna sedução do crime, como vimos em “Crimes e pecados” (Crimes and misdemeanors, 1989) ou “Ponto Final – March Point” (Match Point, 2005).
Mas sob o ponto de vista mercadológico, a Sony Pictures Classics – distribuidora mundial do filme – parece estar preocupada com o desempenho de “Irrational man” nas bilheterias, apesar da dupla estelar Phoenix-Stone preencher a tela com uma química perfeita e do retorno de Woody Allen ao formato CinemaScope que valoriza ainda mais a fotografia solar de Darius Khondji e o desenho de produção de Santo Loquasto, habitual colaborador do diretor.
Para a major norte-americana, a pegada mais cerebral do filme pode afastar das salas um público menos afeito ao jogo sofisticado de idéias, enterrando a pretensão de mais um êxito financeiro em série, depois das boas arrecadações obtidas por “Blue Jasmine” (Idem, 2013) e “Magia ao luar” (Magic in the moonlight, 2014).
Isso explica a presença de Woody Allen e Emma Stone no tapete vermelho de Cannes, pois “Irrational man” precisa da promoção e do boca-a-boca favoráveis que sempre encontrou neste território “amigo” formado por críticos e admiradores reunidos em Cannes. E no Brasil, onde o diretor é muito mais querido do que nos próprios Estados Unidos, já começou a torcida para que o último Woody Allen chegue logo às telas.
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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