*Por Brunna Condini
Reservada (tanto que não tem nem redes sociais) e focada no trabalho que a move, Camila Morgado falou com exclusividade ao site sobre o momento. No ar em ‘Renascer‘ como Dona Patroa (Iolanda), personagem repaginada no remake, ao trazer a temática da violência doméstica contra a mulher partindo do prisma religioso; e no teatro, em cartaz com ‘A Falecida‘, de Nelson Rodrigues (1912-1980), após 11 anos longe dos palcos, a atriz fala sobre o trabalho na trama de Bruno Luperi que vai na contramão dos tipos que costuma defender na teledramaturgia, e conta como vem compondo a dona de casa evangélica que sofre diversos abusos por parte do marido, Egídio (Vladimir Brichta). “Ser mulher em um país extremamente machista, faz eu não precisar de tanto “laboratório” assim para entender o universo da personagem. Todas as mulheres já viveram ou presenciaram alguma situação desconfortável. Eu como mulher branca e privilegiada já passei por várias, imagine uma mulher negra e periférica? Ou uma mulher trans?”, indaga.
Não conheço uma mulher que nunca tenha passado por uma situação constrangedora. Já tive que lidar com várias situações ruins, abusivas, agressivas. Ser mulher no Brasil ainda é perigoso. E como podemos ressignificar? Lutando todos os dias, resistindo todos os dias. Criando uma rede de apoio, de mulheres. Nos protegendo, nos escutando, denunciando e indo pra rua – Camila Morgado
Camila ressalta também a representatividade de Dona Patroa, bem como a de outro tipo que viveu há poucos anos no sucesso da Netflix ‘Bom dia, Verônica‘ (2020), Janete, outra dona de casa que sofria diversas violências de um marido psicopata. “Desde que fiz essa personagem na série, fui me dando conta da força que é quando uma pessoa se depara com uma história que esbarra na dela. Por exemplo, no próprio set de ‘Bom dia, Verônica‘, quando as cenas terminavam, mulheres da equipe vinham conversar comigo, dizendo que naquele momento estavam se dando conta de violências que já tinham passado ou ainda passavam. Mostrar a violência na ficção, em seus mais variados estados, também é uma forma de alerta, de abertura de diálogo e de concretização de uma realidade dentro da cabeça de quem vê. O que me chamou mais a atenção foi a quantidade de relatos que ouvi, e assim pude perceber como estamos muito longe de nos sentirmos seguras sendo mulheres no Brasil”.
Está previsto que sua personagem trilhe uma virada bacana, questionando a religião e se desvencilhando de uma relação tóxica. Como vê as religiões que muitas vezes aprisionam, excluem, através dos seus dogmas? “Acho que a fé, este sentimento, é uma das coisas mais lindas! É um grande mistério este negócio de fé e é bonito demais! Mas acredito que é necessário ter igualdade de gênero nas religiões. O masculino não pode se sobrepor ao feminino”, opina.
A Bíblia convoca todos os cristãos a se submeterem uns aos outros, dando exemplo de humildade e de disposição para servir. Uma leitura equivocada, onde coloca a mulher como um ser inferior, pode ser extremamente perigosa, pois é esta leitura que causa tanta violência doméstica – Camila Morgado
Pensando na vivência da personagem na TV, Camila diz ainda: “Amo meu trabalho justamente por isso: posso criar realidades diferentes, outros mundos, outras perspectivas, olhares. O Bruno Luperi me passou um livro para me inspirar na construção de Dona Patroa que se chama ‘O Grito de Eva’, da Marília de Camargo Cesar, e aborda exatamente essa violência doméstica em lares cristãos e o quanto isto pode ser nocivo e opressor. São muitos relatos de mulheres cristãs que sofreram abusos. Fala sobre o ensino de conceitos deturpados de submissão, tão entranhados nas comunidades de fé. O livro fala também em como é necessário rever e descolonizar as teologias, porque enfrentar as violências contra as mulheres requer mudanças dos homens, das mulheres, das crenças, da educação”.
Maturidade
Camilia completa 49 anos em 12 de abril. Deles, 32 dedicados à arte. O que diria para a Camila lá do início da carreira, que saiu de Petrópolis e foi morar no Rio de Janeiro e em São Paulo para estudar e fazer teatro, aos 17 anos? “Bom, eu diria: acho que você tem vocação para este negócio! (risos)”.
Ao refletir sobre como o passar dos anos vem tranformando-a como mulher e como artista, Camila elabora:
A maturidade é uma bênção! Ela traz muitas camadas novas, muitos contornos e umas ruguinhas lindas! O tempo traz sabedoria, paciência e compreensão de algumas coisas e aceitação para aquelas que você não compreende e são implacáveis. Mas o mais legal é saber que você não tem mais certeza de nada – Camila Morgado
Atualidade
No Teatro Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, até 7 de abril com ‘A Falecida‘, tragédia carioca de Nelson Rodrigues, a atriz comenta a força e atualidade do texto que completou 70 anos em 2023, em um país ainda regido pela falsa moralidade e hipocrisia. “Isso faz parte do mundo, e a forma como Nelson escrevia sobre isso trazia uma ironia muito certeira. Esta peça foi escrita em 1953 e veja como ainda se faz presente a atual. A questão do fundamentalismo religioso, a culpa, o machismo. Olha o que vivemos no governo passado? Olha aí o Nikolas Ferreira como presidente na comissão de Educação da Câmara. Olha a promiscuidade que estamos vendo entre a política, a polícia e a milícia no caso Marielle!
Definitivamente o Brasil não é para iniciantes”, lamenta.
A atriz conta que continuará em turnê com o espetáculo quando a trama das 21h acabar e responde o motivo pelo qual ficou tanto tempo sem fazer teatro. “Ao longo da minha carreira, fui emendando um trabalho no outro, sempre muito entregue a cada um deles, seja no teatro ou no audiovisual. Engraçado que só me dei conta de que fazia tanto tempo que não estava no palco quando começaram a falar “depois de 11 anos Camila volta aos palcos” (risos). Estou imensamente feliz com este retorno, mesmo, ainda mais fazendo Nelson Rodrigues, um dos nossos maiores dramaturgos, ao lado dessa equipe que eu amo, e com a direção do Sérgio Módena com quem sempre quis trabalhar. Irrecusável”.
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