*por Vítor Antunes
Aos 82 anos, Cacá Diegues lança o seu primeiro filme após o falecimento da filha, Flora. Além de questionar a finitude da vida ao trazer para o longa Maria Clara, a filha da jogadora de vôlei Isabel Salgado (1960-2022) cobrando a Deus (Antonio Fagundes) que o amor existente no mundo seja ainda mais forte que a dor da perda, o cineasta se propõe a discutir o Brasil, em “Deus ainda é Brasileiro“, que novamente traz em Antônio Fagundes seu protagonista. O filme proporciona uma nova ótica, igualmente bem-humorada, para o Brasil, os brasileiros e as “coisas nossas”. Segundo o realizador, seu filme é “uma comédia cívica”. E, ainda de acordo com suas falas, o longa não poderia ter o atual nome diante da reeleição de Bolsonaro. “Ainda bem o ex-presidente saiu. Eu não poderia manter esse título, ele não serviria. Dizer que Deus ainda é brasileiro com Bolsonaro no poder eu estaria gozando com a população do país”. De acordo com sua ótica, politicamente o filme representa de maneira adequada “o momento que estamos vivendo. O que vai acontecer agora ninguém sabe, mas eu espero que com essa nova gestão federal na presidência aconteçam coisas boas”.
Eu vou morrer num set de filmagem. Não consigo viver fora da mídia cinematográfica, então, para mim, se eu não fizer filme eu morro. Tenho que filmar e continuarei filmando. Tenho várias ideias na cabeça, mas só consigo descobri-las de fato quando começo a executar – Cacá Diegues
Diegues também faz revisitas às suas próprias obras e ao movimento do Cinema Novo, assim como afirma que, a contrário do nome otimista de seu longa lançado em 1989, “Dias Melhores Virão“, esses dias não vieram. O imortal da Academia Brasileira de Letras resgata o premiado “Bye Bye Brasil“, onde conheceu o país em suas raízes e não problematiza o fato de filmes serem lançados nas plataformas digitais antes das salas de cinema. E se diz constrangido por um fala antiga na qual dizia querer apresentar o Brasil a um estrangeiro a partir de Brasília e de um pujante país: “Quando comecei a fazer cinema o Brasil era uma esperança (…) e resolveria os problemas da humanidade. Isso infelizmente não aconteceu”.
DEUS É BRASILEIRO… AINDA!
Nos anos 1990, quando exibiu suas novelas rurais, a extinta TV Manchete adotou para si o slogan “O Brasil que o Brasil não conhece”. A frase poderia, com alguma tranquilidade, ser atribuída para Cacá Diegues. O cineasta bandeirante, que mergulha nas entranhas de um Brasil profundo, torna a levar para as telonas um país além do Corcovado e do Edifício Copan. Em “Deus Ainda é Brasileiro“, gravado em Alagoas, Cacá traz o Soberano de volta, interpretado por Antônio Fagundes, e inspirado no filme de 2003, que também tinha o Criador como protagonista. De acordo com Diegues, o novo longa não é um remake, mas um spin-off. Ele explica: “Há quem diga tratar-se de uma continuação de “Deus é Brasileiro”, mas não. Uso personagens, situações do primeiro filme, mas este é uma coisa inteiramente nova”.
O cineasta antecipa a premissa do projeto: “Deus desce à Terra para resolver os problemas da Humanidade e aqui estando se apaixona por uma moça. E como ele é a imagem e semelhança do Homem, não pode ficar com ela, em razão de sua santidade. Deus não pode escolher uma pessoa para amar em detrimento de todas as outras da Humanidade. Este é o conflito do longa”, explica, sobre os personagens baseados na obra de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).
Trata-se de comedia cívica, na qual falamos do Brasil de uma forma que todos identificam e sabem como é, mas narrado de uma maneira cômica, não se levando muito a sério, ainda que, no fundo, haja uma seriedade – Cacá Diegues
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Diante de um tema insólito, que dialoga com a humanidade de um personagem sobre-humano, Cacá, cuja filha, Flora (1986-2019) faleceu muito jovem, aos 34 anos, também questiona a finitude no longa através do falecimento da jogadora de vôlei Isabel Salgado (1960-2022), que fez a passagem na mesma época em que o filme era rodado. A coincidência acabou sendo inserida no projeto. “Lancei mão da filha da atleta, Maria Clara, para interpretar sua mãe. E ela diz para Deus (Antônio Fagundes) que é necessário aumentar o amor no mundo já que o aqui existente não nos impede de sofrer”. Ainda segundo o cineasta, o longa não tem o compromisso de ser naturalista. “É algo muito livre, sem nenhuma coisa que impeça a sua trajetória”.
O artista reporta que “O filme já acabou de ser rodado e estamos começando a fazer edição e a pós produção. Devemos ter uma cópia definitiva em agosto e a previsão de lançamento é para setembro, mais exatamente no dia 7”. A sua vontade é de que ele seja lançado justamente no feriado nacional. “Embora tenha gente que não se importe com a data de estreia, esta é uma coisa que acho relevante”. Ainda sobre a estreia, não problematiza que um filme vá primeiro ao streaming que às salas de cinema, ainda que prefira as estreias mais tradicionais. “O ideal é que estreie nas salas e depois vá para o streaming, mas se não der, não vejo um problema, isto não me diminui enquanto produtor ou diretor, não tem nada demais. Mas creio ser fundamental a relação do publico com o cinema”, pontua.
AQUI, ALI, EM QUALQUER LUGAR
Um dos filmes de Cacá, “Dias Melhores Verão“, estreou no Brasil pela tela da Globo, em fevereiro de 1990, ainda que já estivesse circulando pelos festivais do mundo. Uma transgressão no status quo cinematográfico naquele momento. Lançando mão do título do longa, protagonizado por Marília Pêra (1943-2015), perguntamos se esses dias melhores já vieram. Diegues diz que “Esse filme, no fundo, é uma sátira a esses dias melhores que virão, por que eles realmente não chegam”.
A fala do artista se coloca em contraponto a uma que dera na juventude, em 1960, quando estava perto de lançar seu primeiro curta, “Brasília” , justo no ano em que a capital federal foi inaugurada. Naquela ocasião, declarara à Revista Manchete que se fosse apresentar o Brasil a um estrangeiro, faria-o a partir do parque industrial brasileiro e de Brasília que eram “os marcos do progresso de então”. Hoje, o artista tergiversa sobre o que apresentaria do Brasil para uma pessoa que não o conhece, mas é taxativo sobre sua fala daquela época: ” Eu me sinto muito constrangido em ter dito isso por que não foi o que aconteceu. Quando eu comecei a fazer cinema, o Brasil era uma esperança, uma terceira possibilidade, já que havia uma polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética, o capitalismo versus o socialismo, o Ocidente contra o Oriente. Achávamos que nosso país resolveria os problemas da humanidade e pouco tempo depois tudo piorou um pouquinho”. A fala de Diegues se coaduna com a História nacional já que, pouco tempo depois, em 1964, foi deferida a Ditadura Militar.
Ainda que sob grande vigilância e Censura, foi naquela década que surgiu o Cinema Novo, vanguarda cinematográfica que tinha ambições “modestas”: Mudar a História do Brasil, a História do Cinema e a História do Planeta. Um dos poucos integrantes daquele movimento artístico a estar vivo, Diegues afirma, ainda que com ressalvas, possuir um pouco desse idealismo artístico. “Tenho sim, ainda que me desminta às vezes. Não podemos deixar de ter esse ideal. Eu fui fazer cinema por isso, direcionei a minha vida por isso e não posso abandonar essa crença no tempo passado”.
Se eu negar o que acredito minha vida fica sem sentido. Tenho que defender esse ideal ate morrer, mas é algo muito difícil esperar o Brasil melhorar, achar seu rumo. Antigamente era esse o nosso desejo e perspectiva de que o País fosse aquilo que criamos mas ele não aceitou, não deu certo – Cacá Diegues
Um diretor visionário que é, Cacá não romantiza os artistas do passado, achando-os melhores que os atuais. Pelo contrário. É tácito: “Eu acho que os atores atuais são muito melhores que os de antigamente. Os de agora, quando chegam para fazer cinema, já passaram por outras experiências, como a televisão e o teatro, têm outras vivências e, no filme eles são sempre melhores”. Ainda que aponte isto, o profissional ressalta o valor da experiência. “Fagundes, no filme, é um assombro. Parece que gravou ontem o filme de 2003 e está maravilhoso no atual. Creio que soma-se a ele o talento, a prática, já que trabalhou muito nesse tempo e de lá pra cá sua carreira cresceu ainda mais, tal como acontece com todos os atores brasileiros”.
Contemporaneamente tem sido discutida a questão Ianomâmi, falando-se, inclusive, tratar-se de uma tipificação de genocídio. Algo muito semelhante foi trazido à tona nos Anos 1970, quando da construção da Rodovia Transamazônica, que não previu estudos indigenistas e nem a pertinência do traçado da estrada, desconsiderando que ela passaria sobre terras indígenas. O desconhecimento sobre esse Brasil profundo e da questão autóctone parece repetir-se. E já era urgente contar, lá nos anos 1970, esse Brasil vetado/velado nas telas de cinema. Era isso que compunha o roteiro de “Bye Bye Brasil“, sucesso lançado no fim daquela década. Praquele road-movie havia script apenas para o que acontecia dentro do caminhão que transportava os personagens principais. O que acontecia às expensas do veículo, não. É o que seu diretor aponta: “Eu não conhecia o Brasil. Este é, sobretudo, um filme de descoberta sobre o comportamento dos índios, por exemplo. E tudo foi descoberto na hora, não foi algo inicialmente planejado não”.
Ao falar de “Bye Bye Brasil“, o diretor salienta que ele era muito ousado por ser um road-movie estrada onde havia, imprescindivelmente, uma estrada e um caminhão passando. Quando monta “O Grande Circo Místico“, baseado na obra de Jorge de Lima e nas músicas de Chico Buarque, afirmou que aquele longa era “Uma síntese de tudo o que eu fiz em cinema até hoje, é uma síntese do que eu penso do cinema”. O longa traz Flora Diegues, cantando a “Ciranda da Bailarina“, eternizando assim, a voz que fora silenciada. A(s) saudade (s) fizeram Cacá resgatar Deus em sua obra, tal como Fernando Pessoa conta no “Poema do menino Jesus”: Deitando-o em sua cama, de películas cinematográficas e contando-lhe histórias, pegou-lhe para brincar os sonhos de imortalidade.
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