Bukassa Kabengele, de ‘Mania de Você’, fala de apagamento africano na mídia e tensões no remake ‘Dona Beja’


Atualmente, ele interpreta Marcel em “Mania de Você”, novela das 21h da Globo, e destaca a relação humanizada de seu personagem com a filha, vivida por Gabz. Além disso, o ator celebra sua participação no aguardado remake de “Dona Beja” para o streaming. Ao ser perguntado sobre tensões nos bastidores, como os atrasos grandes nas gravações, incluindo capítulos reescritos a pedido da direção, além de atores que tinham outros projetos acertados na agenda acertados e a direção insistia que precisavam estender a permanência, Bukassa reconhece que “houve alguns problemas, mas nada que prejudicasse o projeto”. E contemporiza: “Todas as produções têm problemas. E eu, particularmente, não participei diretamente de nenhum desses acontecimentos”. O ator também aborda o racismo e os estereótipos sobre a África, enfatizando a complexidade do continente. Ele acredita que a história da negritude no Brasil foi apagada e precisa ser resgatada, reforçando a importância da luta antirracista. “Vivemos um país que sempre apagou as histórias no que se refere à negritude e isso, de forma geral, mesmo na contemporaneidade, não é estampado na mídia, não é estampado na TV brasileira”, dispara

*por Vítor Antunes

Um ano pleno de estreias para o ator Bukassa Kabengele. Ele está na novela “Mania de Você“, de João Emanoel Carneiro, como pai da protagonista Viola (Gabz). “Eu faço o personagem Marcel. Eu e Gabz já trabalhamos juntos e temos um grande entendimento sobre a questão da negritude, e a novela mostra uma relação humanizada de Marcel com a sua filha. Meu personagem é solar, é um angolano que mora no Brasil há muito tempo, um artista de rua, que se envolve nas tramas da filha de acordo com o desenvolvimento proposto pelo autor”. O ator também está no remake de “Dona Beja“, aguardada produção do canal Max e um novo investimento em teledramaturgia para o streaming. “‘Dona Beja’ é uma obra muito esperada, até por ser o remake de uma que fez muito sucesso e foi um marco dentro da teledramaturgia. Meu papel é muito forte, o elenco é muito bom”. Ele celebra a oportunidade de contracenar com Deborah Evelyn, com quem atua diretamente pela primeira vez. Ao ser perguntado sobre tensões nos bastidores, como os atrasos grandes nas gravações, incluindo capítulos reescritos a pedido da direção, além de atores que tinham outros projetos acertados na agenda acertados e a direção insistia que precisavam estender a permanência, Bukassa reconhece que “houve alguns problemas, mas nada que prejudicasse o projeto”. E contemporiza: “Todas as produções têm problemas. E eu, particularmente, não participei diretamente de nenhum desses acontecimentos”.

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Em outra parte de sua fala, Bukassa reflete sobre a percepção do brasileiro em relação à África e como essa visão ainda é pautada por estereótipos do passado. “De uma maneira geral, os brasileiros têm pouquíssimo conhecimento sobre realidades e a História do continente africano, seja qual for o país, a não ser quando têm vagas noções de coisas muito básicas e muitas vezes que foram superficiais, caricatas.” Ele explica como o apagamento da história da negritude no Brasil contribui para essa falta de entendimento: “Vivemos um país que sempre apagou as histórias no que se refere à negritude e isso, de forma geral, mesmo na contemporaneidade, não é estampado na mídia, não é estampado na TV brasileira”.

A África se trata do berço da civilização humana. Acho que precisamos ressignificar esses olhares de que ela está atrelada, única e exclusivamente, a povos que vieram escravizados – Bukassa Kabengele

Bukassa Kabengele está em “Mania de Você” sendo o pai de Viola (Gabz) [Foto: Daniel Pinheiro]

DE QUE ÁFRICA ESTAMOS FALANDO?

É recorrente no mundo ocidental – ainda que esta definição por si só já seja questionável – que para se falar de países africanos se use a palavra África. Como se ela só, em si, pudesse resumir os 54 países daquele continente. Algo semelhante não ocorre quando se fala da Europa. Não se diz, por exemplo, que o bacalhau é uma comida típica da Europa, ou que tal pessoa fala o “idioma europeu”. De igual forma, quando perguntado sobre como a questão do racismo é debatida na África, o ator, nascido em Bruxelas e criado na República Democrática do Congo, sendo filho de um congolês, amplifica a discussão, lançando mão da frase que abre este segmento da reportagem, afinal a discussão racial no continente é complexa e diversa, dada a diversidade de seus 54 países. Ele menciona que o apartheid na África do Sul é um exemplo evidente de uma convivência racial tensa e institucionalizada, cujos ecos ainda permanecem: “Certamente, fora os países que como África do Sul, que tiveram apartheid,  os ecos em relação a isso continuam.” Bukassa reconhece a dificuldade de falar de maneira unificada sobre a África, devido à complexidade das questões enfrentadas por cada país: “África é composta por cinquenta e quatro países, cada um com suas questões e diversidades.”

Para ele, um dos debates mais relevantes nos países africanos é o neocolonialismo, a tentativa de cortar os laços de dependência que muitos países ainda mantêm com seus antigos colonizadores: “Ainda se discute as questões de você tentar cortar as correntes das relações desses países que ficaram ali subjugados com seus ex-colonizadores”. Bukassa finaliza reconhecendo que a luta contra o racismo, tanto na África quanto no Brasil, é global, afetando tanto os africanos no continente quanto aqueles espalhados pela diáspora: “Essa consciência existe certamente, e as pessoas debatem e lutam de forma geral. Os africanos dentro da diáspora estão instalados em vários países”. Ele admite a dificuldade de acompanhar todos os debates raciais em África, especialmente por viver no Brasil, mas ressalta a importância de cada nação lutar por respeito e condições de vida justas, ainda que impactadas pelas sequelas do colonialismo: “Todos os setores, dentro de cada país, brigam e se atêm às questões do respeito humano e lutam por condições de vida geradas por conta das sequelas do colonialismo.”

Bukassa destaca como a luta da negritude contra o racismo do homem branco e ocidentalizado remonta à época da escravidão: “Na minha opinião, as lutas e resistência da negritude em relação ao racismo do homem branco e ocidentalizado era fim desde que os escravizados foram retirados ali, sequestrados pra uma terra desconhecida e sendo violentados, expostos e colocados nessa realidade.” Ele reflete sobre como esses movimentos de resistência, ao longo da história, geraram debates e manifestos: “Então eu creio que dessas lutas, naturalmente nesses movimentos de resistência, já haviam debates e formação de manifestos contra essa violência e em prol de uma vida digna.”

Bukassa Kabengele e a pauta antirracista (Foto: Daniel Pinheiro)

Por ser filho de um renomado antropólogo e ativista, o ator sempre teve contato com essa educação antirracista, tanto na academia quanto na vida pessoal: “Eu sou, por exemplo, filho de um grande professor, doutor antropólogo, titular com várias premiações, uma grande referência dentro da academia e dos movimentos. Naturalmente vim tendo essa educação, não só por ele, mas pelo meu entendimento como alguém que também sofre o racismo.” Kabengele acredita que o debate sobre o racismo no Brasil já existe há muito tempo e continua se transformando: “No Brasil, o racismo vem se configurando, se remodelando e retransformando.”

Ao refletir sobre sua identidade multicultural, Bukassa fala sobre ter nascido na Bélgica, ser naturalizado congolês e também brasileiro: “Eu nasci em Bruxelas, na época em que meus pais estavam lá, meu pai terminando o mestrado dele em Antropologia, e retornamos para o Congo aos dois anos de idade.” Ele explica como sua herança africana, juntamente com sua vivência no Brasil, moldou sua identidade: “Trago todos os meus traços africanos, eles fazem parte das minhas forças de existência. Recorro dentro da minha intimidade a esses lugares e, claro, somo tudo isso ao meu aprendizado dentro do Brasil, com toda a sua brasilidade, que também conversa com a africanidade.” Ele reflete sobre como essa soma cultural influencia seu trabalho: “Eu acho que eu sou uma pessoa do mundo. Não sei se eu sou africano com alma brasileira ou brasileiro africanizado. Eu acho que é o que me dá a minha assinatura, inclusive, artística e força no olhar dentro do trabalho.”

Bukassa Kabengele é nascido em Bruxelas, mas ‘cria’ da República Democrática do Congo (Foto: Daniel Pinheiro)

Ao abordar o racismo no Brasil e na África, Bukassa observa que a luta contra o racismo é antiga: “As lutas e resistência da negritude em relação ao racismo do homem branco e ocidentalizado eram fins desde que os escravizados foram retirados ali, sequestrados pra uma terra desconhecida.” Ele destaca que os debates sobre racismo já vinham ocorrendo há muito tempo, tanto na diáspora quanto nos movimentos africanos: “Eu creio que dessas lutas naturalmente, nesses movimentos de resistência, já haviam debates e formação de manifestos contra essa violência e em prol de uma vida digna.” No Brasil, ele acredita que o debate sobre o racismo já existe há muito tempo e se adapta às transformações da sociedade: “O racismo vem se configurando, se remodelando e retransformando.”

MÚLTIPLO

Quanto a seus projetos para a temporada 2024/2025, Bukassa comenta a dificuldade de conciliar uma agenda de novela com outros trabalhos, devido à grande demanda e a questões contratuais. “Bom, é muito difícil você fazer algum projeto extra uma novela, porque a demanda é muito grande e fora, às vezes, algumas questões de contrato mesmo nos impedem disso.” No entanto, ele revela que já está envolvido em outros projetos, como um filme da Globo e conversas para um longa-metragem. “Fiz um outro filme com Jefferson D., Narciso, o qual também está em processo de finalização, ou seja, em 2024 eu já fiz pelo menos uns cinco projetos, isso enquanto eu estou fazendo a novela.” Além disso, ele menciona o lançamento do filme Malês, de Antônio Pitanga, e do filme Tarã, da Disney, com a participação de Xuxa.

Sobre moda, Bukassa explica como a moda reflete sua identidade: “A moda é você se sentir bem conforme a como você se veste, que essa roupa de alguma maneira traduza quem você é, politicamente, pessoalmente, culturalmente, socialmente.” Ele valoriza roupas que refletem sua personalidade e cultura: “Eu sempre gosto de roupas muito diferentes, carismáticas, claro que desde que conversam comigo. As roupas precisam gritar… no sentido de brilho, de aparecer e mostrar quem está por trás delas”.

Para Bukassa Kabengele, a roupa traduz seu estado de espírito (Foto: Daniel Pinheiro)

Por fim, Bukassa expressa o que gostaria que os brasileiros soubessem sobre a República Democrática do Congo: “Eu queria que os brasileiros que tiverem a oportunidade de conhecer algum país africano, independente que seja a República Democrática do Congo, que o fizessem, porque isso faz diferença.” Ele celebra a riqueza cultural do Congo, especialmente na música: “A musicalidade que é incrível e bem diferente das outras regiões na África.” Ele também acredita que os congoleses se beneficiariam ao conhecer o Brasil e desmistificar algumas percepções: “Seria interessante os congoleses conhecerem o Brasil tal como ele é. Creio que a alegria do Brasil vem por conta dos países africanos e da nossa mistura mesmo.”

Essa é a vida pulsante de quem carrega em si múltiplas culturas, histórias e resistências. Entrelaçado em tramas de telas e de pele, o ator caminha sob o sol da sua ancestralidade, ecoando vozes antigas e abraçando novas narrativas. Sua arte, como uma ponte entre mundos, convida à reflexão e celebração, revelando que a história de um homem é também a história de muitos. Um encontro de negritude, brasilidade e humanidade que segue se transformando.

Créditos:

Fotos: Daniel Pinheiro

Stylist: Hermes Inocencio Stylist

Beleza: Luiz Moren