Bianca DellaFancy celebra o protagonismo drag na novela “Renascer” e a ascensão gay nas artes: “Virada de chave”


Bianca DellaFancy, persona do artista Felippe Souza, revelou-se através da internet. Para além da personalidade das redes sociais, a drag apresenta sua potente arte e coloca-se como uma das mais importantes porta-vozes do movimento LGBT. E alcança mais um patamar de protagonismo como a primeira drag a interpretar uma drag nas novelas – algo que sempre era destinado aos atores cis-héteros. Em “Renascer” a ariz celebra que ela, Galba Gogoia e Gabriela Loran estejam podendo dar profundidade a personagens muito próximas a elas. Destaca também o quão importante é haver artistas LGBTs pretos e corpos plurais, sem a ditadura do ‘padrão’ fazendo sucesso. “Eu estou vivendo um personagem que trabalha como drag nas boates. Não tem um ator hétero interpretando o personagem. Sinto que a Globo está nos dando essa oportunidade de escrever a nossa história a partir do nosso olhar”, frisa

*por Vítor Antunes

Bianca DellaFancy. A drag poderosíssima está no âmago de seu idealizador, Felippe Souza. Nesta entrevista, Bianca revisita a própria história falando do encontro consigo própria e da importância da modernidade na releitura sobre o que é ser drag. Tanto que hoje tem uma personagem na novela “Renascer“, a Janaína. Para ela, esta fase da vida, de ser/ter pela primeira vez uma drag numa novela é algo simbólico: “Eu não estou vivendo um personagem que trabalha como drag nas boates. Não tem um ator hétero interpretando o personagem. Sinto que a Globo está nos dando essa oportunidade de escrever a nossa história a partir do nosso olhar”.

Ela analisa também a importância de se trazer um olhar mais generoso às personalidades LGBT pretas que só se voltou mais recentemente a descobri-las, bem como os atravessamentos que passam pelo fato de ser uma militante LGBT, ser negra e ter a todo tempo que falar sobre letramento e militância, ainda que seja fundamental trazer à pauta do dia. “Quanto mais tiver acesso às pessoas, furar bolhas, mais responsabilidades. Fico feliz em ver usada a minha voz para coisa positiva”.

Felippe e Bianca DellaFancy: duas expressões da mesma pessoa (Foto: Divulgação)

ABUSADA

“A carruagem quebrou na encruzilhada e Pombagira é abusada e ela foi a pé”. A cantiga de Maria Padilha, entidade das religiões afro, a define, mas, sem dúvida, poderia, também, definir Bianca DellaFancy. Tão abusada quanto destemida – assim como Maria Padilha -, ela bateu a saia, e seguiu adiante rumo aos seus objetivos. Bianca, persona de Felippe, saiu de Santos, cidade marcada pelo conservadorismo, foi para São Paulo e construiu a sua vivência e sua arte na internet e alçou voo. Hoje, ela tem uma personagem com aprofundamento em “Renascer”, novela das 21h. “Eu sempre disse ser uma pessoa abusada e, por ser assim, não puderam não me ouvir.  Acredito ser a primeira drag a viver uma personagem drag nas novelas a ter fala e importância nas novelas”.

 

Aconteceu de por muitos anos falarem por nós nas novelas. Tanto eu como as outras meninas –  Gabriela Loran e Galba Gogoia, respectivamente uma mulher trans e uma travesti –  podermos falar da nossa história a partir da nossa perspectiva. É uma virada de chave, um check na vida e a percepção de que estou no caminho certo – Bianca DellaFancy

Uma das críticas que se voltaram à novela “Renascer” – e que inclusive foi pauta aqui no Site Heloisa Tolipan – foi o fato de a personagem Buba haver deixado de ser hermafrodita/intersexo como na primeira versão da novela para ser trans no remake. Presente justamente neste núcleo, Bianca aponta que essa transformação não é uma invisibilização, mas uma observação para outras questões também importantes. “Acho que é importante trazer essa abordagem para a releitura. Afinal, somos ainda o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, então por que não levar esse tema para a novela?”.

Aliás, costuma-se dizer que as pessoas públicas que são LGBT acabam sendo constantemente chamadas a falar sobre o tema. Incomoda ter que ser a “palestrante”, tendo tanta possibilidade de referência e busca de informação? “Em alguns momentos é incômodo, sim, mas entendo o meu papel. Eu trabalhei muito para chegar ao lugar que estou e por isso, sei ter obrigações e responsabilidades. Reconheço que não posso viver encastelada no meu viver. Tenho que me fazer ser ouvida. Acho válido quando faço diferença ou quando aprendem através de mim”, aponta.

Além disso, Bianca responde à grita popular sobre a entrada de novos personagens na trama, além do dela e das outras personagens/atrizes LGBT. “Nossa presença ainda afeta a essas pessoas na internet. Quando nossa entrada foi noticiada, lemos pessoas falando absurdos, de que agora iria entrar a geração lacração, a geração mimimi, ou queixando-se de que isso não havia no original. As pessoas não estão acostumadas a nos ver ali, com destaque, mas achariam natural se fosse uma cis fazendo nossa personagem. É muito incrível ver a Globo bater o pé e insistir em nossa presença”, frisa.

“Nossa presença ainda afeta as pessoas na Internet” (Foto: Divulgação)

ARTE COM “A”

Muito se questiona o fato de que apenas hoje algumas drags pretas tenham recebido não apenas o protagonismo, mas o devido destaque. Só hoje se propõe um olhar mais aprofundado para o legado de Jorge Lafond (1952-2003), para Silvetty Montilla, para Organzza. na opinião de DellaFancy é um reconhecimento importante, ainda que tardio. “Sempre estivemos ali. É inevitável não falar de racismo. Eu fico feliz ao ver uma bicha preta ascendendo, olho para trás e reconheço Márcia Pantera, Silvetty Montilla. Não que ache que as brancas não possam ascender, mas não fiquemos à sombra”.

A gente faz muito com pouco. Sabemos como vive uma bicha preta no Brasil e quando ela dá certo já se sabe com certeza o quão tortuoso foi o caminho. Elas estão aí, são minhas amigas e conheço várias. São soberanas no que se propõem a fazer e conheço de perto o talento de cada uma delas – Bianca DellaFancy

Nos anos 1990, eram recorrentes as participações das – então chamadas – transformistas nos programas de televisão nas tardes dominicais, como os de Sílvio Santos, Faustão e Gugu (1959-2019). Como a arte drag transitou do transformismo para as drags e ganhou o mainstream? Há uma mudança de leitura ou reflexos de preconceito? “Antigamente éramos vistas como motivo de chacota. Eu era uma pessoa que já sabia que era gay e tudo que, ao meu olhar, era excessivamente viado, eu queria distância e nesta época tudo era bem escrachado. Quem dirigia a cena puxava para o escracho mais que para o artístico o que acabou calcificando essa imagem sobre drags e afins”.

Os apresentadores não evoluíram, não mudaram o pensamento num timing bom em respeitar a arte e reconhecerem. Depois vieram Pabllo Vittar, Glória Groove, Arteuza Lovi, que aliaram a arte drag com a música e as pessoas começaram a respeitar mais. Acho que isso fez com que o público desassociasse essas drags das transformistas de antigamente. Hoje a gente não tolera o espaço da chacota, temos respaldo e nos profissionalizamos. Temos gente para cuidar de nós. Porém não critico as nossas antecessoras. Elas faziam o que era possível, o que dava e com o que tinham – Bianca DellaFancy

E ela prossegue: “Acredito que as pessoas antigamente se revoltavam, mas onde se queixariam? Hoje, se um twitt viraliza, ele já traz uma mensagem. No passado, por não serem ouvidas, muitas sequer cogitavam reclamar sob a pena de não ter mais oportunidades. E isso a nossa geração não tolera”.

Bianca DellaFancy: sua geração de drags se recusa à estereotipação (foto: Divulgação)

ENCONTROS 

Sobre passado e presente, Bianca comenta que “a maturidade me trouxe a distinção em ver que nem tudo é close. Eu romantizava as pessoas não gostarem de mim e via nisso uma prova de personalidade. Hoje, se não gostam de mim, eu estabeleço uma distância. Não vou fazer um post do tipo: ‘quanto mais odiada, temida, mais respeitada, mais babadeira’. Não penso mais assim”.

Mas, de tantos os encontros possíveis que a imaginação pode proporcionar, o mais bonito, sonha Bianca, é o dela com Felippe. Não o Felippe que há por trás da persona Bianca DellaFancy, mas o menino Felippe, de 10 nos, criado em Santos (SP), que sempre soube de sua homossexualidade e relutou, resistiu, bravejou. “Seria um encontro denso. Santos me podava. Se Bianca encontrasse aquele Felippe, ofereceria afeto, colo, acalanto. Aconselharia ele a manter os pés no chão para não esquecer de onde veio e não me perder de mim. Diria para ele investir o dinheiro que ganhar, que dinheiro parado de nada adianta, e diria que se ele quisesse acreditar no sonho que siga sempre. Eu fui para São Paulo com medo, muito medo, e um sonho. Demorei três anos para saber o que fazer. Olharia para ele e diria, com toda a fé ‘gata, vai. Se estiver com medo, vá com medo mesmo, mas não se perca no caminho”‘.

Bianca DellaFancy (Foto: Divulgação)