*por Vítor Antunes
Uma novela polêmica que trouxe não apenas ao debate moderno à especulação imobiliária mas à hipermodernidade. O pedido de comida através de uma tela. Um robô específico para se coçar as costas. Uma jovem que não teve oportunidades na vida e que acabou sendo transformada em uma batedora de carteira. Não. Este resumo não é de nenhuma obra contemporânea, ainda que possa parecer. Mas sim, é o da novela “O Espigão“, de 1974, que volta ao ar no Globoplay. O mundo era outro há 50 anos. Não apenas estávamos no meio de uma Ditadura Militar como nem mesmo a ideia de TV em rede no Brasil existia. Betty Faria, a co-protagonista, soube através do Site Heloisa Tolipan do retorno da trama no Globoplay. A atriz acreditava que a novela havia sido perdida no incêndio, na Globo, em 1976. “Foi um trabalho tão bom, fui tão feliz. Foi lindo mesmo”, analisa.
Hoje, 50 anos depois, Betty Faria diz que se sente surpresa pelo retorno de “O Espigão”, trama pela qual ela tem muito carinho e pela personagem por haver terminado a novela grávida do seu filho mais novo, João, na vida real. “”O Espigão foi uma bênção para mim, especialmente por conta de depois dela, ter nascido o meu filho. Mais para o fim da novela, a minha personagem deixou de ficar com a barriga de fora por que eu estava com corpo de croquete, no quinto mês de gravidez”. A atriz recorda que a personagem foi escrita para ela, sob encomenda, por Dias Gomes. “O autor fixou muito aborrecido comigo por que eu disse que ele não escrevia bem para mulher. E ele me telefonou dizendo haver escrito um papel feminino para mim”.
No meio dessa espiral, personagens muito humanos, como Lazinha Chave-de-Cadeia (Betty Faria), “bandidos-simpáticos” que “enveredam para o crime por serem desassistidos de tudo. Lazinha mesmo foi alugada pela mãe a uma mendiga para pedir esmolas. Depois cursou alguns anos de escola pública até ser obrigada pela matriarca a trabalhar. Vendia balas na porta dos cinemas ou nos sinais de trânsito. O pai era um agressor e espancava a mãe para conseguir dinheiro e foi morto durante uma briga entre marginais na favela da Catacumba. Com cerca de 12 anos na época, teve de trabalhar em um bar próximo do Beco da Fome, onde lavava pratos e servia no balcão”, consta a pesquisa de Vítor Antunes para o blog Mofista, de Tião Uellington. Na época, Betty Faria disse que sua personagem tinha “uma liberdade de gostar de alguém e ir quebrar a cara. A falta de medo de ter o que perder. Boto meus sentimentos nela. A afetividade dela está escrita pelo Dias Gomes, mas eu boto a minha (…) Lazinha é uma mulher lindíssima, ela é rica demais!”.
Pioneira ao falar de Ecologia, através do personagem de Ary Fontoura, “O Espigão” também foi uma das primeiras obras a tratar sobre a especulação imobiliária. Em 1982, a Censura impediu que a Globo exibisse à noite a série “Bandidos da Falange” , sobre a formação de uma facção criminosa. Como forma de substituí-la a Globo optou por reapresentar “O Espigão“, que foi “censurada” pelos incorporadores imobiliários, que viram-se ridicularizados pela novela e ameaçaram, inclusive, não fazer anúncios comerciais na Globo.
MALANDRAGEM DELA
O tema sonoro da personagem de Betty Faria era “Malandragem Dela“, de Tom e Dito, que definia bem essa menina levada que queria ser bandida, mas errava, se emocionava, tinha bom coração. Lazinha vivia se equilibrando nos saltos ou nos sapatos plataforma, mas não sabia usá-los. Sobre ela, Betty disse ter tido “a honra e a sorte de ver que autores escreveram para mim personagens, e haverem confiado em meu trabalho. Importante deixar registrado meu agradecimento à Janete Clair (1925-1983), ao Dias Gomes que escreveram coisas lindas para mim.
Lazinha Chave-de-Cadeia é uma personagem fascinante por ter o que eu gosto: O popular, o patético, e a ingenuidade de uma menina que quer dar golpes, quer ser bandida, mas é frágil, romântica, sonhadora – Betty Faria
Para extinta revista Manchete, em 1974, Betty Faria disse: “Tenho amor pela Lazinha. Mulher batalhadora, uma coisa que sempre fiz na minha vida. Isso ela tem de mim. Essa liberdade de gostar de alguém e ir quebrar a cara”. Ainda hoje, ela se considera uma mulher liberta, vitoriosa. Mas pondera sobre o que é ser livre: “Isso pode estar sujeito a várias interpretações, boas ou más. No momento, tanto no Brasil como no mundo, a extrema-direita moralista quer tomar conta, temos o feminicídio aumentando. Liberdade é algo que tem que ser pensada, no que se dispõe. As mulheres precisam ser respeitadas, a liberdade tem que ser direcionada para realmente haver direitos”.
Sobre a maturidade, Betty diz hoje que, “à medida que você vai vivendo e ficando mais velha, os amigos, as amigas vão indo embora e permanece um profundo sentimento de solidão quanto à saudade dos amigos e das pessoas próximas. José Wilker (1944-2014) foi meu grande companheiro e morreu cedo demais. A ausência dessas pessoas queridas age como a um buraco na minha vida. Nessa novela trabalhei com Milton Gonçalves (1933-2022). Não sou saudosista, mas tenho eles em meu coração eternamente”.
Sobre a vida particular hoje, Betty contou-nos, toda prosa: sua neta Giulia, fez o primeiro curta, baseado numa história vivida pela avó. Trata-se de “Como chorar sem Derreter“, que fará o circuito dos festivais primeiro. “É uma história incrível, baseada num fato meu. Um oftalmologista foi furar umas bolotinhas no meu canal lacrimal e eu disse à Giulia que eram lágrimas retidas por eu ter segurado tantas tristezas da vida, já que eu só choro através das minhas personagens. Giulia escreveu um argumento sobre isso e fez o primeiro filme da vida dela”. E como foi ser dirigida pela neta? “Eu fico seríssima, não dou palpite, nada. Fui super bem comportada. E tivemos uma equipe maravilhosa”.
CURIOSIDADES DE “O ESPIGÃO”
Dias Gomes cria ser esta ideia, a dos grandes prédios nas grandes cidades, “um duvidoso conceito de progresso” e afirmava, ao conceituar a sua novela, que desejava destacar “A sufocante angústia da cidade grande e desumanizada (…). Nela eu procuro retratar, em todos os níveis, as repercussões que o progresso e o novo “Way of Life” trouxeram à civilização moderna.” A novela começa no ano de 1973, quando Dora (Débora Duarte), migrante que chega ao Rio dá luz um filho em meio ao engarrafamento. É ali que ela encontra o protagonista da trama, Lauro Fontana (Milton Moraes), um milionário excêntrico que quer construir um prédio com seu nome – e com 50 andares – chamado por ele de “Espigão”. O Espigão foi uma das primeiras novelas a cores. O túnel que aparece nos primeiros capítulos foi feito cenograficamente. Dizia-se que o termo “Espigão” passou a ser usado como sinônimo de “prédio alto” depois da novela, mas essa já era uma expressão consagrada no início dos Anos 1970.
Dizia-se que a novela teve seu primeiro capítulo gravado num túnel cenográfico, montado na Cinédia, em Jacarepaguá, mas Betty negou. “Não era de mentirinha, não. Era um túnel real. Talvez alguns takes possam ter sido gravados na Cinédia. Na época a gente gravada na rua, por determinação da Globo”.
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