*por Vítor Antunes
O primeiro protagonista da carreira de Bernardo Felinto chega acompanhado de uma discussão muito presente na contemporaneidade: os relacionamentos tóxicos. Baseado em uma história real, “Letícia”, longa dirigido por Cristiano Vieira, protagonizado pelo ator e por Sophia Abrahão, tem estreia marcada para o dia 06/06, e aborda esse assunto já com a personagem que nomeia o longa. Bernardo descarta de cara já ter tido a consciência de ter vivido algo próximo ao de seu personagem no longa: “Ainda não tive uma relação próxima que se aproxime disso, ainda bem”. Não foram localizados estudos que sinalizem o número de homens vítimas de mulheres tóxicas ou narcísicas e muito se deve à dificuldade do homem em reconhecer tais tratamentos. No caso da violência contra eles – especialmente a doméstica, há o que é tido como “cifras negras”, pois que não há registro formalizado, porque há, socialmente, uma vergonha da parte da vítima em levar ao poder público uma agressão física impingida por uma mulher”.
Para Bernardo o fato de a centralidade da ação de abuso ser oriunda de uma mulher é uma novidade na dramaturgia e merece discussão. “Uma situação que, a primeiro momento, parece atípica de a mulher cometer, de ser abusiva. Mas pude perceber que é uma coisa muito mais natural do que se imagina, é mais frequente ver o abuso vindo de homens. Acho que o meu personagem soube levar isso muito bem ao longo do filme, principalmente no final, quando compreende sobre o problema psicológico da personagem da Sophia, a Letícia, e entende que o que ela possui é uma doença”.
No que tange à preparação, os atores objetivaram o entrosamento, já que a carga dramática entre eles seria intensa. “Eu não conhecia a Sophia Abraão e ela também não me conhecia e a gente tinha muitas cenas fortes emocionalmente ou que exigiam uma certa intimidade, (…) para assim irmos entrando um pouco mais nessa questão do relacionamento tóxico. Então, serviu como um laboratório individual, já que durante as gravações sentia precisar conhecer um pouco mais esse universo, conversando com várias pessoas que já tiveram situações semelhantes”.
ARTE AO QUADRADO
Numa de suas músicas mais famosas, Oswaldo Montenegro referenciava-se a Brasília como o centro de um planalto vazio, comum como a qualquer lugar, mas um lugar onde os castelos nascem dos sonhos, para, no real, acharem seu lugar. Ao contrário do que possa parecer, Montenegro não é brasiliense, mas carioca. Diferentemente de Bernardo, que é brasiliense, consolidou sua carreira lá, foi para o Rio e depois voltou ao “quadradinho do Centro-Oeste”. Aliás, que olhar tem o Brasil para a sua capital e os artistas daquela região? Para Felinto, “Durante muitos anos, a produção audiovisual foi concentrada no eixo Rio-SP, os atores da grande mídia eram quase sempre desses centros. Contudo, vejo que isso vem mudando. Principalmente com a internet, que, de forma democrática, permite que o artista possa expor o seu trabalho de onde estiver. Vejo muitas produções de cinema do Nordeste acontecendo, atores de diferentes partes do Brasil sendo escalados. Isso se deve ao fato de, após a pandemia, os testes estarem sendo feitos de forma online, através do celular. Isso facilita muito. Eu comecei a fazer testes na Globo, por exemplo, em 2011, e sempre foram presenciais. Acredito que muitos atores, por exemplo, não tinham essa estrutura de deslocamento. Hoje, isso mudou. Um ator do interior do Brasil pode mostrar o seu trabalho através de um teste que ele fez na sala de casa. As plataformas de elenco, que são sites de pesquisa, ajudaram muito nesse processo também”.
Para Bernardo, o maior desafio do longa foi lidar com a grande responsabilidade de viver um protagonista e suportar a carga emocional que isso impõe. “Quando as gravações terminaram, eu estava exausto, principalmente no emocional. A concentração é um pilar muito forte, porque você é muito exigido. Mas achei muito prazeroso o processo todo, apesar de ser cansativo. É um trabalho de ator muito profundo”.
Professor de teatro no Distrito Federal, Bernardo apresenta para seus alunos um panorama real da profissão, sem o deslumbre do qual ela acaba sendo lustrada. “Gosto de deixar claro para quem quer seguir carreira: o teatro é o primeiro degrau. Na minha visão, o ator tem que passar pelo teatro. É a forma mais artesanal de interpretação. O palco é onde o ator trabalha os seus recursos, a sua expressão corporal, a sua consciência em cena. De qualquer forma, vejo essa nova geração com bons olhos. As informações estão mais acessíveis, os testes, as plataformas de cadastro… O mercado está mais inflado, mas as oportunidades estão mais acessíveis”.
Acredito que algumas pessoas querem sim ser influencers antes de qualquer coisa, pois é o que elas observam que faz sucesso no momento. E não vejo problema em ser, mas ser ator é uma outra jornada. Exige disciplina, estudo, dedicação, perseverança – Bernardo Felinto.
Ainda sob esse norte, dos influencers que viram atores – ou o contrário – Bernardo lastima que haja, nas seleções de elenco, o privilégio ao número de seguidores frente ao talento do artista. “Sinceramente, acho uma pena, mas sei que acontece em alguns casos. Eu venho do teatro, sei que ser artista é diferente de ser ator. Mas acho que o mais difícil é se manter em movimento. O mundo muda muito rápido, então temos que nos adaptar. O ator talentoso, hora ou outra, vai aparecer. Se souber se colocar no mercado, será visto. Mas esse é o desafio, não ficar em casa esperando o telefone tocar. O ator tem que saber se produzir, colocar as suas obras no mundo. Essa é a única forma de ser visto.
Determinado “artista” com muitos seguidores pode conseguir um papel de destaque, mas se não tiver treinamento, não sobrevive no mercado. Então, a própria arte faz essa peneira. Eu serei sempre a favor do ator. Entendo perfeitamente as queixas de atores que realmente estudaram e têm uma bagagem, mas deixarem de ser escalados por conta do número de seguidores, contudo, as coisas são como são – Bernardo Felinto.
Sobre Brasília, sua arte acabou, de alguma forma, tornando-se conhecida nos anos 1980, quando o rock produzido lá explodiu. Era a Legião Urbana, o Capital Inicial, a Plebe Rude… Muita gente daquela cena. Depois, pouco da arte brasiliense chegou aos outros centros urbanos. Segundo Bernardo, o DF tem um movimento artístico muito grande. “Brasília é hoje a terceira maior cidade do país, com excelentes artistas de várias áreas diferentes. É um lugar muito rico. A música é muito forte, em vários segmentos, por exemplo. No campo das artes cênicas, Brasília tem atores talentosíssimos, muitas companhias de teatro, de comédia, um dos maiores festivais de cinema do Brasil, cineastas que produzem e vivem da sua arte. Naturalmente, não tem um retorno de visibilidade como no eixo RJ-SP, mas é uma cidade que vive e consome muito a sua arte”.
Após fazer alguns filmes regionalmente, curtas e longa-metragens, além de algumas encenações teatrais, Bernardo divide o protagonismo de “Letícia” com Sophia Abrahão. “Esse foi o meu primeiro protagonista em um longa-metragem. Ter a experiência de gravar durante 20 dias ininterruptos, várias cenas por dia, me trouxe uma bagagem muito grande. Acho que transitar entre as emoções de cada cena, às vezes do início do roteiro, às vezes do final, em um único dia, me trouxe um estado de prontidão muito forte. No audiovisual, o ator tem que estar muito treinado, pronto para o trabalho de uma forma muito única, com muita verdade, e a parceria com a Sophia foi um ponto fundamental. Nos entrosamos muito rápido, ela é uma atriz excelente, com muita técnica, muitos recursos, e uma pessoa fantástica. Só elogios para ela”.
Para o segundo semestre deste ano, Bernardo quer voltar para o Rio e tem duas peças já planejadas para montagem. “Uma é a comédia ‘Tudo sobre nossa vida sexual’ e a outra é um drama chamado ‘Enquanto Estamos Juntos’. Estou trabalhando em um novo roteiro para o audiovisual também e, se der, quero fazer um curso de atuação fora do Brasil. Em 2018, fiz um curso na New York Film Academy, em NYC, e gostei muito. Pretendo [ainda neste ano] voltar”.
Para encerrar, Bernardo define o que mais o emociona como artista. “Eu, como ator, me emociono e me identifico com boas histórias. Bons roteiros, que tratam sobre as relações humanas sempre me tocam um pouco mais. No fundo, é isso que o espectador procura, ser refletido no palco ou nas telas. Em larga medida, quando assistimos um filme, uma peça, uma novela, estamos nos vendo lá também, a nossa própria vida, a nossa condição humana. Puxando para a minha área, quando vejo grandes atuações, no veículo que for, sempre fico extasiado, querendo consumir mais daquele artista”. Talvez, tenha deixado de falar do imenso, desmedido amor pelo céu de Brasília e o traço do arquiteto, não por displicência, mas por tê-los intrínsecos em si, com a mesma intimidade que a mão direita tem da esquerda, como um homem pode ter com a poesia.
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