BBB21: Como um experimento social em forma de entretenimento pode se perder tanto em 15 dias?


Desde a criação do reality é bem verdade que sempre estiveram presentes a agressividade e a lógica da exclusão como armas do jogo, mas nada se compara ao que temos assistido nesta edição: um festival de humilhações, atitudes controversas, relações tóxicas, olhares acusadores, dedos em riste e falta de respeito ao próximo. O pesquisador de audiovisual Valmir Moratelli e a pesquisadora de narrativas femininas Maria Carolina Medeiros analisam as questões e chamam atenção para os possíveis danos pós-reality. “O perigo ao meu ver é que estas posturas equivocadas sirvam como munição para desqualificar causas fundamentais do movimento negro, feminista e LGBT+, o que por si só é um grande desserviço. Prometendo diversidade, o BBB21 tem entregado um entretenimento que beira o sadismo”, aponta Maria Carolina

*Por Brunna Condini

O Big Brother Brasil 21, um dos assuntos mais comentados do momento nas redes sociais, se ‘perdeu’ totalmente da proposta inicial desde quando o elenco foi divulgado, que era a ênfase à diversidade e os temas que orbitam ao seu redor. Mesmo que esta edição tenha tido um avanço em relação às anteriores se pensarmos em pluralidade – pela quantidade de participantes negros, quase a metade, por exemplo e também pelos participantes declaradamente gays, bissexuais -, mas, para além do foco nas pautas necessárias, o que se destacou até agora foi uma onda de intolerância e violência verbal entre os integrantes do reality que, certamente, não podem mais serem chamados de ‘brothers‘ e ‘sisters‘.

“Que este experimento social em forma de entretenimento possa nos ofertar mais do que tristes cenas de pessoas acuadas por dedos em riste de falsos profetas”, diz o pesquisador Valmir Moratelli (Reprodução)

O ápice da situação crítica dentro da atração foi a saída de Lucas Penteado na manhã de domingo (dia 7), após beijar Gilberto e ser acusado de ter usado o economista pernambucano no jogo. Antes disso, Lucas já havia sofrido muita pressão psicológica, ofensas e isolamento. “Lucas é o participante que mais bagunçou a ‘ordem natural das coisas’ até o momento nesta edição do BBB. Desmascarou militantes fajutos e rompeu discursos previamente decorados por seus pares. Talvez nem ele saiba que fez tanto em tão pouco tempo. Com pouco mais de três semanas de confinamento, a saída de Lucas do Big Brother Brasil também desmonta a grande atração que se desenrolava com ineditismo nessa edição – um romance gay entre dois participantes. Uma perda e tanto”, observa Valmir Moratelli, pesquisador em audiovisual e especialista em teledramaturgia.

Com pouco mais de três semanas de confinamento, a saída de “Lucas do Big Brother Brasil também desmonta o ineditismo nessa edição – um romance gay entre dois participantes. Uma perda e tanto” (Reprodução)

O especialista acredita que a TV Globo se perdeu e não soube lidar com a condução dos episódios. “É a emissora quem perde a grande chance de uma edição histórica para se avançar na pauta da representatividade. O BBB21, até o momento, tem sido marcado pelo rótulo do cancelamento impiedoso, praticado por participantes que reforçam o ódio aos diferentes, mesmo estando entre iguais. Nada mais Brasil atual. Que este experimento social em forma de entretenimento possa nos ofertar mais do que pessoas acuadas por dedos em riste de falsos profetas que pregam a verdade absoluta”.

Promessa que não vem se cumprindo

O BBB21 estreou com a responsabilidade de manter a popularidade da última edição do programa, que entrou para o Guiness Book com recorde de votos em um único paredão (1,5 bilhão de pessoas votaram para decidir se Manu Gavassi ou Felipe Prior permaneceriam na casa – venceu Manu). Na edição passada, a pandemia já nos assolava e tudo indica que a necessidade de isolamento social contribuiu para que mais espectadores acompanhassem o reality.

Quando o BBB21 foi anunciado, a população já vivenciava há muitos meses a pandemia do novo coronavírus e a TV Globo, com olho na audiência, tratou de produzir uma nova edição do reality se alinhando às necessárias pautas sobre diversidade. Para isso, recrutou um elenco com foco maior na pluralidade e muitos participantes com uma vida pautada pela militância e engajamento. Os ‘ingredientes’ para o sucesso estavam todos no ‘caldeirão’ para uma atração que prometia ser inesquecível de tão boa. Mas a ‘receita’ parece ter desandado. “Ainda que a promessa de sucesso possa se cumprir em relação à audiência, a julgar pelo termômetro das redes sociais, o BBB21 tem decepcionado”, analisa Maria Carolina Medeiros, doutoranda em Comunicação e pesquisadora de narrativas sobre mulheres.

“Ainda que a promessa de sucesso possa se cumprir em relação à audiência, a julgar pelo termômetro das redes sociais, o BBB21 tem decepcionado” (Reprodução)

“Vejamos o exemplo de Lumena, que deslegitima (termo que ela mesma usa com frequência) todas as atitudes que, para ela, não cabem dentro do sistema classificatório que ela imaginou. Lucas, que pediu para sair da casa após ter beijado Gil, nunca se disse bissexual. Logo, Lumena deduz que o beijo era estratégia para ganhar no jogo — como se estar fora da heteronormatividade pudesse beneficiar alguém, no país em que mais se mata LGBT+. Trazendo pautas importantes consigo, todo o tempo ela milita em causa própria. Não é a única”.

"Lumena deslegitima (termo que ela mesma usa com frequência) todas as atitudes que, para ela, não cabem dentro do sistema classificatório que ela imaginou" (Reprodução)

“Lumena deslegitima (termo que ela mesma usa com frequência) todas as atitudes que, para ela, não cabem dentro do sistema classificatório que ela imaginou” (Reprodução)

O que as pessoas dentro deste BBB21 parecem esquecer – ou fazer questão de ignorar para manter o rumo do próprio jogo – é que seres humanos são complexos. “O antropólogo Claude Lévi-Strauss já dizia que a desordem é a única coisa que não se pode tolerar. E por desordem ele entendia o que não podia ser classificado. Todos nós classificamos o tempo todo, precisamos dessas classificações para viver em sociedade. Colocamos em caixinhas. E eis o problema: as pessoas não são uma coisa só. Quem estava propenso a torcer para determinados participantes devido ao alinhamento com bandeiras por eles defendidas percebe agora o óbvio: as pessoas têm muitas camadas e a militância e a defesa mais do que necessária de algumas pautas não significa, necessariamente, identificação com aquele indivíduo”, detalha Maria Carolina.

No programa, desde a sua criação, é bem verdade que sempre estiveram presentes a agressividade e a lógica da exclusão como armas do jogo, mas nada se compara ao que temos assistido atualmente: um festival de humilhações, atitudes controversas, relações tóxicas, olhares acusadores, dedos em riste e falta de respeito ao próximo.

Vimos muitos participantes indo na contramão de seus discursos aqui fora e ‘desumanizando’ as atitudes de outros. Esquecendo a escuta, o diálogo e o acolhimento. Mesmo em uma época em que a compaixão, a empatia e a solidariedade são cada vez mais urgentes à nossa sobrevivência como humanidade. No entanto, a pesquisadora alerta que o telespectador não deve confundir as coisas e deslegitimar movimentos necessários por conta dos equívocos recentes exibidos em rede nacional.

“Como mulher, inicialmente, me propus a apoiar a ala feminina da casa. Consciente do meu papel de branca tentando ser antirracista também quis torcer para uma mulher negra. Não tem sido simples me manter fiel a esta ideia inicial. O perigo a meu ver é que estas posturas equivocadas sirvam como munição para desqualificar causas fundamentais do movimento negro, feminista e LGBT+, o que por si só é um grande desserviço em um país como o nosso, ainda muito racista. Fora isso, a emissora e os anunciantes do programa já estão sendo criticados e cobrados nas redes sociais por não intervirem no abuso psicológico que Lucas vinha sofrendo, a ponto de escolher deixar o programa. Prometendo diversidade, o BBB21 tem entregado um entretenimento que beira o sadismo”.